Samuel dirigia o Fuscão vermelho em meio ao trânsito, desceu a Avenida Angélica e dobrou uma esquina à direita.
Havia
uma vaga diante do lugar que pretendia visitar, delimitada por cones, e ele estacionou
ali. Fazia algum tempo desde a última vez que visitara São Paulo, e o jovem
Caçador sentiu satisfação por sair e esticar as pernas.
Parou
alguns instantes para olhar a fachada. O Sebo do Tobias continuava o mesmo,
ocupando aquele endereço havia décadas, Pela vitrine dava para ver pessoas se
movimentando entre as estantes da livraria. Sam sorriu, ajeitou o blazer e se
encaminhou para a porta.
Esta
se abriu com o toque de um sino. O lugar parecia mais limpo e organizado do que
em sua última visita, e um rapaz coo crachá se aproximou dele.
—
Bom dia, em que posso ajudá-lo?
—
Bom dia. Estou procurando a Amélia.
O
funcionário olhou para Sam, depois para trás ao longo do corredor formado por
estantes. Outra moça com crachá passou por eles, acompanhada por uma mulher e
um casal de crianças. O rapaz voltou a encará-lo e disse:
—
Ela está ocupada no momento, se eu puder fazer algo...
—
Pode deixar que eu atendo esse moço! — disse subitamente uma voz feminina.
Ambos
se viraram, e uma mulher de trinta e poucos anos, mais baixa que Samuel e um
pouco acima do peso, se aproximou. Era loira e usava o cabelo preso em um rabo
de cavalo. Ao ver o Caçador abriu um sorriso e os braços, dizendo:
—
Samuel, meu querido, há quanto tempo!
O
Caçador deu um passo e eles trocaram um abraço apertado. Ela acrescentou:
—
Está bonito, vai aonde?
Duas
crianças se aproximaram deles nesse momento, e uma das meninas disse:
—
Moça, tem livros voando lá no fundo, passando de uma estante para outra!
Amélia
se virou para ela, abaixou-se um pouco e disse:
—
Ah, isso são os efeitos especiais da seção de livros de horror. Fazemos para
brincar com os clientes, mas acho que eles são muito assustadores para vocês. A
menos que gostem de sustos!
As
meninas riram, e Amélia disse para o rapaz acompanhá-las até sua mãe. A dona da
livraria se voltou para Sam, que sorria dizendo:
—
Seu avô, pelo visto, continua bem ativo...
Os
dois riram, e a mulher o conduziu pelos corredores até uma escada, por onde
subiram para o segundo andar. Enquanto passavam pelas estantes mais livros flutuaram
de uma prateleira, cruzando o corredor e se encaixando na do outro lado.
Entraram no escritório e o Caçador comentou:
—
Absolutamente adoro essa referência cinematográfica!
Amélia
se sentou em uma cadeira atrás de uma grande e antiga mesa de madeira, toda
trabalhada, abarrotada com papéis e livros. As paredes do pequeno aposento
estavam tomadas por estantes igualmente repletas de tomos, que pelas lombadas
pareciam antigos, além de vários deles exibirem um aspecto ameaçador.
Assim
que Sam fez o comentário o ar tremeluziu, e uma figura levemente azul e
translúcida apareceu. Era grande, vestia um sobretudo puído sobre a roupa,
tinha cabelos e barba brancos e longos, e óculos que realçavam os olhos claros.
—
Samuel, meu bom rapaz!
O
neto de Vó Nena sorriu para a aparição e disse:
—
Que bom te ver, Tobias! Como está?
—
Você sabe, indo e vindo do Grande Além.
—
E aporrinhando clientes e funcionários — disse Amélia.
—
E qual é a graça de assombrar a própria livraria e não poder se divertir?
—
Tem que reconhecer, Amélia, seu avô dá um clima todo especial a este lugar.
—
Eu sei, fizemos até saraus madrugada adentro recentemente.
—
E nem convidam!?
Todos
riram. Sam, então, acrescentou:
—
Como está Dona Bernadete?
Amélia
trocou olhares com o fantasma de Tobias e respondeu:
—
Mamãe está bem, ainda muito ativa, não para um segundo nem que eu brigue com
ela. Teve uma gripe recentemente e eu proibi que ela viesse aqui por pelo menos
duas semanas.
—
Mande um beijo meu pra ela.
—
Mando sim. Mas pelo que sei você não veio aqui pra conversar sobre amenidades,
né?
Levantou-se
e foi até os fundos do escritório. Abriu uma estante fechada com cadeado, e de
lá tirou um livro de tamanho comum, mas com capa de couro bem desgastada e
repleta de símbolos místicos em relevo.
—
É este aqui que você e sua avó queriam?
Sam
apanhou o livro, examinou-o detidamente e o cheirou de leve. Os dois o observavam
divertidos. Abriu o volume e o folheou, parando em algumas páginas que exibiam
figuras e diagramas. Leu alguns trechos, depois voltou a fechá-lo e ficou
admirando a capa.
—
Tratados sobre Passagens Místicas e As Coisas que Lá Habitam.
—
Esse foi difícil de achar — comentou Tobias, flutuando sobre eles. — Um de
muitos que a ditadura militar proibiu e tentou tirar de circulação.
—
Pois é, resultado não desejado da colaboração dos Caçadores com os militares,
contra os comunistas que praticavam magia negra.
—
Um dia essa história deveria ser contada — comentou Amélia.
Samuel
olhou para ela, sorriu e disse:
—
Tenho um monte de arquivos com relatos de minha avó e outros Caçadores. A
Tatiana também começou a ajudar, ficou entusiasmada com as histórias.
—
Seu irmão que está no bem-bom com aquela belezura de morena, né? — riu Tobias.
— E você, meu caro?
—
Vô, deixa quieto, não lembra aquela coisa horrível que aconteceu com a ex dele?
O
fantasma tirou os óculos, olhou para os dois e respondeu:
—
É verdade, me desculpe, meu rapaz!
—
Não precisa. Recentemente a encontrei, e pudemos nos despedir antes dela fazer
a passagem. Estava feliz, isso que importa.
Sam
explicou que o livro era para afinal irem a fundo na questão envolvendo o
Fuscão vermelho com o qual viera. Relatou em poucas palavras o estranho caso de
George Angelo, como o carro ficou não somente próximo aos lugares malditos de
Boa Graça, o Casarão da Rua das Dores e o Morro dos Uivos, como também esteve
diante de mulas-sem-cabeça e de crias tentaculares.
—
Essas aberrações gosmentas, jura? — perguntou Tobias. O fantasma nitidamente
sentiu um arrepio, e completou: — Lá no outro lado ninguém fala disso, se eu não
tivesse assuntos inacabados, o que me permite ir e vir do além, nem saberia
dessa história.
—
Vô, o senhor ajudou a Nena e a Esmeralda aquela vez — comentou Amélia.
O
fantasma olhou para a neta, depois bateu com a mão na testa e respondeu:
—
Ah, é! Tá aí outra história a ser contada, meus jovens. Você sabe, né, Samuel,
que seu bisavô foi pros Estados Unidos e...
—
Sei sim, Tobias — riu-se o jovem Caçador. — E é verdade, essa é outra que um
dia, quem sabe, devêssemos colocar nas nossas crônicas.
Depois
de momentos de silêncio Amélia questionou:
—
Ainda não disse aonde vai bonitão assim.
—
Um curso em uma firma de informática e internet lá na zona sul.
—
Você é mesmo o nerd da equipe de Vó Nena!
Riram
novamente. A conversa se desviou para variados assuntos. A livreira e seu avô
fantasma comentaram então que muitos Caçadores que vinham ao sebo descreviam um
aumento de atividade de assombrações e aberrações por todo o país. Mais pessoas
falavam sobre os causos do folclore e lendas urbanas, e alguns de sua
comunidade até comentavam que indivíduos estranhos apareciam fazendo perguntas
a respeito.
—
Tome cuidado, garoto — disse o fantasma de Tobias. — As forças das trevas andam
assanhadas, aquela linda da sua cunhada vidente deve estar sentindo.
—
Valeu pelo aviso, Radagast — respondeu Sam.
—
Ah, se tivesse dito Gandalf teria sido mais legal!
Todos
riram.
Samuel
ainda se sentia leve e divertido ao finalmente embicar o Fuscão vermelho na
entrada do estacionamento daquele moderno edifício na Avenida Berrini, na zona
sul da cidade. Desceu a rampa e parou diante da cancela, e um senhor veio ter com
ele.
—
Bom dia.
—
Bom dia. Vim para fazer um curso na BLF Informática.
O
Caçador estendeu seus documentos e a mensagem de e-mail impressa que lhe enviaram.
O vigia voltou à sua mesa, fotografou tudo com o celular e enviou os arquivos.
Em
menos de um minuto uma mensagem foi recebida, e o homem abriu a cancela depois
de devolver a papelada.
—
Pode estacionar onde quiser, meu rapaz, depois suba até o décimo andar.
—
Obrigado.
—
Aproveitando, belo carro. Lembro que meu pai teve um igualzinho.
—
Minha família tem uma pequena coleção — sorriu Sam.
Ele
dirigiu o Fuscão e logo encontrou uma vaga. Estava um pouco adiantado, e pensou
se não deveria primeiro ter procurado aquela pensão que sabia existir em uma
das travessas da avenida. Desistiu por hora, deixou sua pequena bagagem no
carro e só levou a mochila, onde trazia o livro que pegara no Sebo do Tobias.
Subiu
pelo elevador conforme orientado, saindo dele em um hall amplo. À sua direita
havia uma mesa ocupada por duas moças, cada uma com um laptop.
Aproximou-se
e mostrou novamente a documentação. Uma delas sorriu para ele, examinou tudo e
falou a um telefone após apertar uma tecla:
—
Cristine? Sim, o senhor Samuel chegou. Certo, vou mandar entrar.
Devolveu
os documentos e disse:
—
Ao entrar o senhor vai falar com Cristine, secretária-chefe. Antes, coloque por
favor a mochila aqui.
Apontou
para uma portinhola do lado esquerdo, que Sam abriu e fez como indicado. Havia
uma esteira, e a mala seguiu por ela.
—
É um raio-X como dos aeroportos, praxe em nossa empresa — explicou a moça. — Lá
dentro o senhor apanha sua mochila novamente.
—
Obrigado — respondeu Sam se dirigindo para a porta, que também tinha um
detector de metais.
Depois
de entrar viu à sua direita o final da esteira, e voltou a apanhar a mochila. A
sala diante dele era ampla com várias pessoas, homens e mulheres, falando ao
telefone ou trabalhando em seus computadores.
A
primeira mesa à esquerda era ocupada por uma moça oriental muito bonita,
vestindo blazer escuro. Tinha os cabelos de comprimento médio, e na pequena
plaqueta sobre a mesa estava escrito o nome Cristine Kobayashi. Ela, então,
disse:
—
É o Samuel, certo? Posso chamá-lo de você? Aqui na BLF Informática somos bem
informais.
—
Claro que sim — respondeu Sam sentando-se na cadeira diante da mesa.
Dedilhando
com rapidez no teclado, a moça ainda conseguia observar o rapaz em alguns
momentos. Ele olhou em torno, admirando as três prateleiras na parede atrás
dela, onde havia uma katana e duas espadas menores do mesmo estilo.
—
Preciso tirar sua foto, pode ser?
Samuel
fez que sim, e ela pegou uma câmera profissional de uma mesa menor a seu lado.
A parede atrás dele era branca, e em poucos segundos a imagem foi obtida.
Enquanto
a moça trabalhava o Caçador olhou ao redor. Já reparara que o ambiente era
monitorado por várias câmeras, e todos usavam crachás com seus nomes, fotos,
código de barras e QR, além de outro tipo que nunca vira antes. Os computadores
e laptops eram igualmente do tipo mais moderno e caro disponível no mercado.
Ele
se virou para Cristine, e deu com a secretária olhando para ele. A moça sorriu
de leve e baixou os olhos novamente para a tela do laptop. Depois de mais
alguns instantes ela se virou e estendeu o braço na direção da impressora ás
suas costas. Tirou a folha impressa, dobrou-a e a inseriu em um crachá que
tirou da mesma mesa da câmera, estendendo-o em seguida para ele.
—
No crachá estão todos os seus dados, Samuel, e pode inclusive compartilhá-los
com seus colegas se quiser. Use-o para entrar no prédio e aqui mesmo, e não o
tire nunca enquanto estiver na empresa, certo?
—
Combinado, Cristine — disse ele prendendo o crachá ao blazer. — Também posso te
chamar de você?
—
Deve!
Ela
sorriu, e ele retribuiu o sorriso. A seguir se levantou dizendo:
—
Vou com você para mostrar o caminho, o curso será no andar de cima.
Sam
constatou que ela combinava o blazer com uma minissaia justa e sapatos baixos,
e embora fosse magra era curvilínea, com pernas belamente formadas. Era mais
baixa que Tatiana. Ele a seguiu, e por mais de uma vez Cristine olhou para trás
e sorriu.
—
Quer dizer que vou ver você pouco pelos dias que durar o curso? — ele perguntou
ao entrarem no elevador enquanto ajeitava os óculos.
A moça sorriu, baixou os olhos, depois o encarou novamente.
—
Na verdade vamos nos ver muito, sim, minha função é secretária-chefe mas sou
mais a faz-tudo da firma.
—
Vai me dizer que é a segurança também, com todas aquelas espadas?
Cristine
olhou séria por um momento para Samuel, depois sorriu de novo. Respondeu:
—
Não seria a coisa mais estranha ou radical que já fiz a serviço da empresa.
O
elevador parou, Sam segurou a porta, Cristine agradeceu e passou por ele. Andou
à sua frente, de novo olhando para trás em determinados momentos.
Passaram
por um corredor também monitorado por várias câmeras, com portas de ambos os
lados. Chegaram a uma específica, que Cristine abriu, dando passagem a ele.
—
Pode aguardar que Batista, um dos sócios, logo virá para falar com vocês.
Havia
outras duas pessoas aguardando. Sam se sentou em uma cadeira e, antes de fechar
a porta, Cristine lançou outro sorriso somente para ele.
—
E o que eu queria recapitular com vocês, pessoal, e estes tópicos valem tanto
para segurança online corporativa como até mesmo para a doméstica: treinar
todos que utilizam os equipamentos para os cuidados na navegação e no trabalho
online; manter sempre softwares atualizados (evidentemente que os que
fornecemos também); senhas fortes; manterem backups atualizados; usem VPN e criptografia...
Quem
listava os itens era Batista, um dos sócios da BLF Informática e professor do
curso. Ele tinha aparência de cerca de quarenta anos, era bastante jovial e
brincalhão, um pouco mais baixo que Samuel e falava bastante com cada um dos
alunos.
Estes,
por sua vez, eram na maioria pequenos empresários. Havia um enviado de uma
grande empresa, e três usuários domésticos contando com o Caçador. Por sinal, o
executivo mostrou-se muito interessado quando Samuel disse vir de Boa Graça, no
interior de São Paulo.
Finalizada
a aula da manhã, Batista disse que tinham duas horas livres para o almoço, e
que na parte da tarde começariam a lidar com os programas disponibilizados pela
empresa em uma rede montada naquela sala.
—
E se preparem, pois será intenso — brincou o empresário.
Samuel
arrumou suas coisas, guardou o caderno onde fazia as anotações, e estava para
apanhar o celular e procurar algum restaurante ou lanchonete próximos quando
uma voz feminina disse perto dele:
—
Oi, tem planos pro almoço?
Ergueu
os olhos e deu com Cristine a seu lado. Sorriu e respondeu:
—
Ia justamente procurar onde comer. Ouvi alguns da turma dizendo que iriam ao
shopping aqui perto.
—
Ah, muito cheio e banal demais. Se quer comer bem pode me acompanhar, conheço
um restaurante ótimo aqui perto.
Samuel
aceitou, e eles desceram pelo elevador. Para não ficar carregando a mochila ele
pediu para irem ao estacionamento e a deixou no Fuscão. Cristine, achando
graça, disse:
—
Lembro que meu avô tinha um assim, acho até que era vermelho também, ou
laranja.
—
Minha família curte, temos outros antigos.
Voltaram
ao elevador e logo andavam pela avenida, cheia de gente àquela hora. Depois de
poucos minutos atravessaram e seguiram por uma rua transversal menor, e no
final do primeiro quarteirão entraram em um restaurante simples mas bastante
acolhedor.
Cristine
sugeriu o filé com fritas do local, dizendo ser a porção individual farta e
muito saborosa. Sam achou graça e concordou, e enquanto aguardavam após o
pedido conversaram. Ela disse ser da segunda geração nascida no Brasil, seu avô
viera do Japão, da província de Nagano, após a guerra, estabelecendo-se em
Bauru, onde ainda vivia. Após se formar no colegial ela foi passar alguns anos
na Terra do Sol Nascente para estudar, e ao retornar teve várias ocupações.
—
Estou na BLF Informática faz um ano e meio.
—
E já conquistou uma posição de tamanha confiança com seus chefes, parabéns.
—
Sou esforçada — Cristine riu.
Sam
recebeu uma notificação no celular, pediu licença e verificou. Respondeu
rapidamente ao irmão Daniel sobre como estava indo, e então reparou que a moça
olhava distraída pela janela do restaurante.
Ele
aproveitou e bateu uma foto dela, mas o som da câmera do celular o traiu.
—
Você tirou uma foto minha?
Cristine
tentou dizer isso em tom indignado, mas seu sorriso a traía. Sam respondeu:
—
Costumo sempre fotografar minha companhia no primeiro almoço juntos.
—
Então vem cá e faz direito.
A
resposta dela o surpreendeu, mas ele se levantou e foi para o outro lado da
mesa. Ao mesmo tempo Cristine pendurou a bolsa na cadeira a seu lado, e
aproveitou para tirar o blazer e também colocá-lo ali, revelando vestir uma
blusa branca e justa por baixo. Samuel sentou-se ao lado dela, eles se
aproximaram e finalmente bateram uma selfie.
—
Ficou ótima, me manda depois? — perguntou com o celular dele nas mãos.
Como
ele fez que sim, a moça inseriu seu nome e número na lista de contatos. Depois
ficou observando a imagem de fundo, que mostrava Samuel, Daniel, Tatiana e Vó
Nena diante do Fusca Azul na propriedade da Caçadora. A aconchegante casa dela
também aparecia, e Cristine perguntou:
—
Que foto linda, sua família?
Sam
explicou quem eram e qual lugar era aquele, e ela respondeu:
—
Parece tão acolhedor e gostoso! Sinto saudades do sítio do meu avô em Bauru,
faz tempo que não volto lá, tem sido só trabalho e trabalho.
—
Quem sabe possa nos visitar em Boa Graça também?
—
Adoraria! Mas me conta mais, já li sobre sua cidade, é verdade que é um dos polos
de folclore do interior?
Samuel
sorriu, mas algo dentro dele foi acionado diante da menção dela à principal
característica local, e também à razão de ser dos Caçadores. As bebidas foram
trazidas nesse momento, e depois de brindarem ele respondeu:
—
O que não faltam na cidade são histórias do folclore e lendas urbanas. Estamos
até compilando alguns dos principais causos.
—
Jura? É escritor?
—
Tenho meus momentos, e minha cunhada também.
Cristine,
sempre com seu adorável sorriso no rosto, bebeu seu refrigerante e disse:
—
Me conta alguma lenda da cidade!
Samuel
sorriu de volta, e narrou algumas das histórias mais conhecidas, relatos das
casas mal assombradas e outros causos. A comida chegou nesse momento, eles
brindaram de novo, e a conversa continuou com assuntos amenos.
Pelo
meio da tarde já estavam em um exercício, os computadores da sala de aula
conectados como se fossem os de uma empresa de médio porte. De repente, o
alarme.
—
Alerta de intrusão, o monitor do firewall aponta para um enfraquecimento na
proteção.
—
Vírus ameaça se espalhar pelo sistema, rastreando a fonte!
—
Múltiplas conexões ao servidor, atraso na resposta.
—
Vamos, pessoal, vamos, conforme aprendemos — disse Batista bem-humorado,
circulando entre as mesas.
Os
alunos utilizavam os programas e aplicativos da BLF para tentar sanar o
problema. Além de computadores todos dispunham de celulares corporativos, e
chamou a atenção de Samuel como todos os equipamentos eram de último tipo.
Adoraria ter algum daqueles para seu uso em Boa Graça, mas só pôde suspirar e
se concentrar na tarefa.
Olhou
fugazmente para Cristine, que ocupava também um equipamento e auxiliava a
equipe. Ela perguntou:
—
Pessoal, como está a situação do vírus?
Eles
utilizavam modernos softwares com protocolos de criptografia e inteligência de
identificação de ameaças. Porém, assim que uma frente era trancada, o ataque
vinha por outra direção.
—
O vírus utiliza código flutuante! — disse Abelardo, funcionário de uma pequena
empresa, da qual era o responsável pela segurança online.
Alguns
dos demais, atuando de forma coordenada conforme suas funções, aplicaram os antivírus
e programas vacinas da BLF. Contudo, por não conseguirem identificar a fonte,
isso somente livrava determinadas máquinas da infecção, enquanto o inimigo
continuava no sistema.
—
Depressa, meus caros, rapidez é fundamental nesses casos — incentivou Batista.
O
executivo parou de andar entre as mesas dos alunos e se postou ao lado da de
Samuel. Conseguia ter uma boa visão de todos, e ao mesmo tempo ficava de olho
no jovem que já havia chamado sua atenção, com bons e pertinentes comentários e
perguntas quanto a tudo que já havia sido exposto.
Existiam
mais motivos do interesse de Batista, e naquele momento os deixou de lado.
—
Antivírus adaptativo consegue limpar as máquinas, mas a infecção continua
buscando brechas no firewall.
—
Tentando bloquear acessos ao servidor, como podem enviar tantas solicitações ao
mesmo tempo?
—
Eu avisei, pessoal — comentou Batista. — Temos alguns dos melhores entre os
melhores para trabalhar com vocês e testá-los. Vamos lá!
Samuel
era o que menos falava, e com os programas instalados em seu laptop e celular
tentava rastrear a origem do vírus. Conforme as instruções de Batista deveria
conseguir, porém não era o que aparecia em suas telas.
Então
se lembrou. Alguns colegas haviam recebido notificações bastante evidentes,
tanto nos celulares quanto laptops. E um deles fora Cristine.
—
Cris, por acaso você abriu algum e-mail não previsto?
A
moça ergueu o olhar e eles se encararam. Ela não conseguiu evitar um sorriso
por ele chamá-la da mesma forma que Batista fizera quando veio participar do
treinamento.
—
Não, Sam — ela riu e também adotou o diminutivo do nome dele. — Não se abre
e-mails pessoais, muito menos de desconhecidos, no celular corporativo.
—
Claro — acrescentou Batista. — Lembremos todos de um dos elementos mais
importantes e essenciais na segurança online: o fator humano!
—
Por isso pergunto — insistiu Samuel. — Quem mais recebeu notificações? No
computador ou no celular? Lembro de ouvir ao menos cinco ou seis, e nós somos
quinze.
As
pessoas levantaram as mãos, mas todos negaram ter aberto e-mails suspeitos. Abelardo,
entretanto, não respondeu, voltando a trabalhar em seu computador.
—
Abelardo?
Sam
o questionou, e o homem finalmente ergueu os olhos. De maneira fugaz ele se
voltou para Cristine, e então Samuel entendeu:
—
Pessoal, isolem o celular e computador de Abelardo, é a origem do vírus.
Todos
olharam para o Caçador. Boa parte lançou olhares para Batista, que deu de
ombros. Finalmente, dois membros da equipe acataram a sugestão do rapaz.
A
ameaça foi neutralizada instantes depois.
Batista
bateu palmas e depois, com a mão sobre o ombro de Samuel, disse de forma que
todos ouvissem:
—
Parabéns, pessoal, todos tiveram um excepcional desempenho. Obrigado a Abelardo
por concordar em ser o elo fraco de nossa empresa simulada. E destaco a rapidez
de raciocínio deste rapaz, Samuel.
Todos
aplaudiram. O Caçador olhou de relance e viu Cristine também batendo palmas,
exibindo um sorriso radiante. Abelardo se aproximou e eles apertaram as mãos,
enquanto Batista comentou:
—
De novo, pessoal, espero que tenham aprendido. Absolutamente tudo importa
quando se trata de segurança online e corporativa. Nós fundamos a BLF
Informática em 1999, começando por baixo, e hoje estamos entre os líderes do
mercado. E uma das premissas que sempre seguimos está justamente no que Sam
demonstrou hoje: o fator humano é sempre o mais importante. Tanto pode ser o
escudo definitivo contra ameaças, como o elo mais fraco para que estas nos
atinjam.
Olhou
de novo para todos e concluiu:
—
Acreditem, neste ramo nunca se pode ser cuidadoso, zeloso ou mesmo paranoico
demais.
Todos
foram liberados para um coffee break de meia hora. Os alunos trocaram mais cumprimentos,
e Samuel fora o último a se levantar enquanto fazia anotações em seu caderno.
—
Ainda no registro analógico? — Cristine falou sobre o ombro dele.
Sam
se voltou, e a moça o olhava. Ao lado dela Batista. Ele se levantou e encarou
os dois.
—
De novo, meu rapaz, parabéns — Batista estendeu a mão e eles se cumprimentaram.
—
Só tenho a agradecer a vocês. Primeiro dia e tanto já aprendido! E respondendo
a você, Cris, sim, prefiro anotar as coisas, sou assim desde criança, isso
sempre me ajudou a fixar os assuntos na mente.
—
Estou curioso — comentou o empresário. — Você é de Boa Graça, e o que faz lá?
Está pensando em empreender?
Samuel
sorriu, e instantes depois respondeu:
—
É uma possibilidade. Cheguei a estudar letras em uma faculdade em Campinas, mas
não gostei do clima de lá. Desde então tenho feito um pouco de tudo, e este
curso foi a melhor oportunidade desde então.
—
E pretende fazer o quê com o que está aprendendo? — Cristine não resistiu e
perguntou.
—
Tenho um blog de acesso restrito, só para uma comunidade que temos com membros
espalhados por todo o Brasil. Uma fonte de informações que vou atualizando aos
poucos.
—
É sobre o quê?
Sam
olhou para Batista, que fizera a pergunta.
—
Digamos que somos todos estudiosos de culturas e folclore locais. Então o blog
contém causos, endereços de outras fontes de informação, livrarias, bibliotecas
e fornecedores de outros elementos que qualquer um de nós possa precisar.
—
Isso é muito bacana! Espero que faça bom proveito! E, aproveitando, onde
pretende se hospedar por estes dias?
—
Encontrei uma pensão em uma rua próxima, devo ir lá mais tarde.
Batista
e Cristine se entreolharam, e o empresário disse:
—
Isso tomará muito tempo. Que tal ficar por aqui mesmo?
O
rapaz ficou surpreso, e momentos depois perguntou:
—
Como assim!?
—
Temos uma ala residencial lá em cima — esclareceu Cris. — Eu mesma tenho um
apartamento no antepenúltimo andar do prédio. Nos andares abaixo ficam
instalações temporárias, semelhantes a de hotéis executivos, pequenas e práticas.
—
Acho que ultrapassaria meu orçamento.
—
Mas o que é isso!? — respondeu Batista. — Faço questão que fique conosco, e
tudo por conta da empresa! Incluindo o estacionamento, aliás, é bom proteger
aquele seu carrinho clássico!
Samuel
olhou para ele e a moça, ainda aturdido, e finalmente respondeu:
—
Não sei como agradecer!
Batista
sorriu para ele, cumprimentou-o novamente e saiu. Os dois ficaram a sós, e Cris
comentou:
—
E, se quiser, posso mostrar mais lugares para boas refeições aqui por perto.
Mas por enquanto estou louca por um café, vamos?
Samuel
a admirou, depois saiu com ela para o coffee break. As rodas de conversas
estavam bem animadas, e eles terminaram por participar de várias.
Cristine
não mentira. Já anoitecia quando o primeiro dia do curso se encerrou, os alunos
tomaram todos o seu rumo, e ela levou Samuel a uma hamburgueria que ficava em
uma rua próxima. Depois do jantar retornaram ao prédio e no elevador se
despediram, com ela dizendo que ainda precisava adiantar algumas coisas para o
dia seguinte. Sam, por sua vez, foi até seu carro no estacionamento a fim de
apanhar sua bagagem.
Depois
ele subiu pelo elevador até o andar residencial. Encontrou logo seu
apartamento, entrou e constatou que, embora pequeno, era bem confortável.
O
trajeto do rapaz até o estacionamento, elevadores, depois pelo corredor para
chegar ao quarto, foi acompanhado por Batista em uma tela em seu escritório
privativo. Cristine estava com ele.
—
Pretende ligar as câmeras do quarto? — ela perguntou.
—
Não. Pelo menos por enquanto. O rapaz parece de confiança.
—
Acha mesmo que, por ser de Boa Graça, ele sabe algo a respeito?
Batista
abriu em outra tela os dossiês de cada aluno do curso. Era a primeira
iniciativa da BLF nesse sentido, e os demais sócios ainda não estavam
convencidos de sua eficácia. Ele abriu a ficha do jovem e comentou:
—
Samuel. A mãe se chama Maria do Socorro, e ele tem um irmão mais velho, Daniel.
A avó deles, mãe de Maria, é Helena, conhecida por todos como Vó Nena.
Cristine
acompanhava a descrição, e o empresário prosseguiu:
—
Há relatos esparsos de uma Vó Nena, chamada de bruxa por alguns e caçadora de
assombrações por outros, que dirige um Fusca Azul assombrado. E histórias sobre
encontros com criaturas fantásticas, muitas das quais descritas no folclore, o
qual nosso jovem amigo disse ser pesquisador e até mesmo ter uma comunidade.
—
E há isto — Batista abriu outro documento.
Na
tela luziu um arquivo datado do início dos anos 1970, descrevendo como o antigo
Serviço Nacional de Informações, o SNI, recrutou o que chamava de “consultores
civis” para auxiliar no combate contra facções dos guerrilheiros comunistas que
estariam se utilizando de “meios não naturais”, conforme o documento, para
desestabilizar o regime.
—
“Meios não naturais” — comentou Cristine. — Uma definição bem vaga.
—
E você já concluiu alguma coisa sobre o que o raio-X mostrou na mochila dele?
A
moça se sentou diante de outro computador, entrou com sua senha e então
dedilhou comandos no teclado. Em instantes as imagens do rastreamento surgiram
na tela, com foco no livro que o rapaz trazia. A capa em relevo foi
digitalizada, e o programa realizou milhares de comparações, até finalmente o
título do volume surgir na tela.
—
Tratados sobre Passagens Místicas e As Coisas que Lá Habitam — comentou
Batista. — Livro interessante para um estudante do nosso curso.
—
E não foi só você que encontrou arquivos interessantes da época da ditadura —
Cris digitou mais comandos, e outro documento luziu na tela. — Uma lista de
livros banidos pelo regime, e olha só este título.
Com
o cursor ela destacou o mesmo livro que o jovem Caçador tinha consigo.
—
Parece estar ficando claro o que são os tais “meios não naturais” — ele disse.
Cristine
encarou Batista. Avisou que conseguiu encontrar uma cópia digital daquele livro
na dark web e fizera o download para o servidor secreto. Fez o logout da
máquina que usara e caminhou até a porta. Virou-se antes de abri-la e comentou:
—
Nesta empresa aprendi a esperar o inesperado. Encontramos segredos
inconfessáveis e conspirações o tempo todo, mas como os dois têm comentado,
Batista, magia, lobisomens, sacis, vampiros e carros possuídos são um pouco
demais, até para nossos padrões. Boa noite.
A
moça saiu e fechou a porta. Batista ainda ficou ali por algum tempo, observando
os documentos e imagens.
Horas
mais tarde, de madrugada, o vigia da noite, quase ao final de seu turno,
observava as diversas telas que exibiam imagens de quase todo o prédio.
Então
um sensor acusou movimento no segundo andar do estacionamento subterrâneo, e um
sinal piscou na tela correspondente ao setor.
O
homem a examinou, e uma interferência surgiu. A estática se combinou a um
escurecimento da imagem, mas mesmo assim ele conseguiu divisar uma silhueta. A
figura caminhava curvada, como se experimentasse algum tipo de dificuldade.
Chamou sua atenção o indivíduo trazer algo nas costas, como uma mochila, e uma
grande barba sob o rosto.
Porém,
o guarda ficou desconcertado com o movimento estranho que tanto a mochila como
a barba aparentavam fazer. Ele se ergueu e estava a ponto de sair quando a
estática cessou. As imagens ficaram limpas e o estranho desaparecera. O sensor
de movimento igualmente não deu mais sinal.
O
guarda decidiu investigar, afivelou o cinto com sua arma automática e apanhou
uma lanterna de corpo longo que podia servir como porrete. Desceu até o estacionamento
e logo chegou ao setor da ocorrência.
Não
encontrou nada, apesar de vasculhar o lugar por duas vezes. Parou por um
momento para admirar o Fusca vermelho estacionado ao lado de alguns carros
atuais.
Estava
retornando para o elevador quando sentiu um cheiro estranho e nauseabundo.
Procurou com a lanterna e encontrou um líquido ou gosma verde em um canto.
Abaixou-se para observar melhor, e conteve um impulso de tocar na substância.
Decidiu que o melhor era limpar aquilo, e se encaminhou para um depósito ali
perto.
Voltou
com balde e um esfregão, mas quando chegou ao lugar não havia mais qualquer
sinal da gosma verde. Intrigado procurou de novo, sem encontrar nada.
Suspirou,
voltou ao depósito para deixar os itens de limpeza e retornou para a sala de
vigilância, onde seu colega já o aguardava. Relatou rapidamente o que havia
visto, e o outro disse que ficaria de olho. Concordaram ainda em pedir um exame
nas câmeras e sensores naquela manhã.
Minutos
antes, ao passar novamente pelo Fusca vermelho, o guarda não reparou na tênue
luminosidade verde que emanava de seus faróis.
O
segundo dia do curso foi muito movimentado. Batista iniciou os trabalhos
apresentando casos famosos de hackeamento, aproveitando para questionar os
alunos a respeito de assuntos do primeiro dia.
Falou
sobre uma ocorrência relativamente recente, a extorsão sofrida pela então
primeira-dama do país. Boa parte dos alunos a conhecia pelos noticiários, e as
perguntas foram inevitáveis.
—
Eram fotos da mulher mesmo?
—
Tudo indica que não — comentou Batista. — As imagens que surgiram online
mostravam na verdade uma modelo de um site de fotos sensuais.
—
E o Bruno de Nogueira, que era secretário, depois foi pro Supremo, não é?
—
É verdade — comentou o empresário. — Indicado pelo presidente. Bela gratidão,
não?
Todos
riram. Outras pessoas comentaram que o alegado HD que o criminoso comprara
continha e-mails, senhas e dados de várias autoridades e pessoas famosas.
—
Conforme estamos repetindo ao longo do curso, pessoal — comentou Batista, —
esta ocorrência demonstra como o fator humano é o principal elo fraco na
proteção de dados. Devo acrescentar, ainda, que o sujeito responsável por essa
lambança sequer pode ser chamado realmente de hacker. Ele simplesmente
conseguiu acessar contas por meio das senhas que adquiriu.
O
empresário circulou diante da classe, olhando para as fotos e gráficos que
detalhavam o caso no telão, virou-se então para a turma e acrescentou:
—
Um hacker digno dessa qualificação dificilmente teria sido pego, na verdade, e
tampouco se enganaria com fotos de uma pessoa semelhante à sua vítima. Devo
ainda dizer que nós, da BLF Informática, tivemos uma pequena participação nas
investigações, contribuindo com nossos softwares para o rastreio e
monitoramento do criminoso.
—
O interessante é que deram tanta publicidade ao caso, devido a todas as pessoas
envolvidas, mas do tal HD lotado de dados sensíveis nada mais se falou. E as
primeiras informações eram de que havia muito material comprometedor ali, não é
mesmo?
Samuel
fizera a pergunta. Batista se voltou para ele, aproximou-se e abriu um sorriso.
Então respondeu:
—
Precisamente o ponto! Um hacker de verdade saberia exatamente o que tem em mãos,
e se tiver inteligência agiria de acordo. Já esse tipo de acobertamento é muito
mais comum do que imagina.
O
Caçador acompanhou a explanação do empresário, e como este continuasse olhando
para ele, disse:
—
Com certeza. Até naquele nosso grupo de estudo já tivemos algumas experiências
mais ou menos parecidas, se posso dizer.
O
empresário manteve o olhar no jovem por mais algum tempo, depois cumprimentou-o
com um aceno de cabeça e retomou a apresentação.
Seguiram-se
mais casos famosos, a aplicação dos conhecimentos já adquiridos, e uma pausa
para o almoço.
Na
parte da tarde aconteceram mais aulas entremeadas por exercícios, e Sam ficou
contente por Cristine voltar a aparecer para auxiliar. A moça vestia um
conjunto de blazer e calças pretos além de uma camisa branca, e trocou um
significativo olhar com ele quando entrou.
A
maior parte da tarde transcorreu com mais atividades, e já anoitecia quando
foram dispensados. Todos arrumaram suas coisas e se despediram, e Samuel
preparou-se para deixar seus pertences no pequeno apartamento no qual o
instalaram e ir procurar algum lugar para jantar.
Estava
nisso, aproveitando para acrescentar algumas anotações em seu caderno, quando
Cris sentou-se sobre sua mesa.
—
Algum programa para hoje?
Ele
olhou para a garota, sorriu e guardou o restante do material enquanto
respondia:
—
Por enquanto não, mas estou totalmente aberto a sugestões.
Ela
também sorriu e disse:
—
Que tal se você deixar suas coisas no apartamento e sair comigo? Acabou de
abrir um restaurante lá no shopping que me disseram ser muito bom, e estou
doida para experimentar.
Sam
olhou para ela, se levantou e apanhou a mochila.
—
Combinado! Onde nos encontramos?
—
Te espero na recepção do prédio, tá?
Sorriram
um para o outro, e o Caçador se dirigiu aos elevadores. Enquanto subia
surpreendeu-se pela expectativa que sentia pelos próximos momentos.
Largou
a mochila sobre a cama do apartamento, e trocou a jaqueta que vestia pelo
blazer com que viera no dia anterior.
Tomou
o elevador, e de novo se pegou desejando que chegasse logo.
Cristine,
ao vê-lo, sorriu mais e disse:
—
Ah, ia mesmo sugerir que fosse mais elegante. Está bonito!
Tomou
seu braço e dirigiram-se para o estacionamento. Próximo do elevador havia um
sedã médio alemão com aparência de novo, apesar de ser do final dos anos 1990.
Cris se instalou no assento do motorista e Sam à sua direita.
—
Adorei seu carro. Coleciona também?
—
Você está dentro de minha coleção de automóveis — ela disse brincando. —
Normalmente uso algum carro da firma, mas mantenho este aqui por gosto. Um
primo bem mais velho que eu tinha um igual e eu adorava.
Ela
manobrou, saíram do estacionamento e entraram no trânsito intenso da Berrini.
Apesar do shopping ficar relativamente perto estava garoando, e Cris comentou
ser preferível ir de carro e não se molhar.
Conseguiram
estacionar sem problemas, e logo chegaram ao andar do restaurante. Samuel, a
princípio indeciso, enfim segurou a mão dela. Cristine olhou para ele, sorriu,
e manteve um toque firme.
Chegando
ao local ela disse seu nome e eles foram acomodados em uma mesa. O Caçador
perguntou:
—
Você deu seu nome e acompanhante. Já sabia que eu concordaria?
Ela
exibiu outro de seus adoráveis sorrisos e respondeu:
—
Estava na torcida para isso.
Foram
atendidos com atenção especial, a refeição estava ótima e eles comeram, beberam
e se divertiram até o horário de fechamento do shopping.
Cristine
estacionou o carro na mesma vaga, no retorno ao estacionamento no prédio da
BLF. Depois de desligá-lo virou-se para Samuel.
Os
dois se olharam por alguns instantes em silêncio. Ele saudou as sensações e sentimentos
que palpitavam dentro de si como velhos conhecidos que não encontrava havia um
bom tempo.
—
Obrigada, Sam. Eu me diverti muito.
—
Eu que agradeço, Cris. Fazia tempo que não comia tão bem.
Sorriu
mais e acrescentou:
—
Só teria gostado de ao menos dividir a conta.
—
Imagina! — respondeu ela em tom brincalhão. — Faço questão, esses nossos
momentos têm sido muito especiais.
Ficaram
em silêncio por mais alguns instantes, olhando-se. Então, movendo-se ao mesmo
tempo, eles se aproximaram.
Beijaram-se
docemente.
O
beijo, a princípio delicado, foi se tornando mais apaixonado e fervoroso.
Samuel deslizou no banco de couro para o lado dela e a envolveu nos braços como
se quisesse aprisioná-la. Cristine correspondeu apertando-o em um abraço,
enquanto o beijo tornou-se avassalador e cheio de desejo.
Samuel
acordou e observou o teto do pequeno apartamento.
Olhou
para o lado, e viu Cristine em pé, vestida somente com a camisa que ele usara
na noite anterior, e já com o celular nas mãos.
Depois
de digitar ela se virou para ele, viu que acordara e sorriu.
Colocou
um joelho sobre o colchão, depois outro e afinal deitou-se ao lado dele.
Olharam-se
e finalmente se beijaram.
—
Bom dia — Sam disse por fim.
—
Bom dia. É uma pena ter que levantar dessa cama, mas o dever chama.
Ela
se ergueu, ajoelhando-se sobre os lençóis, mas ele segurou sua mão e perguntou:
—
Não pode ficar mais um pouco?
Cris
sorriu, abaixou-se e o beijou ardentemente de novo. Depois tornou a ficar em
pé, tirou a camisa de Sam e começou a se vestir.
Ele
pôs os óculos, apreciando a nudez dela, e logo a moça estava pronta. Samuel se
sentou na cama, ela de novo o abraçou e beijou, e disse:
—
Preciso tomar um banho antes do trabalho.
—
Poderíamos aproveitar juntos o chuveiro daqui.
—
Seria tão bom! — ela suspirou. Depois de beijá-lo novamente afastou-se. — Nos
vemos lá embaixo!
Saiu
pela porta. Samuel suspirou profundamente e se jogou na cama de novo. Fazia um
bom tempo desde a última vez que acordara com alguém, mas nunca tivera uma
noite tão incrível quanto aquela.
Quando
as portas do elevador se abriram para o andar da BLF, Samuel se surpreendeu por
encontrar Cristine, que parecia apressada.
—
Oi, tudo bem?
Ela
vestia camisa branca, gravata vermelha, blazer preto e uma minissaia xadrez
justa predominantemente vermelha. Sorriu de leve, segurou rapidamente sua mão e
respondeu:
—
Oi, tudo. Só preciso conferir um assunto na sala da segurança lá embaixo.
Sam
segurara a porta do elevador para que ela entrasse, e ia perguntar mais alguma
coisa quando Cris acrescentou:
—
Melhor se apressar, a aula já vai começar.
Puxou-o pela jaqueta para um rápido beijo, e depois a porta do elevador se fechou entre eles.
—
Pode passar de novo, seu Arlindo?
O
chefe da segurança reproduziu o vídeo novamente. Cristine assistiu com toda
atenção.
—
Encontrou alguma coisa errada com o sistema? — perguntou ela.
—
Não, nada, dona Cristine.
A
moça assistiu várias vezes a gravação. Arlindo comentou a respeito de uma cena
semelhante, descrita pelo vigia duas noites antes.
A
sombra era similar a uma pessoa, mas alguma coisa que não sabia identificar
dizia à garota que não podia ser. Pior, esse detalhe indefinível passava a
impressão de ser algo sinistro e inexplicável. Recordou-se dos velhos casos que
os três sócios lhe haviam contado, mas nenhum se encaixava com o que via.
Efeitos
eletromagnéticos como os observados, entretanto, eram comuns. O sistema era
protegido, e portanto o que via só poderia significar que a fonte era bastante
forte.
As
imagens mostravam um setor do estacionamento subterrâneo, e assim que acontecia
o primeiro tremor as luzes de iluminação da área se tornavam muito mais fracas.
E então, emergindo em meio à escuridão, aquela silhueta tão estranha, que dava
arrepios à moça.
Ela
se virou, abriu o armário de suprimentos e tirou de lá um sofisticado detector
de anomalias magnéticas. Esperava conseguir alguma indicação residual do
fenômeno. Arlindo, habituado às peculiaridades daquela empresa, nada comentou.
Cristine
se dirigiu ao setor, procurando seguir o caminho que a estranha sombra fizera.
Para sua surpresa o detector de fato exibiu uma fraca leitura.
Ela
a seguiu, caminhando pelas vagas divididas por faixas amarelas pintadas no
chão. O traçado passava nas proximidades dos elevadores, ela andou ao lado da
parede de concreto aparente, e então descobriu algo incomum.
Uma
estranha substância verde cobria poucos centímetros de um canto, entre a parede
e o piso. O detector apontou indícios de atividade eletromagnética naquela
massa. Ela pegou o celular, fotografou o achado e depois, graças aos
intensificadores de sinal instalados por todo o estacionamento, pediu ao chefe
dos vigias que trouxesse um recipiente e uma espátula.
Juntos
recolheram um bocado daquela coisa, cuja cor não era exatamente verde, mas
oscilava entre variados matizes. Cris não se lembrava de nada remotamente
parecido revelado pelos seus patrões.
Arlindo
perguntou se a moça precisava de mais alguma coisa, ela disse que não e ele
retornou a seu posto.
A
secretária olhou ao redor, procurando por mais indícios.
O
Fuscão vermelho de Samuel estava parado alguns metros adiante. Ela se
aproximou, pois a trilha magnética ainda seguia por ali.
Subitamente
um rápido vislumbre. Cristine piscou os olhos, virou-se para todos os lados,
depois tornou a olhar para o carro do rapaz.
Poderia
jurar ter visto um fraquíssimo brilho verde em seus faróis.
Era
o último dia do curso, mas não tiveram moleza. Mais apresentações, experiências
com programas e aplicativos e os exercícios mais intensos de todos. O almoço
foi rápido nessa ocasião, para a qual foram trazidas saborosas marmitas de um
restaurante próximo.
Na
parte da tarde as atividades contaram inclusive com a participação remota de
Leandro, outro dos sócios da empresa, e conforme descrito por Batista quase uma
lenda na comunidade hacker.
Conversando
por videoconferência depois de sua participação o empresário, que era negro e
tinha uma idade indefinível, elogiou bastante os alunos e comentou com Batista
que aquele curso poderia se tornar uma iniciativa permanente da BLF
Informática.
—
Quero destacar ainda — comentou Leandro, — que gostei bastante da participação
de nosso amigo Samuel, do interior paulista. Meus parabéns, jovem.
—
Obrigado, fico honrado com o elogio.
O
hacker sorriu de leve e concluiu:
—
Agora, a todos, deixo meus agradecimentos e despedidas.
Dito
isso, desligou.
O
que restava do curso eram mais duas aulas separadas pelo último exercício, e
Batista surpreendeu a todos com a revelação que, após a conclusão, haveria um
pequeno coquetel para eles. Aplausos irromperam, e então ele decretou vinte
minutos para um coffee break.
Samuel
conversou bastante com colegas, tendo feito amizade e trocado contatos com
vários, e então retirou-se para um canto a fim de escrever para a família. Fez
isso, respondendo ao mesmo tempo várias mensagens através do celular, quando as
luzes e o próprio sinal da internet do prédio falharam por um momento.
Como
Caçador, teve um pressentimento de algo que não parecia certo. Olhou o relógio
e viu que não haveria tempo de investigar antes de retornar para a aula. Aquilo
não se repetiu, então decidiu que poderia checar mais tarde.
Nisso,
perto dele, ouviu vozes que sabia serem de Batista e Cristine.
—
O espectrômetro de massa não reagiu à tal substância. Apontou que era
desconhecida.
—
Tem certeza, Cris?
—
Repeti o teste com duas amostras. Quer ir lá conferir?
—
Não precisa, sei que fez o melhor, como sempre. Acredita que está ligada a
essas interferências na rede de energia e internet?
—
Pode ser. Arlindo disse que o vigia da outra noite relatou a mesma coisa. E tem
aquela sombra esquisita.
—
As imagens estão bem ruins. Francamente, pode ser até alguém de fora brincando
com nosso sistema. Já aconteceu antes.
—
Deixando um material esquisito de presente? Duvido, Batista.
—
Bem, fique de olho, e qualquer coisa me mande uma mensagem.
A
moça deve ter respondido por gestos, pois Samuel não ouviu mais nada. Momentos
depois a viu passando pelo corredor e saindo por uma porta.
Aquilo
era estranho demais. O Caçador até chegou, diante de algo familiar que percebeu
na conversa, a considerar a possibilidade de perguntar a respeito. Porém, já
conhecendo a cultura de segurança da empresa, que beirava a paranoia, ele
preferiu se manter em silêncio.
As
aulas e o exercício final foram ainda mais intensos, e o ponto culminante do
curso. Quando Batista, ao término da última apresentação, declarou que estava
impressionado e orgulhoso com o desempenho de todos ali, o salão irrompeu em
palmas.
Todos
receberam, juntamente com o certificado de conclusão do curso, um pendrive que,
conforme o empresário explicou, continha todo o material apresentado além de
programas para computador e aplicativos para celular produzidos pela BLF
Informática, semelhantes aos usados durante as aulas e aos disponíveis online.
—
Mas estes são mais avançados do que aqueles de nosso site — confirmou o
empresário com um sorriso. — Não se preocupem, ao contrário de outras empresas
não haverá necessidade de trocarem seus dispositivos por outros último tipo.
Ocupar pouca memória é sempre um requisito essencial em nossos produtos. Usem-nos
bem. E, se tivermos vagas disponíveis na empresa entraremos em contato, pois
afinal já nos conhecemos.
Após
mais aplausos todos se dirigiram para o coquetel, e passaram um bom tempo
conversando e comentando o que haviam aprendido, além de seus planos futuros. A
festa durou até o início da noite, e os funcionários da BLF já haviam todos
encerrado seu turno bem antes.
Samuel
conversou mais com os colegas, porém sentiu falta de Cristine, que viera no
início da celebração para também dizer algumas palavras e se despedir.
Desculpou-se após afirmar que estava resolvendo questões administrativas, porém
o Caçador viu que retornara mais duas vezes para conversar discretamente com
Batista.
Da
segunda vez, em que pôde ouvi-los atrás de uma porta, distinguiu um trecho da
conversa:
—
Como assim, Cris?
—
Estou dizendo que a substância verde simplesmente desapareceu do pote, dentro
do congelador.
—
Não encontrou nenhum resíduo?
—
Nada, é como se nunca tivesse existido.
—
Muito estranho.
—
Eu que o diga.
Samuel,
então, teve certeza. Um resíduo verde que desaparecia em pouco tempo, sem
deixar qualquer pista, era conhecido dos Caçadores.
O
coquetel terminou, os colegas se despediram, e como Batista lhe havia dito que
poderia ficar mais alguns dias naquele apartamento, Sam rapidamente subiu para
lá.
Pensou
em informar ao irmão e a Vó Nena o que se passava. Porém, se fosse o que estava
pensando, todo o tempo era importante.
—
Vamos ver se este livro é bom mesmo! — disse de si para si, jogando a mochila e
a jaqueta sobre a cama e apanhando o tomo adquirido no sebo. Retornou apressado
ao elevador.
Enquanto
Batista cuidava de outros assuntos, Cristine ainda investigava o estranho
fenômeno.
Coisas
não desaparecem em pleno ar, ela insistia em seus pensamentos. Passou o vídeo
de segurança por todos os programas de tratamento, buscando clarear e deixar a
imagem o mais nítida possível. Mas os resultados continuavam deixando a
desejar.
Frustrada,
ela se recostou em sua cadeira, entrelaçou os dedos na nuca e observou
casualmente o escritório já vazio.
Depois
lançou um olhar para outra tela, que exibia vídeos das câmeras de segurança.
Viu
então Samuel saindo do elevador no estacionamento. Trazia um livro nas mãos.
Nesse
momento, as luzes novamente piscaram por um instante.
A
moça olhou ao redor, aturdida. Voltando-se de novo para a tela, viu que o rapaz
fez o mesmo gesto, e então saiu correndo.
Cristine
teve um pressentimento. Decidiu não esperar mais. Aprendera a confiar em seus
instintos, atitude que por várias vezes já havia salvado sua vida.
Levantou-se
da cadeira, tirou o blazer e o jogou sobre o assento. Em seguida, virou-se e
tirou a katana de seu suporte. Removeu a bainha e olhou por um instante para a
lâmina, cheia de desenhos artísticos e afiadíssima.
Correu
então para o elevador.
A
garota avançou pelo estacionamento. Com a espada em riste, percorreu
silenciosamente mas com toda pressa o caminho que parecia mais provável.
As
luzes tornaram a piscar, e ela parou por um momento. Tudo parecia normal, mas
dessa vez sentiu um odor acre, penetrante e repugnante.
Arrepiou-se,
lembrando de certas lendas que ouvira em seu tempo no Japão. Apanhou o celular,
que trouxera preso à parte de trás da cintura, e digitou rapidamente para
Batista. Feito isso guardou o aparelho e tornou a avançar.
Pisava
o mais leve possível, e respirava com mínimo ruído apesar de sentir o coração
martelando em seu peito. Tentou manter a mente serena, porém não conseguia
deixar de pensar em Samuel. O que ele estaria fazendo? Por que trouxera um
livro para algo que, ao que tudo indicava, pouco tinha de normal?
Cristine
parou no canto da parede, e olhou de relance. O rapaz estava ao lado de seu
carro, havia aberto a porta deste e parecia murmurar palavras com o livro nas
mãos. Estava de costas para ela e parecia absorto.
A
iluminação oscilou de novo.
Ela
pensou no que deveria fazer, e tornou a olhar para a cena. Reparou, então, que
havia uma pistola automática sobre o teto do Fusca vermelho.
Decidiu
que precisava tomar uma atitude. Lamentou-se por um instante, lembrando da
noite passada. As lembranças eram doces, e ela se surpreendeu rezando para que
Samuel não fosse o responsável por aquilo.
Ergueu
a katana, dobrou a curva e se aproximou sem ruído. Estava a poucos passos de
rendê-lo quando tudo se precipitou.
Samuel,
com movimentos muito rápidos, largou o livro sobre o assento do carro,
virou-se, e o som de metal contra metal tomou o espaço do estacionamento.
Os
dois trocaram olhares. O rapaz empunhava uma espada de lâmina negra, com que bloqueara
o movimento dela.
—
Oi, Cris — ele disse.
A
situação era absurda, pensou a moça. Haviam dormido juntos na noite anterior, e
agora eram inimigos? Como ela pôde se deixar enganar dessa forma? Respondeu:
—
Oi. Bela réplica da espada dos fuzileiros navais americanos.
Deu
um golpe para desarmá-lo, mas nitidamente Sam tinha treinamento. As lâminas
tornaram a se tocar.
—
Não é uma réplica. E sua katana é uma legítima Sadayoshi.
—
Como sabe!?
—
Tem os mesmos detalhes que a de um amigo.
Outro
golpe, mais um contragolpe. Cristine não queria atacar, gostava demais dele,
mas precisava saber, tinha que desvendar aquilo.
Com
as espadas novamente beijando uma a outra, os pensamentos se atropelavam na
mente de Samuel. Aproveitou o momento para olhar para todos os lados, depois
voltou a mirar Cristine.
Adorou
cada momento vivido a seu lado. E duvidava muito que a moça fizesse alguma
ideia do que estava acontecendo. Naturalmente o havia surpreendido, aparecendo
armada com sua katana, mas ele sabia que tinha que esclarecer tudo.
Relaxou
as mãos e finalmente baixou sua espada. Virou-se, apanhou a bainha e protegeu a
lâmina, deixando-a no assoalho traseiro do carro. Tornou a ficar de frente para
Cris e cruzou os braços. Ainda olhou para a pistola, no teto do Fusca, mas a
encarou novamente antes de dizer:
—
Tá bem, você merece saber. Suspeito que algo estranho está acontecendo aqui.
—
Não diga — e ela não deixou de apontar-lhe a espada.
—
Algo sobrenatural, e sei muito bem que isso é difícil de acreditar.
A
moça, finalmente, baixou a katana. Mas a manteve em posição de guarda, enquanto
não deixava de olhar para ele um instante que fosse. As luzes voltaram a piscar
nesse momento.
—
Já vimos coisas assim antes — recomeçou Samuel. — Problemas de energia e sinal
de internet, até de rádio. Por que acha que Caçadores costumam usar carros
antigos como este?
Cristine
abriu a boca, espantada. A espada pendeu de seus dedos, e sua expressão era de
incredulidade.
—
Caçadores!?
—
Sim. De assombrações, monstros, coisas do folclore que as pessoas acham ser
histórias, mas são bem reais.
Passos
apressados, e finalmente Batista surgiu correndo. Trazia uma pistola nas mãos,
mas quando viu que conversavam ele a manteve apontada para o chão.
—
O que está acontecendo? — seu tom era de exigência.
—
Conforme explicava para a Cris — continuou Samuel, — desconfio que algo anormal
esteja acontecendo.
—
Mesmo!?
As
luzes piscaram de novo, desta vez com mais intensidade. O jovem Caçador disse:
—
E, como me parece evidente que o prédio tem uma manutenção impecável, acredito
conhecer a causa.
—
Como? — questionou o empresário.
—
Lamento, mas ouvi sem querer a conversa de vocês sobre a substância verde. Meu
irmão e minha avó me contaram a respeito de uma experiência...
Samuel
parou de falar e olhou espantado para um ponto além deles. Para Batista e
Cristine a expressão em seu rosto não poderia ser fingida. Os dois sentiram os pelos
do corpo se arrepiarem, e finalmente viraram.
O
que viram, a uma distância de pouco mais de dez metros deles, e andando da
direita para a esquerda parecendo ignorá-los, não esqueceriam pelo resto de
suas vidas.
Batista
atirou antes que Samuel pudesse dizer qualquer coisa. Disparou todo o pente, e
o eco dos tiros ressoou pelo espaço do estacionamento por um bom tempo.
Cristine,
enquanto isso, exibiu uma expressão tomada pelo espanto e temor, manteve a espada
em posição de guarda e murmurou:
—
Tako Nyudo!
Samuel,
assustado com a escalada dos acontecimentos, percebeu que não havia
alternativa. A coisa se voltara para eles e começava a andar em sua direção. O
Caçador apanhou sua pistola, ainda no teto do Fusca, mirou e disparou.
Os
tiros de Batista não haviam causado qualquer efeito além de chamar a atenção da
abominação. Porém, os de Sam a atingiram e feriram. Pequenos pedaços caíram de
sua massa, e a coisa urrou antes de subitamente desaparecer.
Ele
não perdeu tempo. De uma caixa no banco traseiro do Fusca pegou um pente e
remuniciou sua arma. Depois estendeu outro a Batista e disse:
—
Veja se serve em sua pistola.
O
empresário estava aturdido, mas diante das palavras do rapaz pareceu acordar. O
pente servia, então ele o inseriu em sua arma, depois virou-se para Sam e
perguntou:
—
O que houve? O que é aquilo? Como desapareceu? E por que seus tiros a afetaram
enquanto os meus...
Samuel,
enquanto isso, se virou para Cristine. Ela estava trêmula, mas mantinha a
katana em prontidão. Então a moça, depois de olhar para ele agiu com rapidez.
Girou
a espada e a colocou em riste contra Samuel.
—
Mas o que está acontecendo!?
O
Caçador, com o sentimento de urgência tomando sua mente, percebeu que era hora
de falar:
—
Para responder ao Batista: este lugar, aparentemente, é uma confluência entre realidades,
entre as quais aquela de onde veio o monstro que viram. Chamamos aquilo de cria
tentacular, eles costumam entrar e sair de nossa realidade. E meus tiros funcionaram
porque são balas de prata, como as que agora estão na sua arma.
Cris
o olhou estupefata, mas finalmente baixou a espada. Voltou a murmurar “Tako
Nyudo”, enquanto Batista acrescentou:
—
Um monstro de outra realidade!? Aquela miniatura de Cthulhu?
—
Pois é. E também sou fã de Lovecraft. Agora, tenho comigo este livro aqui, que
ensina como fechar portais por onde eles passam.
As
luzes piscaram de novo, e pelo olhar deles Samuel percebeu que o monstro
surgira do outro lado. Batista voltou a apontar a arma e saiu andando, fazendo
mais disparos. Os urros se fizeram ouvir novamente.
A
moça alternava seu olhar entre a aberração e o Caçador. Depois ergueu a katana
e fez menção de correr, mas Sam agarrou seu braço e disse:
—
Cristine, por tudo quanto é mais sagrado não corra atrás da coisa! Ela fica
pulando entre realidades, como disse, e mais de um Caçador que fez isso
desapareceu. Para sempre.
Eles
se olharam, e finalmente a expressão dela se descontraiu. Fez que sim e foi
para o outro lado do Fusca.
Sam,
enquanto isso, agarrou o livro e voltou a recitar o encantamento.
Batista
atirava, o monstro urrava e cambaleava. Era de um verde doentio, coberto pelo
que parecia uma gosma, tinha pernas finas e braços mais longos que os humanos.
De suas costas rudimentos de asas despontavam, abrindo e fechando, e no rosto
abominável destacavam-se uma miríade de tentáculos que se moviam
incessantemente.
Tanto
o empresário como a secretária sentiam que suas mentes não resistiriam muito
tempo à visão daquele horror. A abominação parecia invadir seus pensamentos e enlouquecê-los
aos poucos.
O
Caçador, enquanto isso, proferia as palavras escritas no tomo. No mês anterior
já havia contribuído para exorcizar outra força maléfica ao lado da família.
Agora estava sozinho, e precisava confiar somente em seus instintos, além
daquelas duas pessoas que pouco conhecia.
A
aberração deu um salto, ficando bem próxima deles. As balas de Batista haviam
terminado e a coisa tentou alcançá-lo com suas garras afiadas.
Cristine
atacou com a espada, desferindo golpes seguidos e rapidíssimos contra a
aparição. Chegou a cortar vários tentáculos do monstro, esquivou-se de seus
ataques e continuou investindo. Com uma estocada feriu o peito da coisa, que
urrou novamente expondo a boca horrenda e repleta de dentes asquerosos no meio
dos tentáculos.
Sumiu
no mesmo instante.
Os
dois correram para junto de Samuel. Ele parou a leitura, trocou o pente da arma
de Batista e ainda estendeu-lhe a sua, enquanto explicava:
—
Preciso que mantenham a coisa ocupada só por mais pouco tempo, e...
Nisso
esticou o braço entre eles e disparou novamente.
A
aberração havia surgido bem no momento em que o segurança apareceu
repentinamente de trás da parede.
A
cria tentacular tornou a desaparecer, e o guarda, tendo visto o monstro somente
de relance, gritou e apontou sua arma para o ponto em que a coisa estivera.
Sam
largou a arma e agarrou o livro, enquanto Batista correu para o homem dizendo:
—
Seu Arlindo, por favor, volte a seu posto e fique lá, não importa o que
aconteça.
—
Mas, seu Batista, a coisa...
—
Faça isso, homem, se preza sua sanidade! — disse Samuel voltando ao
encantamento. O homem acabou obedecendo, com pânico no olhar.
De
novo um piscar das luzes denunciou o retorno da abominação, próxima de onde
sumira da última vez.
Batista
voltou a atirar, com Cristine a seu lado fazendo sua proteção. Samuel, então,
aproximou-se deles e finalmente pronunciou as palavras finais do encantamento.
O
ar crepitou, flashes de uma luz muito branca e pura espocaram pelo ambiente, e
o urro da criatura foi o pior e mais horrendo até então. Afinal, depois da luz
se fazer mais intensa, o ambiente inteiro foi iluminado por um instante.
Ofuscados,
eles demoraram alguns momentos para voltar a enxergar normalmente.
Olharam
ao redor. A abominação havia desaparecido. Tudo estava calmo, e uma sensação de
alívio tomou conta deles.
Samuel
voltou ao Fuscão. Virou-se, e Batista estava diante dele, com a pistola
pendurada no dedo. O Caçador sorriu. Fechou o carro e passou a tranca na porta.
Depois ficou diante dos dois. Cristine estava ofegante, sua expressão era de
espanto, mas então finalmente olhou em seus olhos e sorriu de leve.
—
Agora sim podemos falar com calma — disse Sam. — Acho que merecem explicações.
Depois
de pedir que Cristine levasse Samuel “lá em cima”, reforçando estas palavras,
Batista foi conversar com o pobre vigia. Disse que tentaria convencê-lo de que
fora tudo um vazamento de gás que afetou a todos, e que por favor recolhesse as
cápsulas de balas.
A
moça conduziu o Caçador até o elevador, e sem nada dizer digitou uma senha na
tela interna. Foram levados até o último andar do prédio.
—
Noite passada não fiquei com você para te espionar. Fiquei por que...
Cris
se voltou para Sam ao dizer isso de repente. Ele olhou para ela, ajeitou os
óculos e admirou seu rosto delicado e os doces olhos castanhos.
—
Eu sei — disse finalmente. Sorriu, e ficou aliviado por ela fazer o mesmo.
Depois
de descerem no último andar passaram por um corredor, e finalmente ela abriu
uma porta e disse:
—
Aguarde aqui Sam. E não mexa em nada.
Ela
saiu apressada pelo corredor, e entrou por outra porta onde ele conseguiu ler
“cozinha”.
Samuel
nunca vira aparato tecnológico como o daquela sala. Prateleiras lotadas de
computadores e centrais de processamento como apareciam somente em filmes.
Havia algumas estações de trabalho, com telas e teclados, aqui e ali.
Estava
frio, e ele sabia que centros de dados assim eram mantidos à temperaturas
controladas para melhor uso e conservação dos equipamentos.
—
Nosso datacenter — exclamou Batista atrás dele. — Temos mais dois exclusivos
nossos, na Suíça e no Japão. Fora nossa nuvem espalhada por dezenas de
servidores pelo planeta.
O
rapaz mal conseguia encontrar palavras para se expressar naquele cenário digno
de ficção científica. Depois ouviram a voz de Cris chamando, e se dirigiram à
cozinha.
Ela
havia preparado guioza e tempura para os três. Justificou:
—
Quando fico nervosa ou passo por um grande susto sempre vou cozinhar para
relaxar.
Começaram
a comer, saboreando a deliciosa refeição, e Sam então contou tudo.
—
Lobisomens, sacis, iaras... Tudo real? — perguntou Batista.
—
Até a mula sem cabeça? — acrescentou Cris.
Sam
fez que sim e disse:
—
Vários dos Encantados, que moram em nosso mundo, são nossos amigos e aliados.
Já a mula sem cabeça, bicho-tutu, capelobo, bicho-homem e outros espreitam de
dobras em nossa realidade. Caçadores acabam desenvolvendo uma percepção maior,
e pessoas que por acaso os encontram também, depois do susto.
—
E aquela coisa lá embaixo? — a moça perguntou. — Não vai voltar, né?
—
Não — comentou o Caçador. — Crias tentaculares como aquela e outras aberrações
são oriundas de realidades separadas, e às vezes invadem a nossa por fissuras.
—
E o que causa essas fissuras? — quis saber Batista.
Ele
explicou que, pelo conhecimento dos Caçadores, vários fatores. Existem lugares
naturalmente malditos, mencionou os de Boa Graça, e lembrou de uma região
próxima dali, a confluência entre os rios Pinheiros e Tietê onde sua avó,
décadas antes, enfrentara um grande mal.
Mencionou
rapidamente o caso do Fuscão vermelho, que foi carregado com a energia do
portal do Morro dos Uivos, e portanto poderia abrir tais fendas.
—
Claro que não imaginava que aconteceria aqui — apressou-se a dizer. — Como não
tínhamos certeza sobre esse carro, vim buscar justamente este livro para fazer
um encantamento definitivo.
Apontou
para o Tratado sobre Passagens. Batista folheou algumas páginas e perguntou
onde o havia encontrado.
—
Sebo do Tobias lá no centro.
—
Pois já cansei de ir a esse lugar! — espantou-se Cris. Ela sorria, o que era um
ótimo sinal, e Sam se sentiu aliviado.
—
Então aquele seu blog é como um guia para os Caçadores?
—
Mais ou menos, Batista, mas nada tão sofisticado assim. Eu precisaria de tempo
para acrescentar conteúdo. Porém, mais de um colega já elogiou o que faço ali.
Posso dar uma senha para vocês...
Os
dois se entreolharam e Sam, sorrindo, completou:
—
Que não precisam pois obviamente, com tantos recursos, já o acessaram!
Todos
riram e sentiram-se bem com a descontração. Depois, finalmente, o jovem Caçador
perguntou:
—
Mas, francamente, tudo isso que estou contando parece não ser uma grande
surpresa para vocês. Há algo mais, pelo que acredito, com a BLF Informática,
não é?
Batista
olhou para Cristine, depois para o rapaz, apanhou o celular e digitou uma
senha.
Colocou-o
sobre a mesa e foi explicando.
Também
contou tudo. O trabalho de espionagem contra políticos e altas figuras
públicas. A busca por segredos e arquivos governamentais. Os indícios de uma
grande conspiração de silêncio.
—
Alienígenas, uau! — comentou Sam.
E,
diante de outra página que Batista abriu, ele se espantou:
—
O Farol!?
O
empresário e a secretária se entreolharam sorrindo, e Samuel prosseguiu:
—
Mas eu tenho todas as edições! Sempre acompanhei e mostrei pro meu irmão e
minha avó. Ele faz piada, mas ela, vivida como é, praticamente uma lenda entre
os Caçadores, não comenta nada mas dá a entender que conhece muita coisa.
Ele
olhou para os dois e concluiu:
—
Vocês são a equipe dO Farol!
Batista,
sorrindo, disse:
—
Meus dois sócios também, Franco e Leandro, claro. Tivemos a sorte da Cris se
unir a nós faz algum tempo, enquanto outros aliados se afastaram.
Ficou
em silêncio por alguns instantes.
—
Sam, essa grande conspiração prossegue a todo vapor! Claro, avistamentos de
OVNIs e alienígenas continuam, mas com o advento da Internet as mentiras,
infelizmente, se espalham mais depressa que os fatos. E, no meio de todo esse
caldo, é muito difícil filtrar o que existe do que não existe.
—
Devo confessar que para nós é uma vantagem — comentou o Caçador. — Boa Graça e
regiões ao redor são muito ativas em elementos sobrenaturais, para não falar no
restante do Brasil. Mas são tantas histórias típicas, relatos e causos, que
quase ninguém leva a sério.
Prosseguiram
trocando impressões. Batista e Cris falaram de organismos dentro do estado,
especialmente em Brasília, agindo absolutamente fora da lei e de qualquer
supervisão, espionando a vida de praticamente qualquer pessoa no país. Revelou,
finalmente, documentos militares que recentemente havia obtido, quase sem
querer, a respeito dos tais “consultores civis” para o governo militar.
Samuel
examinou os documentos, e afinal disse:
—
É verdade. Havia, entre os guerrilheiros comunistas, uns poucos que praticavam
magia negra. Um grupo de Caçadores, entre os quais minha avó, terminou por
colaborar com os militares para combater essa ameaça.
Os
dois ficaram assombrados. Batista enviou os documentos para o e-mail de Samuel,
e eles conversaram por mais tempo. O empresário comentou que vinham dando
especial atenção à afamada Agenda 2030, encontrando ligações muito suspeitas
com partidos políticos, magnatas, ONGs e outros participantes.
A
uma pergunta de Cris sobre a origem dos Caçadores, Sam respondeu que existiam
desde muito tempo, quando os Encantados passaram a lutar contra os monstros
vindos de fora com os colonizadores.
—
Vampiros? — ela perguntou.
—
E outras coisas — ele respondeu. — Uma vez, meu irmão e eu ajudamos uma fada
contra uma súcubo.
Comentou
brevemente a respeito de rumores de que o Imperador D. Pedro II havia, perto do
final de seu reinado, criado uma equipe composta de Caçadores e outras pessoas
para combater ameaças sobrenaturais. A equipe acabou dispersa, e em meio aos
muitos boatos que corriam entre sua comunidade, havia o de um livro que fora
produzido na época, nunca copiado e que desaparecera misteriosamente.
—
Vários Caçadores andam à procura desse Livro Maldito — comentou Samuel. — Temos
muitas lendas na comunidade, claro, lugares encantados, aparições ainda mais
bizarras... Por exemplo, a Caveira de Burro que está enterrada em Brasília!
—
Vou confessar — comentou Batista. — Depois de ler esse documento sobre coisas
não naturais, em minhas viagens pelo Brasil tenho questionado alguns
informantes. E os que vivem e trabalham em Brasília, realmente, falam de boatos
sussurrados nos bastidores a respeito de cultos secretos, cerimônias profanas e
outras coisas assim.
—
Ele tem falado sobre isso há algum tempo — comentou Cris. — Eu e os outros
rapazes damos risada. Mas acho que agora não riremos mais!
Eles
perderam a noção do tempo, e conversaram até de madrugada. Batista, quando viu
as horas, disse:
—
Bom, meus jovens, amanhã tenho uma viagem importante, e retornarei em alguns
dias.
Levantou-se,
e ele e Samuel apertaram-se as mãos.
—
Foi um prazer e uma honra! — disse o Caçador.
—
Apareça sempre que quiser, meu amigo. Pode, claro, ficar em nossas acomodações
pelo tempo que precisar. Agora que já sabemos uns dos outros, espero que nosso
contato seja frequente, e possamos nos ajudar. Será sempre bem vindo aqui!
—
Pode deixar, e obrigado. Eu e minha família ficamos à sua disposição.
O
empresário se despediu da secretária e disse que enviaria instruções mais
tarde. Desapareceu pela porta.
Os
dois ficaram sozinhos, em pé, um defronte ao outro.
—
O que era aquele termo que você disse durante a luta?
Samuel
fez a pergunta. Cristine, com as mãos para trás, olhava para ele.
A
moça, então, sorriu de leve, aproximou-se dele e passou os braços por seu
pescoço.
—
Tako Nyudo? É um yokai, uma criatura do folclore japonês muito parecida com...
aquilo.
Ele
a abraçou pela cintura. Ficaram assim por algum tempo, e finalmente se beijaram.
Samuel
abriu os olhos e viu-se sozinho na cama. Admirava a habilidade de Cristine de
se mover em silêncio.
Tomou
um banho, vestiu-se e arrumou suas coisas. Mandou uma mensagem para a garota,
pedindo que o encontrasse na recepção.
Desceu
do elevador, e lá estava a garota. A roupa era semelhante à do primeiro dia,
blazer e minissaia escuros. Ele parou na frente dela e deixou a bagagem no
chão.
—
Podia ficar mais alguns dias — ela disse.
—
Adoraria. Mas tenho bastante coisa a fazer em Boa Graça.
—
Eu sei, e eu aqui.
Ficaram
se olhando, e trocaram um beijo rápido. Ela então apanhou uma caixa branca da
poltrona ao lado e a estendeu a ele.
—
Pra mim?
—
Com os cumprimentos do chefe — Cris acrescentou sorrindo.
Sam
abriu a caixa. Era um celular último tipo, de um modelo que só vira antes na
madrugada passada.
—
É igual ao do Batista?
—
Não exatamente, o dele e os dos rapazes, e o meu também, claro, são protótipos
avançados de nossos fornecedores. Este está um degrau abaixo, mas ainda assim é
superior a qualquer coisa que ache no mercado.
—
Não sei se posso aceitar.
—
Pode, deve e vai — ela disse, dando-lhe outro beijo. — Não há meios de
hackeá-lo com nada que se conheça hoje.
Ela
acrescentou que bastava inserir o chip e o cartão de memória, se o usasse, e
configurá-lo como quisesse.
—
Assim manteremos contato com toda a segurança. Não deverá precisar trocá-lo por
uns quatro anos.
Sam,
por fim, guardou a caixa na mochila e olhou para ela.
—
Parece que a parceria entre Caçadores e... vou chamar vocês de Faroleiros, vai
render bons frutos!
Cristine
cruzou os braços, sorriu e disse:
—
Faroleiros... gostei! Acho que os rapazes nunca foram chamados assim.
Abraçaram-se
de novo e ele perguntou:
— Mas e você? Essas habilidades suas... É uma
ninja?
Cristine
olhou para ele, sorriu, e o beijou ardentemente. Ficaram assim por um bom
tempo, ignorando as pessoas que circulavam pelo térreo do edifício.
Quando
voltaram a se olhar ela respondeu com malícia:
—
Isso, seu moço, você terá que descobrir na próxima vez.
Samuel
acariciou a pele macia de seu rosto, os cabelos muito sedosos, e disse:
—
Quando for visitar seu avô dê um jeito de passar por Boa Graça. E claro, quero
voltar aqui o quanto antes.
—
São duas promessas!
Trocaram
mais um abraço apertado, e beijaram-se com volúpia. Depois Samuel apanhou suas
coisas e se dirigiu às escadas. Após um último olhar para Cristine desceu para
o estacionamento.
Minutos
depois um Fuscão vermelho saía pela rampa, entrando no meio do trânsito
movimentado e logo desaparecendo. Cris, que observara tudo, soltou um longo
suspiro, virou-se e caminhou para os elevadores.
Vó
Nena entrou em seu quarto. A casa estava silenciosa, já que os netos também
haviam se recolhido. Tatiana dormia no quarto de hóspedes lá embaixo.
A
Caçadora ficou admirada com a história contada por Samuel, e elogiou muito seu
desempenho. Sentia cada vez mais orgulho daqueles jovens, e deu graças por
isso.
Ajoelhou-se
e puxou uma caixa que ficava abaixo da cama. Procurou na gaveta do criado-mudo
uma chave.
Nisso,
em São Paulo, em um apartamento na região de Moema, um dos sócios da BLF
Informática andava por seu quarto de um lado para o outro, pensando na chamada
por vídeo feita com os sócios. Franco, o mais velho do grupo, ex-militar,
finalmente se dirigiu para um quadro na parede.
Moveu-o
para o lado, revelando que era uma porta que mantinha oculto um cofre. Digitou
uma combinação e a tranca abriu. Retirou de lá uma caixa de madeira, que
colocou sobre a cama.
Vó
Nena examinou as recordações guardadas naquela caixa. Muitas lembranças e
histórias, a maior parte das quais ainda não revelada aos garotos.
Franco
vasculhou as fotos, documentos e demais objetos que guardava ali, testemunhos
de uma época muito diferente da que vivia com seus amigos e parceiros.
Cada
um deles, quase ao mesmo tempo, encontrou o que procurava. Uma foto desbotada,
tirada décadas antes. Um grupo de pessoas reunidas no que dava a impressão de
ser uma clareira em uma grande floresta. Homens e mulheres vestindo roupas
próprias para a situação, alguns militares com vestimentas camufladas entre
eles.
Por
baixo de cada pessoa havia nomes. E quatro destes personagens estavam um ao lado
do outro.
Nena,
Esmeralda, João, Franco.
Cada
um observou sua cópia da foto, que evocava muitas lembranças de perigos e
camaradagem. Abaixo dos nomes os dizeres:
Acre,
1978.
Vó Nena e os Caçadores (e os Faroleiros)
retornarão.
Esta
é uma história que havia muito queria contar. Até mesmo uma pequena prévia dela
foi inserida em Samuel e o café com a ex, quando o mais jovem Caçador recebe
uma mensagem bem ao final do conto.
Portanto,
o que acabaram de ler se passa um mês após essa cena. Cronologicamente O Livro
Maldito se passa cinco meses após o que leram. E cerca de um ano e quatro meses
antes do mais recente e-book, A Última Escrava.
Uma
das primeiras anotações do universo de Vó Nena e os Caçadores ditava que é o
mesmo dos alienígenas de meus primeiros livros, De Roswell a Varginha
(esgotado) e Filhas das Estrelas. E muitas pistas foram inseridas em várias
histórias de que Samuel estava em constante contato com “os amigos hackers de
São Paulo”.
Finalmente
o contato se torna direto em A Última Escrava, em uma de minhas cenas
preferidas do livro.
Os
Faroleiros, Batista, Leandro e Franco, eram na prática protagonistas das
histórias de aliens e OVNIs, sempre apoiando os personagens realmente principais,
o jornalista Roberto e a policial federal Ligia. O que houve com eles? Isso
ainda está para ser decidido, embora ela apareça brevemente aqui no blog no
conto Tudo está Conectado.
E, falando em universo compartilhado, seres semelhantes ao que nossos heróis acabaram de enfrentar, além de outros mencionados, estão também em O Relatório Rondon 66.
Esse é meu conto em Sussurros Cósmicos, antologia da @dicotomiaeditorial, que está disponível como e-book ou livro físico. Um excelente time de autores criou ótimas histórias de horror cósmico, aproveite!
Aproveitei
ainda para apresentar uma nova personagem, e espero que tenham gostado de
Cristine Kobayashi. Ela seguramente aparecerá em outras histórias, e também no
próximo volume longo (gostariam de cenas de ciúmes entre ela e a atual de Sam,
Luísa?).
Ainda
sobre Cris, pesquisar sobre os yokai, as criaturas do folclore japonês, me
trouxe a ideia de outra história, então veremos a adorável secretária-chefe,
Samuel e Vó Nena (e o Fusca Azul, claro) em mais uma história, possivelmente
aqui no blog.
Então,
ficamos assim, com esta postagem o Escritor com R se despede de 2025, desejando
a todos os leitores muita saúde, paz, sucesso, felicidade e, acima de tudo,
liberdade, especialmente a mais absoluta liberdade de expressão, como deve ser.
Novas
histórias estão sendo no momento revisadas, e conto com sua torcida. E sua leitura!
Aproveitem
a primeira trilogia de Vó Nena e os Caçadores, vem muito mais por aí.
Vó Nena e os Caçadores: O Fusca Azul
Vó Nena e os Caçadores: O Livro Maldito
Vó Nena e os Caçadores: A Última Escrava
Até a próxima!


















