Sexta-feira
e a propriedade de Vó Nena, no início da zona rural de Boa Graça, cidadezinha
no interior de São Paulo conhecida pelo folclore e lendas urbanas, estava
silenciosa.
A
Caçadora, dirigindo seu Fusca Azul, fora visitar amigos em uma comunidade próxima
dali. No terreiro desta, no dia seguinte, seria realizada uma celebração
ecumênica e a ajuda dela havia sido requisitada pelos amigos.
Daniel,
seu neto mais velho, saíra com a namorada, Tatiana, com o Dodge Charger branco
que os irmãos dividiam. Samuel, enquanto andava pela propriedade, se sentiu
feliz pelo irmão. Havia sido muito bom reencontrar Tati, com quem estudara por
boa parte do primeiro e segundo graus. Foi uma surpresa para todos, especialmente
para ela própria, quando descobriu sua vidência, e já havia até auxiliado a
equipe dos Caçadores em alguns casos.
Sam,
por sua vez, andava desanimado. Ainda sentia o baque do que havia acontecido
somente três meses antes, e a solidão o incomodava. Dan e Tati insistiram para
que saísse com eles, mas o neto mais jovem de Vó Nena preferira espairecer na
oficina montada em um galpão de madeira na propriedade da avó.
Por
fim, acabou chegando á conclusão de que era demais, e que lhe faria bem ver
algum movimento. Lembrou-se de um lugar que sempre havia frequentado e decidiu
que merecia uma folga.
Sacou
o celular e mandou mensagens para o irmão e a avó. Em seguida entrou na casa,
lavou as mãos e o rosto e depois apanhou a chave do Fuscão vermelho, resquício
do caso envolvendo o desafortunado George Angelo alguns meses antes. Daniel e
Tatiana até já haviam viajado para Brasília com ele, comprovando sua
confiabilidade.
Enquanto
manobrava o carro Sam sorriu. As histórias que o irmão e a cunhada contaram,
especialmente as que envolviam João, o Caçador amigo deles, foram ótimas.
Lembrou-se ainda da recomendação de Vó Nena de jamais tirar as medalhas de Nossa
Senhora e de São Jorge do painel do Fuscão, pois suas propriedades
sobrenaturais ainda não haviam sido todas descobertas.
Depois
de abrir o grande portão de madeira, sair com o carro, voltar a fechar o portão
e retornar ao Fuscão, Samuel seguiu pela estrada de terra até encontrar o
asfalto alguns quilômetros adiante. Após um curto trecho de uma estrada secundária
de pista simples pegou a bifurcação á direita, seguindo para o centro de Boa
Graça.
Mesmo
uma típica cidade do interior como aquela tinha o trânsito um pouco mais pesado
na segunda metade da tarde de uma sexta-feira. Mas Samuel não se incomodou, divertindo-se
em guiar o Fuscão pelas ruas. Não demorou e estava diante do Café da Clô, uma
cafeteria com muitos anos de tradição que resistia à investida das grandes
franquias por toda a região.
Havia
uma vaga na frente, e Sam encaixou ali o Fuscão. Depois de descer e trancar o
carro entrou na acolhedora cafeteria, apreciando com gosto seu ambiente com
muita madeira e móveis antigos, duas estantes com livros e mais duas com
produtos típicos incluindo vinhos e cachaças, a maioria produzida na região.
Clotilde,
cujo apelido dava nome ao lugar, veio lhe dar um abraço.
—
Samuel, meu menino! Há quanto tempo não aparecia!
—
Verdade, tempo demais — ele respondeu retribuindo.
Clô
já estava quase nos sessenta, era filha de mãe alemã e pai brasileiro, e tocava
o café com os filhos e uma equipe muito dedicada que adorava o que fazia. Olhou
novamente para o rapaz e disse:
—
Tão triste o que aconteceu...
Era
nítido que ela queria conversar mais, mas percebendo a nuance de desânimo no
olhar dele perguntou:
—
O de sempre?
Samuel
sorriu, deu-lhe outro abraço e respondeu:
—
E tem outro?
Clô
apontou para uma mesa nos fundos, ao lado da porta que abria caminho para o
jardim na parte de trás do estabelecimento e que era a preferida de Sam. As
memórias emergiram em sua mente, mas ele caminhou resoluto e se acomodou, recordando-se
quando se sentava ali em boa companhia.
Ele
havia trazido uma pequena mochila, a pendurou no encosto da cadeira e dela
tirou um caderno pequeno e uma caneta. Abriu o volume e pôs seu celular ao
lado, inserindo um fone na orelha e pondo para tocar uma música instrumental.
Agora
percebia como aqueles momentos de quietude o ajudavam a pôr as ideias em ordem.
Por cima os aromas e texturas da cafeteria proporcionavam um mais que bem vindo
sentimento de renovação depois daquele período difícil.
Clô
logo chegou com o pedido de sempre. Um cappuccino grande com canela e
chocolate, e uma generosa fatia de bolo floresta negra, de receita tradicional
alemã. A mãe dela havia trazido aquela e outras que faziam parte do cardápio da
casa, todas adoradas pelos clientes da cafeteria.
—
Deu sorte, querido, o bolo acabou de sair.
—
Você tem toda razão, Clô — respondeu Sam. — Não deveria ter ficado tanto tempo
sem vir. Esse aroma...
Ela
sorriu para ele e foi atender mais clientes que chegavam. Samuel ergueu a
grande xícara e passou alguns segundos sentindo o aroma da bebida quente. Tomou
um gole e fechou os olhos, deliciando-se com o sabor.
Depois
de retornar a xícara ao pires apanhou o garfo e tirou um pedaço do bolo. O
sabor tomou sua boca, e ele de novo chegou à conclusão que só poderia
compará-lo ao bolo de chocolate que Vó Nena sempre fazia para seu aniversário.
Samuel
sorriu ao pensar, enquanto mastigava o segundo pedaço, que o mais difícil com
relação a ambos os doces era se conter, apreciar cada mordida, cada nuance do
sabor, e não devorar o bolo inteiro. Era algo que ele havia aprendido com
Miriam desde que começaram a namorar. Ele sorriu mais com a lembrança,
recordando-se que Daniel ainda era assim, sempre o primeiro a terminar qualquer
refeição.
“Será
que Tatiana vai conseguir consertá-lo?” pensou divertido.
Miriam.
Era com ela que costumava frequentar o Café da Clô.
Samuel
fez algumas anotações no caderno, e a intervalos regulares bebia o cappuccino e
comia mais um pedaço do bolo. Estava tudo excelente, e ele quase sentia o mesmo
gosto de uma época mais recente.
Minutos
depois deixou o garfo sobre o prato vazio e bebeu o último gole da bebida. A
ideia de visitar o café dera ótimos resultados, pois o tédio havia desaparecido
e ele anotou mais algumas ideias no caderno.
Eram
anotações tanto para o incipiente blog que criara para os casos dos Caçadores
como para textos de ficção, principalmente contos, que de vez em quando se
arriscava a escrever. Lembrou-se dos três meses de Letras que chegou a cursar
em Campinas, antes de decidir trancar e tentar arrumar sua vida em Boa Graça.
Muito embora tanto sua mãe quanto Vó Nena dissessem que “caçadas não sustentam
ninguém” ele adorava aquela vida, e não pretendia parar.
Mas
fazer alguma outra coisa era uma de suas vontades, e ele apanhou o celular e
examinou a caixa de e-mails. Da mensagem que aguardava, e que deveria chegar
ainda naquele dia, nada.
—
Esperando alguém?
A
voz o surpreendeu, mas não o alarmou. De fato, de alguma forma já a esperava.
Largou
o celular, fechou o caderno com a caneta dentro e olhou para frente.
Miriam
estava sentada diante dele.
A
mesma Miriam, o mesmo jeito de menininha, usando um vestido floral, os cabelos
negros, longos e lisos, virados para o lado e cobrindo um dos ombros.
—
Oi — disse Sam.
—
Oi — ela respondeu.
Ficou
olhando para ela, os doces e grandes olhos castanhos, o rosto delicado exibindo
um leve sorriso... tantas lembranças cujo peso Samuel quase conseguia sentir sobre
os ombros.
—
Ia perguntar como você está, — comentou ele — mas parece óbvio que bem, né?
—
Estou sim. É bom estar distante de tudo que é ruim e errado no mundo.
—
Espero que eu não esteja incluso nisso.
Miriam
estendeu a mão cobrindo a dele e respondeu:
—
Isso nunca!
A
garota olhou ao redor, o brilho de seu sorriso se intensificou e ela disse:
—
Sempre foi tão bom vir aqui com você, Sam! O jardim dos fundos está lindo!
Sorriu
ainda mais para ele. Samuel retribuiu e a garota perguntou:
—
E você, como está?
—
Não tem acompanhado?
Novo
sorriso. Miriam disse:
—
Só um pouco. Respeito sua privacidade. E meu tempo aqui é curto.
Samuel
pôs a outra mão sobre a mesa, e Miriam a segurou. Ele disse:
—
Tem sido difícil. É claro, a dor não vai embora, acho que nunca irá, mas com o
tempo fica mais fácil lidar com ela.
—
Que bom.
Sam
olhou para ela, e a moça percebeu uma sombra em seu olhar. O rapaz disse:
—
É muito duro lembrar de tudo... lembrar dele... aquele desgraçado...
Fez
uma pausa quando sua voz começou a se tornar embargada. Baixou a cabeça e
disse:
—
Foi duro demais quando terminamos, Miriam! Nunca sofri tanto na vida. Mas não
chegou nem perto do que aconteceu depois...
Miriam
apertou as mãos de Samuel e olhou firmemente para ele.
—
Não faça isso, Sam! Por favor, não se desgaste pensando na injustiça do que
aconteceu.
Ele
ergueu o olhar e encarou a garota que tanto havia amado. Ela prosseguiu:
—
Está fora de seu alcance, meu amor, fazer qualquer coisa a respeito. Não se
preocupe!
Desta
vez foi na expressão de Miriam que surgiu uma nítida sombra. Ela concluiu:
—
O que aconteceu, aconteceu. De uma forma ou outra a justiça será feita. Todos
nós, no final, respondemos por nossos atos.
Samuel
segurou mais forte as mãos de Miriam. Os dois se olharam intensamente. Ela
voltou a sorrir, e percebeu os olhos dele marejados.
—
Considere um pedido meu: viva sua vida, Sam. Seja feliz! E não se preocupe,
você terá alguém que vai te amar muito.
—
Às vezes é difícil acreditar nisso.
—
Pois acredite. Pode demorar um pouco, mas sei que vocês vão se encontrar.
—
Alguma pista?
Os
dois riram, e Miriam respondeu:
—
Qual seria a graça se eu te dissesse?
Eles
ficaram um bom tempo olhando um para o outro, e finalmente Samuel disse:
—
Então... é adeus?
Desta
vez uma lágrima desceu pelo rosto de Miriam, mas ela não deixava de mostrar
aquele sorriso lindo e radiante.
—
Por enquanto sim. Vamos nos ver de novo, claro, mas depois de hoje vai demorar
muito.
—
Isso é uma boa ou má notícia?
Miriam
se levantou, veio até ele e o abraçou com carinho. Samuel fechou os olhos
sentindo todo o amor dela, e a moça por fim disse:
—
Depende somente de você, meu amor.
Ela
sorriu, o beijou, e se afastou andando de costas.
—
Eu te amo — disse Samuel.
—
Eu sempre vou te amar — respondeu Miriam.
As
formas da moça gradualmente se tornaram transparentes, e ela então entrou em
uma luz que se abriu à suas costas.
O
jovem Caçador sentiu uma lágrima teimando em escorrer do olho, enxugou-a, e por
instinto viu o celular novamente. Depois se demorou olhando para algum ponto
indefinível entre a mesa e o cenário do café.
A
casa estava movimentada. Clô, então, aproximou-se dele, apontou para o fone em
seu ouvido e perguntou:
—
A conversa foi boa, querido? Olha que parecia que ela, e espero que fosse ela,
estava bem aqui com você, pela sua expressão!
—
Acho que a impressão foi essa mesma — comentou Samuel sorrindo.
—
Vai querer mais alguma coisa?
Ele
pensou um pouco, olhou para ela, e a dona do café respondeu:
—
Outra fatia caprichada de bolo, claro!
—
E uma água com gás também, por favor!
Sam
tirou o fone do ouvido e o guardou na mochila, depois fez mais anotações no
caderno lembrando-se das palavras de Miriam. Aquela despedida fora difícil e
intensa, mas ele sentia que precisava muito daquele momento. E sentiu-se feliz
por ela estar em paz.
Clô
chegou com o segundo pedido, e ele aproveitou o restinho de tarde se
deliciando.
Estava
quase anoitecendo quando Samuel foi até o caixa. Clô fez questão de vir abraçá-lo
depois.
—
Nem perguntei, e sua avó?
—
Ótima, não para nunca.
—
É bom mesmo — e ela acrescentou baixinho — afinal as assombrações não param
também, né?
Samuel
confirmou.
—
E seu irmão que também anda sumido?
—
Agora é ele que está namorando.
—
Pois manda vir aqui!
—
Vou mandar. Obrigado, Clô, foi ótimo.
Trocaram
outro abraço apertado e ela completou:
—
Bom te ver, garoto, volte mais vezes!
Havia
começado uma garoa fina que já molhava tudo, Samuel correu até o Fuscão
vermelho, abriu a porta e acomodou-se. Ouviu a notificação do celular antes de
fechar a porta, segurou-o e leu o e-mail que havia chegado.
Dizia:
“A BLF Informática tem a satisfação de confirmar sua inscrição para o curso
gratuito de Estabilidade e Segurança nas Redes e Navegação Segura, a ser
realizado na data de...”.
Samuel
sorriu e guardou o celular. Tinha um mês para se preparar para ir a São Paulo.
Ligou o carro e saiu pelo trânsito pensando que sim, iria atender ao pedido de
Miriam.
Seria
muito feliz.
Vó Nena e os Caçadores retornarão.
Como
fazia tempo que não publicava uma história aqui no blog! Acreditem, também
senti falta, mas entre o Táquion FC (leram o artigo do post anterior, né?) e os
trabalhos no novo e-book de Vó Nena e os Caçadores, não sobrava muito tempo
para pensar em contos menores para cá.
Sim,
conforme já anunciei em meu perfil no Instagram, em 2025 teremos novidades! Já
se tornou a mais longa história deste universo, e ainda teremos um epílogo,
protagonizado pelo próprio Samuel e por...
Já
anunciei o nome dessa nova personagem no Insta, vão lá!
Este
conto simples mas que foi delicioso de escrever somente não fecha o arco de
Miriam porque ainda planejo uma história anterior a ele, que irá apresentar o
momento em que os Caçadores conheceram uma bruxa mencionada na história de
George Angelo, o prelúdio de O Livro Maldito. E claro que vocês sabem que o
Fuscão vermelho era dele. O mesmo Fuscão com que Daniel e Tatiana visitaram
Brasília na história da Caveira de Burro.
Lembrando
que, no início de O Livro Maldito, mostramos o que aconteceu com o sujeito
responsável pela morte de Miriam.
Além
disso, como puderam ver, este conto cria mais pontes com o universo dos alienígenas
de De Roswell a Varginha e Filhas das Estrelas, que por sinal é o mesmo onde
atuam os Caçadores! Já existe inclusive um roteiro para o conto que mostrará a
visita de Samuel a São Paulo, então aguardem.
Ainda
tenho a ideia de mais um conto natalino (este de outro universo, ou
Multiverso...), mas está ainda muito incipiente, e não tenho certeza se será
possível escrevê-lo e publicá-lo até o Natal. Tentarei organizar os temas...
quem sabe?
E,
se ainda não conhece o universo de fantasia, folclore, terror e lendas urbanas
de Vó Nena e os Caçadores, as tags aí abaixo podem ajudá-lo. E também está
apresentado o convite para ler também os e-books já publicados:
VÓ NENA E OS CAÇADORES: O FUSCA AZUL;
VÓ NENA E OS CAÇADORES: O LIVRO MALDITO.
Espero
poder encontrá-los aqui pelo blog novamente. Não se esqueça de seguir este
humilde escriba: @renatoa.azevedo .
Até
a próxima!