segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Vó Nena e os Caçadores: A Maldição da Caneta Azul

A movimentação em frente ao Grande Hotel, o maior da cidade, era intensa. O café diante dele, do outro lado da rua, não estava menos cheio, mas Daniel e Vó Nena conseguiram uma mesa de onde viam todo o panorama.
Uma dupla de adolescentes passou diante deles na calçada, e do celular que um segurava na mão saía a maldita música.

Nota do autor: Caro leitor, se quiser saber qual é a maldita melodia que representa o grande inimigo desta história, clique aqui por sua conta e risco. Não diga que não avisei.


Daniel viu que Vó Nena crispou a mão que segurava sua bengala de pau-brasil e ameaçou erguê-la, e disse:
- Calma, Vó!
- Calma é o caralho! – respondeu a anciã indignada. – Meu neto, estou caçando essa porra dessa caneta desde a década passada! Essa gentinha sem cérebro que fica fazendo graça e ouvindo essa merda de música não sabe com o que está mexendo!
O celular de Daniel tocou, ele atendeu, era Tatiana.
- Oi, amor. Ainda estamos aqui no lobby do hotel aguardando a “celebridade” – e os aspas ficaram nítidos com a entonação que Tati deu à palavra. – Alguma novidade?
- Vó quase acertou uns “aborrecentes” que passaram com o celular tocando a música maldita, e o Samuel ligou dizendo que conversou com Batista – disse Daniel após colocar o celular no viva-voz.
- Aqueles hackers de São Paulo? E o que disseram?
- Comentaram somente a teoria da conspiração de que as canetas são sondas alienígenas, e ele falou algo sobre Máquinas Von Neumann, algo assim.
- Uma máquina replicadora que aproveita os materiais do ambiente que se encontra para criar cópias de si mesma.
- Como você sabe disso!?
- Eu leio, amor, você não?
- Aqui temos máquinas que se multiplicam também – comentou Vó Nena. – São esses idiotas que se multiplicam conforme escutam essas merdas compartilhadas por outros idiotas.
- Vó – disse Tatiana – o Aristeu, aquele repórter da Tamara Bonfá, está aqui.
- Essa biscate quer a porra da caneta, claro. Chame se ela aparecer, filha, essa filha da puta não costuma sair no meio da multidão, mas todo cuidado é pouco.
Tatiana despediu-se e desligou, guardou o celular no bolso do blazer, ajeitou a blusinha propositalmente justa que usava por baixo e ficou olhando o movimento intenso no lobby do hotel. Jornalistas de vários veículos da cidade e da região haviam vindo cobrir a visita do autor da porcaria, melhor dizendo música de sucesso, e além deles vários curiosos e aproveitadores circulavam e conversavam em pequenas rodas.
Tatiana às vezes preferiria não ser vidente, pois algumas das impressões que tivera ali foram as piores possíveis.
Aristeu, o famoso repórter de Tamara Bonfá, discutia com a equipe do programa por vezes em tom ríspido. Tati já havia percebido que ele olhava para ela em algumas ocasiões com expressão de dúvida, e procurou se manter afastada. Sabia que Vó Nena e os meninos tiveram vários encontros com o sujeito, que a anciã dizia que tinha parte com tudo que é criatura das trevas, mas como ela era praticamente recém-chegada naquele grupo de caçadores, não era tão conhecida. Foi por isso que se voluntariou para aquela missão.
Um garçom passava com uma bandeja cheia de bebidas e ela pegou um copo de refrigerante. Enquanto bebia, reparou em mais uma figura que entrava no salão, e que desta vez a reconheceu de imediato e veio em sua direção. Não podia evitar, já que sua família e a dela eram próximas uma da outra, logo tomou um gole e armou seu melhor sorriso.
- Juíza Arlete, que surpresa!
- Você aqui, querida?
Apertaram-se as mãos. Arlete vinha acompanhada de duas garotas adolescentes, que Tati sabia serem suas filhas. Cumprimentou ambas e a mulher disse:
- Resolveu retornar à faculdade de jornalismo, meu amor?
- Ainda não, juíza. Mas o editor do Jornal da Cidade continua amigo do meu pai, e eu me ofereci para ajudar na cobertura deste evento.
- Entendo. Minhas meninas aqui são fãs do Mané Gomes, e ficaram insistindo para que viéssemos. Aliás olha o Aristeu ali, depois vou tentar conseguir um lugar no programa da Tamara. Quer que coloque você também, Tati?
A vidente quase engasgou com a bebida, mas se controlou a tempo. Depois de respirar fundo respondeu:
- Obrigado, juíza. Mas tenho outros planos para hoje à noite.
Arlete mandou as garotas circularem, se aproximou de Tatiana e disse:
- Tatiana, sei que não é da minha conta, mas parece que você continua namorando o Daniel, o neto da Nena.
- Acertou duas vezes, juíza – respondeu Tatiana bebendo o último gole e colocando o copo na bandeja de outro garçom que passava, ao mesmo tempo dizendo “obrigada”. – Estou muito feliz com o Daniel, e não é da sua conta com quem passo meu tempo.
Arlete a olhou com expressão espantada, mas em um instante já se mostrava a mesma juíza conhecida pela frieza no trato com as pessoas. Comentou:
- Não queria ofender, minha querida. Como sabe nossas famílias já tiveram uma história juntas, e eu gostaria muito que voltasse a ser como nos velhos tempos. O desentendimento com sua avó Esmeralda...
Poucas coisas realmente irritavam Tati, e aquela pessoa que ela sabia ser execrável, além das histórias que Vó Nena contava sobre os desentendimentos com a mulher, a faziam sentir como inaceitável que ela sequer se referisse à sua querida avó, também vidente e parceira de Vó Nena. Mas lembrando da missão controlou-se, sorriu e respondeu:
- Juíza Arlete, amava e amo minha avó mais do que tudo. Sei que ela teve excelentes razões para fazer o que fez. Assim como eu tenho. Com licença.
Virou as costas, mas deu dois passos e se virou:
- Aliás, minha avó sempre dizia que cada um escolhe seu caminho, e sendo assim merece totalmente o que vai encontrar ao final dele. Um bom evento, juíza!
Com as coisas horríveis que Vó Nena havia contado sobre Arlete se misturando à agonia que sentia pela proximidade com aquela mulher, Tatiana chegou ao ponto de se sentir tonta. Ficou muito claro para ela que a juíza queria a caneta, mas como sabia de sua existência e para quê a queria, a jovem vidente não conseguiu saber. Apanhou um copo d´água com outro garçom, bebeu tudo de um gole, verificou as canetas que trazia no outro bolso do blazer e ficou ao lado de uma janela para tomar ar.
Esforçou-se para rememorar tudo que Vó Nena havia contado na noite anterior a respeito da maldição da caneta azul.

- A caneta azul, meus netos – começou Nena na sala subterrânea de sua casa, que uma vez fez parte da maior fazenda da região – não foi sempre maléfica. No começo passou de mão em mão dos maiores compositores da música brasileira. A primeira, que me contou pessoalmente sua história, foi Inezita Barroso.


A anciã contou como a compositora, uma das maiores da música raiz, escreveu várias músicas de sucesso com a caneta. Depois, como se tornou comum ao longo de sua trajetória, o objeto foi passando de uma pessoa para outra.


- Uma porcaria de uma caneta esferográfica vagabunda! – prosseguiu Nena. – Mas como disse, desde os anos 60 até os 70, 80, a coisa foi passando de mão em mão em shows, encontros, bastidores... um emprestava pro outro que emprestava para o seguinte...


Apesar de não gostar nem um pouco, Vó Nena comentou que o auge mesmo foram os anos 80. Uma das mais criativas e prolíficas fases da música brasileira, principalmente o rock.


- O rock brasileiro dos anos 80 foi o melhor! – comentou Daniel.


- Tem quem goste – riu Vó Nena. – Mas concordo, meu neto, muito melhor do que o que se fez depois.
- A partir dos anos 90 começou a chuva de merda – disse Samuel.
O rapaz levou um cascudo de Vó Nena, que vociferou:
- Olha a porra da linguagem, caralho! Essa é a educação que sua mãe deu a vocês?
- Desculpa, Vó – disse Samuel massageando o cocuruto, bem onde a bengala dela havia acertado.
- Alimentada pela criatividade natural do brasileiro, a caneta nessa época não chegava a ser um objeto ruim. Mas de qualquer modo, foi quando começaram os rumores, e todas as coisas de poder como ela têm que ser tratadas com respeito, ou podem ficar perigosos. E foi isso que aconteceu a partir dos anos 90.
Quase ninguém havia se tocado, até então, que a caneta azul, além de nunca terminar, permitia que alguém talentoso desse livre fluir à sua imaginação e criatividade. Os rumores, correndo entre a comunidade mística e dos caçadores, chegaram enfim aos ouvidos de um empresário ganancioso, que em um golpe de sorte conseguiu obter a caneta.
- E foi aí que toda a merda começou – comentou Vó Nena. – Podem contar, meus netos, essas porcarias que o povo chama de música desde então, a partir dos anos 90 e começo dos anos 2000, a maioria absoluta foi escrita por essa caneta maldita.
- E conforme era usada para compor músicas cada vez piores, mais apelativas e “grudentas”, a maldição da caneta foi ficando pior, é isso? - perguntou Tatiana.
- Isso mesmo, minha querida – respondeu a anciã.
- Lembro quando começaram um pancadão lá no bairro – comentou Tatiana. - Os moradores se reuniram e reclamaram, mas nada dos folgados parar com o barulho. Nem chamar a polícia adiantou. Precisou o Seu Abílio, barbeiro conhecido de lá, dar uns tiros de espingarda para dispersá-los.
- Eu lembro – disse Daniel. - E o delegado Esperidião queria prender o Seu Abílio!
- O povo não deixou – acrescentou Tati. – Fez um cordão humano na frente da casa dele e o delegado teve que desistir. Aí na noite seguinte esse mesmo grupo começou a fazer barulho perto da Praça dos Pássaros, perto de onde estavam.
- Mas daí se estreparam, pois o José mora lá – disse Vó Nena. – Chamou toda a cambada de lobisomens dele e tocaram o terror com os filhos da puta dos funkeiros. Eles bem que tentaram chamar a polícia, mas o Esperidião nem se meteu a besta desta vez.
- Claro, quando tem algum Encantado envolvido ele acoberta tudo – acrescentou Samuel.
- E esses arruaceiros tentaram mais uma vez, mas como era perto da casa do Ramalho, ele no dia seguinte conseguiu aprovar na Câmara de Vereadores um projeto proibindo esse lixo de pancadão na cidade – finalizou Vó Nena. – Pra alguma coisa boa aquele pastor de merda serviu.
Todos riram. Então Nena passou os olhos pela ampla sala subterrânea, guardada por uma porta de carvalho muito sólida e cheia de trancas, além de vários feitiços. Ali estavam guardados livros, amuletos, e todo tipo de objeto místico ou mágico que a velha caçadora havia coletado ao longo das décadas. Apontou para uma caneta tinteiro exposta em seu estojo, sob uma cúpula de vidro, e acrescentou:
- Então, meus filhos, do jeito que está agora, a caneta azul só é menos perigosa que essa outra, que o calhorda do Vargas usou pra escrever aquela porra daquela carta testamento.
Os garotos se entreolharam. Também já haviam ouvido aquela história. O documento escrito pelo ditador é unanimidade entre a comunidade mágica e de caçadores como um dos objetos místicos mais maléficos do país. Vó Nena ouviu até mesmo de Esmeralda que, como parte de sua missão, ela um dia conseguiria destruí-la, ajudando a trazer novos tempos para o Brasil.
- E ainda tem a caveira de burro enterrada em Brasília – comentou Samuel.
- Isso mesmo, meu querido – aprovou Vó Nena. – E que, dizem os boatos, foi levada para São Bernardo durante os últimos dias de governo daquele outro filho da puta, poucos anos atrás. Disso não temos certeza, mas as buscas prosseguem.
Vó Nena se levantou apoiando-se na bengala de pau-brasil, olhou para os jovens e pensou como fora abençoada com aqueles meninos. Depois, com voz firme, concluiu:
- Mas nosso trabalho amanhã é a caneta azul. Vamos dormir, meninada, que teremos um dia cheio!

Samuel circulava com o Fusca Azul, apesar de continuar a não se sentir confortável no carro. Este tampouco gostava dele, fazendo brilhar os instrumentos do painel com uma luz vermelha, coisa que ele preferia ignorar. O semáforo fechou, e calhou que ele ficou parado junto à calçada, bem perto da mesa de Daniel e Vó Nena.
- Tatiana disse que encontrou a juíza Arlete, e sentiu que ela quer a caneta – veio dizer Daniel. Seu irmão respondeu:
- Só falta aparecer o Ramalho.
Fulgêncio Ramalho, autointitulado “pastor”, era vereador da cidade, enriquecera depois de fundar sua própria igreja, e era um dos maiores inimigos de Vó Nena. Daniel riu e comentou:
- A Vó duvida, porque o Ramalho é “carola” demais para usar um objeto mágico.
- Mas ele transformou o Vladimir, que ajudou Vó Nena por anos, em capanga. E o traíra deu a ele assunto para seus cultos. Dois filhos da puta que se merecem!
- O que você disse aí, moleque? – gritou Vó Nena da mesa.
- Nada Vó, tenho que ir, o farol abriu – respondeu Samuel.
Atrás já começavam as buzinadas, e o Fusca Azul acendeu os instrumentos e faróis com vermelho intenso, e chegou a engatar a ré para acertar o carro do impaciente que buzinara atrás, antes de Samuel forçar o câmbio, engatar a primeira e sair.
Ao lado, dois moleques que passavam ficaram se socando e dizendo “Fusca Azul”. Daniel riu e voltou para a mesa.

Tatiana ainda precisaria, após obter a caneta azul de Mané Gomes, escrever a matéria para o jornal do amigo de seu pai. Assim, após o começo da entrevista tomou notas em um pequeno caderno, fez uma pergunta genérica para a mais conhecida sensação da música brasileira, e escreveu a resposta esperando conseguir entender sua própria letra apressada.
Ela reparou que Mané estava acompanhado de um auxiliar, um rapaz forte de terno, e que carregava uma pequena bolsa que Gomes lhe havia entregado antes de sentar-se em uma cadeira diante dos jornalistas. E Tatiana observou também que foi dela que o candidato a músico famoso tirou algumas canetas a fim de assinar autógrafos para quem quisesse, ao final da coletiva.
Tati apanhou o celular, afastou-se até um canto e ligou para o namorado.
- Daniel, vou precisar de você aqui. Tenho uma ideia, mas seria bom contar com apoio próximo.
- Estou indo, meu amor – disse o rapaz desligando.
A vidente ligou em seguida para o outro irmão, pedindo que Samuel ficasse com o Fusca pronto para partir na viela atrás do hotel.
A equipe de Tamara Bonfá filmava tudo, Aristeu gravou uma conversa mais longa com Gomes após as perguntas dos demais jornalistas, que ficaram todos por ali aproveitando o coquetel servido e conversando. Tatiana reparou que Gomes bebera muitos copos das bebidas alcoólicas servidas, e viu quando ele se encaminhou para o banheiro, com o auxiliar atrás.
Ela viu Daniel nesse momento e apontou para a direção em que eles seguiram. Desviando-se das pessoas Tatiana chegou ao corredor isolado onde se situavam os banheiros, e viu que o sujeito alto aguardava na porta. Ela se aproximou, abriu o blazer e percebeu que chamou a atenção do rapaz.
- Oi, tudo bem? Estou cobrindo a coletiva do senhor Gomes para o Jornal da Cidade, e queria saber se poderia falar com ele.
- Não, o senhor Gomes só falará com exclusividade para o programa da Tamara Bonfá.
Tatiana fez cara de emburrada, aproximou-se mais do rapaz e passou a mão por seu braço, dizendo:
- Ah, por favor, vai. São só duas ou três perguntinhas... e claro que depois vou querer uma entrevista sua também, saber como é trabalhar para o novo astro da música brasileira. Vai ajudar a alavancar sua carreira com certeza!
Tatiana já havia descoberto que, aliada a um pouco de charme e lábia, sua faculdade permitia que tivesse certa influência sobre as pessoas, principalmente aquelas de “mente fraca”. “Mestre Obi-Wan”, era como Daniel às vezes a chamava. Conferindo-a de alto a baixo, o auxiliar de Gomes acabou cedendo.
Daniel, perto de onde o corredor começava, se misturava à multidão e assistia discretamente à “performance” da namorada.
Quando Gomes apareceu, Tatiana usou dos mesmos subterfúgios, e no estado em que se encontrava o projeto de músico não resistiu a ela.
- Você é mesmo uma graça, menina.
- Obrigada, senhor Gomes. Então, ao que o senhor atribui o sucesso da música?
- Ah, dou graças a Deus por isso, tenho mais de mil outras que escrevi, e espero que possa fazer sucesso com elas também!
- Que bom, torço para isso – respondeu Tatiana continuando a escrever no caderno. Ela então balançou a caneta que usava, e lançou um olhar sedutor para Gomes, ao mesmo tempo em que sinalizava discretamente para Daniel com a outra mão.
- Senhor Gomes, o senhor poderia me emprestar uma caneta? Acho que a tinta da minha acabou.
- Claro, minha querida – e o auxiliar abriu a bolsa, remexeu nela e tirou dali uma caneta verde.
Tatiana olhou para a caneta, depois para Mané e disse:
- Senhor Gomes... fico até sem graça de pedir...
- Tudo que uma moça bonita assim quiser!
- Sabe, sou uma jornalista muito meticulosa, e faço questão de escrever sempre em azul no meu caderno. Método profissional, sabe?
- Mas claro! – disse Gomes ainda enrolando a língua. – Sei bem o que é isso!
Ele remexeu na bolsa e tirou uma caneta azul. Tatiana no mesmo instante sentiu algo a respeito do objeto, ao que Mané acrescentou:
- Sabia que foi esta mesma a caneta azul com que eu escrevi Caneta Azul?
Tatiana segurou o objeto, esforçou-se por um instante para ignorar as energias que dela fluíam, e respondeu:
- Nossa, mas que honra! É bem rápido, senhor Gomes, muito obrigada!
Tatiana colocou a ponta da caneta sobre a folha, mas deixou o caderno cair ao chão.
- Como sou desastrada! – ela disse.
Gomes deu um cutucão no auxiliar, que se abaixou para apanhar o caderno. Ao mesmo tempo Daniel chegou fingindo que também havia bebido demais, e disse com voz enrolada:
- É aqui o banheiro? Acho que aquele último copo foi demais!
- É sim, moço.
E com os dois distraídos Tatiana aproveitou, enfiou a caneta azul maldita no bolso e escreveu no caderno entregue pelo auxiliar com uma esferográfica comum, que entregou a Gomes dizendo:
- Muito obrigada, senhor Gomes! O senhor não faz ideia de como me ajudou!
- Eu que agradeço, minha querida!
Gomes já foi abraçando Tatiana, ela retribuiu a contragosto mas logo conseguiu se livrar. O pretenso músico comentou:
- Vejo a menina bonita hoje no programa da Tamara Bonfá?
- Depois desta exclusiva, pode contar com isso!
O auxiliar guardou a caneta na bolsa e conduziu Mané Gomes de volta para os jornalistas. Ele não tirava os olhos de Tatiana, que aguardou pacientemente que eles desaparecessem para bater na porta do banheiro. Daniel saiu, e o casal foi andando no sentido oposto, passando por uma porta que era um acesso auxiliar à cozinha.
- Deu vontade de bater nesse safado – comentou Daniel.
- Oh, o cavaleiro quer salvar a dama em apuros – ironizou Tatiana.
Eles se deram as mãos, mas a vidente se mostrava cada vez mais incomodada com o objeto místico que estava em seu bolso. Por cima sentiu uma presença atrás deles, enquanto desviavam dos cozinheiros e outros trabalhadores da grande cozinha, e após cruzarem mais uma porta ela olhou pela pequena janela desta.
A juíza Arlete os seguia, e sua expressão parecia furiosa.
Depois de cruzarem mais alguns aposentos e corredores acharam a saída para a viela, onde Daniel os esperava. Arlete abriu a porta segundos depois e ficou olhando para o trio no carro.


O Fusca Azul acendeu instrumentos do painel e faróis em um vermelho intenso, e engatou sozinho a primeira, roncando forte o motor. A juíza se assustou, mas Samuel engatou a ré e eles se afastaram, entrando no trânsito sob uma saraivada de buzinas. Mais uma volta no quarteirão do hotel e apanharam Vó Nena, rumando em seguida para casa.
Arlete ainda olhava para a viela vazia, depois apanhou o celular e teclou um número.
- Esperidião, sou eu. Os netos de Nena pegaram a caneta. Olha a linguagem! Eu sou uma juíza, enquanto você é só o delegado da cidade. É, conversamos depois.
Arlete virou as costas e entrou pela mesma porta por onde saíra.

- Esse programa da Bonfá valeu a pena! – comentou Vó Nena descendo as escadas do porão. – A cara que a filha da puta fez quando voltou do intervalo foi a melhor!
Segundo a anciã sua história com a apresentadora vinha de longa data, mas nunca entrara em maiores detalhes. Os jovens esperavam que, quando sentisse a necessidade, a experiente caçadora falasse a respeito com eles.
A caneta azul foi depositada junto a outros objetos, incluindo outras canetas bem mais refinadas, um par de óculos, abotoaduras, alguns monóculos e um par de luvas femininas, em uma gaveta trancada a chave de uma velha escrivaninha de carvalho. Sobre esta, entre dois aparadores, vários livros que Vó Nena alertara a eles repetidas vezes para nunca abrir sem que ela estivesse presente, incluindo um que ela dizia que era a versão original do Necronomicon, do árabe louco Abdul Alhazred, dado a conhecer ao mundo pelo escritor e mestre do horror cósmico H. P. Lovecraft.
- Então, e agora Vó? – perguntou Tatiana.
A anciã se aproximou da garota, deu-lhe um beijo e acariciou lhe o rosto, antes de dizer:
- Agora a caneta azul maldita está segura, minha filha, assim como todas estas coisas. E você, tá melhor?
- Sim, Vó, obrigada. Carregar essa coisa me deixou cansada, só isso.
Vó Nena sorriu, deu um tapinha na lombada do Necronomicon e disse:
- Nem te conto como sua avó ficou quando conseguimos nos apossar deste aqui. Pela baba de Cthulhu! – e riu.
- Outra história que adoraríamos ouvir, Vó – comentou Samuel.
- Quando for o tempo, meu neto – disse ela. – E você, Daniel, agiu bem, gostei muito de ver como trabalharam bem em equipe.
Eles subiram as escadas, Vó Nena fechou todas as trancas e recitou um encantamento.

Noites depois, Tatiana acordou sobressaltada. Sentou-se na cama banhada em suor, tremores tomaram conta de seu corpo, e ela voltou a sentir as mesmas as energias negativas de quando a caneta azul maldita esteve em seu bolso.
Um rumor se aproximou, e ela percebeu que era um carro vindo pela rua. O som estava no último volume, e ela ouviu a música composta pelo instrumento maléfico.
A vidente suspirou, acalmou-se, bebeu um copo d´água e jogou-se novamente na cama.
Pelo menos da ameaça de coisas piores vindas daquela coisa estavam livres.

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