domingo, 11 de dezembro de 2022

ZÉ DA PINGA 20 ANOS

 Eram outros tempos! Maravilhosos tempos quando, por três inesquecíveis anos, a comunidade nerd ansiava pela chegada de dezembro. Significava que um novo filme da maior trilogia da história do cinema, O Senhor dos Anéis de Peter Jackson, estava chegando!

Arquivo-X estava indiscutivelmente chegando a seu fim, mas os excers continuavam fiéis às aventuras de Mulder e Scully. E, de uma Galáxia Muito, Muito Distante, ainda nutríamos esperanças de grandes histórias vindas da Lucasfilm.

Foi um tempo inesquecível para aqueles ávidos por boas histórias, e também para contadores de histórias. Mesmo aqueles que iniciavam sua trajetória.



Era a época gloriosa da revista Sci-Fi News, e foi uma alegria e uma honra inesquecíveis quando minha primeira publicação em mídia física, na edição 62 dessa saudosa revista, chegou às bancas. Tenho a grata satisfação de saber que Zé da Pinga ainda é lembrado pelos fãs de ficção científica, e devo a eles, e também à equipe da revista, Silvia, Lu, Fábio, Paulão e o Professor Walter, inúmeros agradecimentos por esse apoio e incentivo naquele saboroso mas difícil início.



Zé da Pinga ainda foi publicado em meu segundo livro, Filhas das Estrelas, em 2011 pela Editora Estronho. Que continua disponível como e-book, e vocês podem conferir lá embaixo, ao final deste post. Há algumas diferenças, evidentemente, em relação a versão que apresentarei a vocês daqui a pouco, que é a que foi publicada na Sci-Fi News 62. E, com os contos A Marca e Irmãos, também integrantes de Filhas das Estrelas, estabeleci que Zé da Pinga é uma história que faz parte do mesmo universo de meu primeiro livro, De Roswell a Varginha (Tarja Editorial, 2008).



Então, sem mais delongas, apresento Zé da Pinga em sua versão original para vocês, celebrando 20 anos de sua primeira publicação. Boa leitura!



ZÉ DA PINGA


- É verdade, seu moço. A luz veio de lá do morro, “alumiando” tudo por estas bandas!

- E “tumém” ali no fundo, na chácara de “seo” Armando, onde dizem que o “bicho” pousou.

O casal, simplório mas muito solícito, explicava tudo o que haviam testemunhado três noites antes. Célia perguntou:

- E os senhores têm visto essas luzes há quanto tempo?

O homem coçou os ralos pêlos que cobriam seu queixo, e por fim disse:

- “Óia”, dona, pelo que a gente se “alembra”, faz bem uns dez dias...

Célia trocou olhares com Marcos. Renato digitava o relato do casal com uma rapidez fenomenal no laptop, enquanto os irmãos Kássia e Leonardo andavam pelos arredores buscando mais evidências.

Salto do Avanhandava, pequena cidade do interior paulista a cerca de cinquenta quilômetros de Campinas, estava a poucos dias de comemorar os vinte anos de sua emancipação e transformação em município. Contudo, para alguns de seus pouco mais de seis mil habitantes, não era aquele o assunto principal naqueles dias, mas sim a grande quantidade de visões de estranhas luzes durante as noites. Na verdade, toda a região era assolada, há semanas, por uma onda de aparições de ovnis, mas, conforme o testemunho que acabavam de tomar de seu Waldir e de dona Iracema, sua esposa, há dez dias os fenômenos se concentravam nas menores cidades daquela região, em especial sobre Salto do Avanhandava.

- O que os senhores acham que é isso?

Seu Waldir perguntou com legítimo interesse, mostrando uma curiosidade típica da região para tudo que era novidade. Renato, no entusiasmo de seus 23 anos, respondeu:

- É uma onda ufológica como há tempos não víamos, seu Waldir! Praticamente desde o Caso Varginha não temos nada assim! Pelo visto, os “extras” estão se animando de novo!

- O padre Reginaldo diz que é tudo coisa do capeta, disse Iracema.

Sem que ninguém pudesse impedir, Renato continuou:

- Que nada, dona Iracema! Acreditamos que eles vêm de outros planetas, outros sistemas solares! Não tem nada do diabo nisso. Até mesmo o papa disse recentemente...

- Renato, menos, menos, cortou Marcos, o líder do grupo. Não queremos tomar mais o tempo dos senhores, não é mesmo? Agradecemos pela ajuda.

O jovem guardou o laptop a contragosto, e com os demais cumprimentou o pequeno grupo de moradores do Baixo Morro, bairro da periferia da cidade. Estavam entrando na perua, quando Waldir pareceu lembrar-se:

- Ah, nós esquecemos de avisar, o pessoal aqui do bairro tá dizendo que um bêbado, que todo mundo chama de Zé da Pinga, tá sumido há uns dois dias.

Eles voltaram a se interessar, pedindo mais detalhes. Ouviram que aquele homem costumava vagar pelo bairro mendigando, e era muito conhecido nos dois ou três bares das redondezas. Apesar de gostar de ficar de pileque, não incomodava ninguém, a não ser quando ficava mais animado, segundo diziam, e saía dizendo que “eles” chegariam em breve.

- Quem são “eles”, seu Waldir?

A pergunta de Marcos foi respondida com um erguer de ombros. Ninguém sabia mais nada sobre o Zé. Ele aparecera na região há uns quinze anos, e corriam boatos que tinha sido militar ou coisa parecida na época da ditadura.

- Uns e outros ainda falam que ele “teve” envolvido com alguma coisa séria do governo, disse dona Iracema. Mas nós não “crerdita” muito, não, esse povo gosta de contar história.

Agradeceram, e com todos a bordo da perua se encaminharam para o endereço de mais uma testemunha, logo na outra rua do mesmo bairro seguindo as indicações de seu Waldir. As ruas de terra batida dificultavam um pouco a marcha do veículo, e eles também haviam ouvido muitas reclamações sobre como o prefeito Eduardo não fazia nada para melhorar as condições de vida daquela parte pobre da cidade. Realmente, quando chegaram ali, precisaram pedir autorização para investigar o caso, e os funcionários e o próprio prefeito não foram muito prestativos. A única exceção fora o chefe da polícia local, capitão Flávio, que parecia ser a única autoridade na cidade realmente interessada em encontrar uma explicação para os acontecimentos.

Passaram mais meia hora entrevistando pessoas no novo endereço, e todos os relatos coincidiam. Algo de muito estranho estava acontecendo, o que era ainda mais respaldado por algumas marcas no solo e folhas queimadas de árvores, que encontraram quando foram investigar a chácara de seu Armando. Este, um pequeno produtor rural, também mostrou-se muito simpático, dando os endereços de diversas outras testemunhas.

Estavam nisso, quando viram uma pessoa chegar correndo pela rua, e reconheceram seu Waldir. O homem, esbaforido, disse quase gritando:

- É o Zé da Pinga! Ele apareceu!

Mais tarde, estavam no hospital da cidade, pequeno mas felizmente com capacidade de fazer um atendimento de boa qualidade. Zé havia aparecido com as roupas ainda mais esfarrapadas que de costume, e com um profundo ferimento na cabeça. Disse que havia caído depois que a “casa redonda” levantara vôo...

- Será que o senhor poderia repetir para nós o que se passou, perguntou Célia com todo carinho.

O médico que dava alguns pontos no corte balançou a cabeça em sinal de desaprovação, mas permaneceu calado. O homem voltou a contar sua estranha história. Disse que um grupo de “sacis” chegaram dentro de uma luz, e o convidaram para visitar sua casa.

- E eu fiquei espantado, dona, porque a casa dos “bichinhos” era redonda! Tudo era redondo, e muito “alumiado”, mas eu não conseguia ver nenhuma lâmpada...

Ele contou que os “sacis” como os chamava, fizeram um tipo de exame médico nele, em uma sala que foi descrita como semelhante a que se encontrava naquele momento. Depois, eles teriam contado muitas histórias para ele, e mostrado algumas imagens “numa espécie de televisão” segundo o Zé.

- E o que mostravam essas imagens, Zé, e o que eles contaram para você?

Ele olhou para Marcos, que do alto de seus quarenta anos e mais de vinte dedicados a pesquisa ufológica era o líder do grupo, e respondeu:

- Olha, “seo” Marcos, eles me mandaram dizer só que logo logo eles e mais uma porção de outras “gentes” do lugar de onde eles vêm vão chegar na Terra, porque “nóis” não “tamo” cuidando bem dela, e vão nos ensinar muitas coisas.

Os dois ufólogos se olharam, e até o médico havia parado para acompanhar as palavras, que soavam fantásticas e até loucas demais, mas eram ao mesmo tempo fascinantes. Zé ainda disse:

- Eles me contaram mais uma porção de coisa, mas ainda não posso “contá” elas “proceis”. Só quando eles me chamarem de novo.

- E quando vai ser isso, Zé, perguntou Célia.

Ele olhou para a moça, que tinha vinte e cinco anos, e respondeu:

- Logo, logo, dona...

Deixaram-no descansando um pouco na enfermaria, e saíram. No corredor, o prefeito e o capitão da polícia aguardavam.

- Gostaria de mais uma vez pedir aos senhores que terminem logo com isso! Não queremos que essas histórias se espalhem, e atrapalhem o aniversário da cidade.

Aquela parecia a única preocupação de Eduardo. Mostrava-se muito ansioso. Marcos respondeu:

- Temos algo estranho acontecendo, prefeito, e gostaríamos de continuar investigando.

- Vão dizer que acreditam nessa bobagem? Por favor, o homem é um pobre-diabo, vive bêbado pelos cantos!



- Mas ninguém o viu pelos últimos dois dias, prefeito, respondeu Célia. Todas as pessoas que entrevistamos disseram que Zé nunca sumiu por tanto tempo.

Eduardo parecia muito contrariado. Ficou com a cara ainda mais fechada quando Flávio disse que muitas pessoas estavam assustadas, e portanto era sua obrigação tentar desvendar aquele mistério:

- E, para isso, se pudermos contar com ajuda especializada melhor, não concorda, prefeito?

Ele não parecia nada feliz, resmungou algo incompreensível, cumprimentou todos com um leve aceno de cabeça e retirou-se dali. Na saída, quase trombou com dois repórteres do único jornal local, que também ajudavam nas investigações. A moça, Maria, cumprimentou os presentes e o chefe de polícia que também saiu, e dirigiu-se aos ufólogos:

- É, vocês conseguiram incomodar o prefeito.

- Maria, por que ele está assim, perguntou Marcos. Afinal, são poucas pessoas que acreditam sequer que esses fenômenos estejam acontecendo.

O outro repórter, Gustavo, chamou todos para um canto, e disse que a festa significava muito para o prefeito. O mesmo era de uma família de muita influência por toda a região, e se a mesma fosse um sucesso, poderia ser usada como propaganda eleitoral:

- Logo vai haver eleições, e Eduardo quer se candidatar a deputado estadual. Além de tudo, correm boatos que muita coisa nessa festa foi superfaturada. Não temos provas, mas empresas de familiares e amigos do prefeito estão entre os fornecedores...

Intrigas políticas, mais um complicador para uma situação já bem complicada! Eles trocaram mais impressões sobre o que parecia estar acontecendo, e já se dispunham a ir embora, quando o mesmo médico veio correndo, com uma radiografia nas mãos. Sua expressão dava mostras de profunda confusão.

- Estava examinando novamente as radiografias que tiramos do Zé, e acabei encontrando isso. Nunca vi nada igual!

Apontou diretamente para um estranho objeto na chapa, logo acima do osso da fronte do crânio do Zé. Todos puderam ver um estranho objeto alongado, de formato cilíndrico, alojado do lado oposto ao ferimento que acabara de ser tratado. Não havia qualquer sinal de um orifício de entrada. Os repórteres ficaram boquiabertos, enquanto os ufólogos se entreolharam pela enésima vez. O caso ficava mais interessante a cada nova pista encontrada.

Enquanto os outros ficavam no hospital, Renato, Kássia e Leonardo resolveram ir assistir a uma das missas de padre Reginaldo. Mal entraram na pequena igreja e sentaram-se em três lugares vazios, e as cabeças que haviam se virado para trás para observá-los já se voltavam para frente, e um “zunzunzum” de conversas paralelas começou a ser ouvido. O padre interrompeu o sermão por alguns instantes com expressão contrariada, e logo voltou a falar, com muito mais veemência que antes:

- E finalmente, aqueles entre vocês com idéias imorais, que se questionam sobre a Criação do Senhor, e até almejam acrescentar “coisas” a Sua Divina Obra, estejam avisados: nas Sagradas Escrituras está, há muito tempo, o relato do que irá acontecer ao Final dos Tempos! Está escrito que nos céus aparecerão prodígios, mas que são na verdade maquinações do Mal para dominar os fracos de espírito, para cobrir e denegrir a obra de Deus na Terra! Aqueles dentre vocês que derem ouvidos aos que espalham essas histórias de falsos prodígios padecerão na danação eterna, assim está escrito!

Longe de se intimidarem com as ameaçadoras palavras do padre, aquilo divertiu os ufólogos. Renato, que gravava tudo com sua câmera digital, mal conseguia evitar de dar gargalhadas. Os outros insistiam aos cochichos para que se contivesse. Finalmente, depois da comunhão e dos ritos finais, a igreja ficou vazia, e os três foram falar com padre Reginaldo.

- O que querem aqui? Esta é a Casa de Deus!

Leonardo, o mais diplomático dos três, pediu desculpas, mas assegurou que não estavam ali para incomodar ninguém:

- Desculpe, padre, não é nossa intenção trazer algo negativo para ninguém nesta cidade. Queremos apenas juntar provas, entender os fatos desses acontecimentos...

- Não há nada para entender, cortou o padre rispidamente. O diabo pode se manifestar de muitas formas, como deveriam saber se estudaram a Bíblia Sagrada.

Kássia, que trazia um crucifixo pendurado em uma correntinha, perguntou:

- Mas padre, a mesma Bíblia não nos ensina as palavras de Jesus, que não devemos julgar para não sermos julgados, e devemos amar o próximo como Ele nos amou?

O padre resmungou qualquer coisa, e ela ainda disse:

- Pelo que sei, a Bíblia não cita nada sobre os dinossauros, mas já encontramos seus ossos e outros vestígios, e portanto sabemos que os mesmos existiram. O senhor nega isso?

- E acho que se lembra há alguns anos, quando a NASA, a agência espacial americana, anunciou a descoberta de bactérias fossilizadas em um meteorito marciano, acrescentou Renato com todo entusiasmo. Vai negar isso também, padre? Os extraterrestres não existem só porque a Bíblia não os cita nominalmente?

Renato já ia falar dos sumérios, que nos legaram um relato do Dilúvio milhares de anos mais antigo que o das Escrituras, quando Kássia gentilmente o cutucou. Leonardo prosseguiu:

- Desculpe nosso amigo, padre. Aliás, nem é nosso trabalho convencer o senhor, nem qualquer pessoa, de nosso ponto de vista. Queremos apenas analisar os fatos. E ouvir todas as opiniões, foi para isso que viemos ouvir o que tem a dizer.

- Já sabem o que penso de tudo isso. Agora vão!

Com isso, estava encerrada mais aquela entrevista. O padre ainda lançou um olhar mal humorado para Kássia, que usava calças compridas, e retirou-se. Já haviam reparado que apenas as mulheres mais jovens da cidade vestiam-se daquela forma, e sabiam que uma razão para aquilo era exatamente os sermões de padre Reginaldo, que não admitia “pouca-vergonha” por parte de nenhum de seus fiéis, nem desvios do que chamava de caminho da virtude. Depois de enfrentarem outros olhares hostis e ameaçadores por parte de beatas e outros devotos que os esperavam fora da igreja, entraram na perua e foram ao encontro dos amigos.

Estavam no começo da noite no pequeno hotel da cidade conversando e verificando os dados que haviam coletado:

- Esta cidade parece parada no tempo, reclamou Renato.

- Nosso amigo é sempre muito radical, mas agora estou com ele, disse Kássia. Imagine, as mulheres e senhoras ficam me encarando e olhando feio só por causa de como me visto! Sentiu isso também, Célia?

- Acho que é isso que faz uma viagem dessas valer a pena, respondeu ela. Conhecer outras pessoas, outros lugares. O Brasil é tão grande, e é difícil imaginar que em nosso próprio país ainda exista gente que vive assim, não é?

Marcos, estava no quarto comunicando-se com colegas por e-mail. Haviam levado o Zé do hospital para um lugar que o mesmo chamava de casa, um barraco nos fundos da casa de um vizinho do seu Waldir. Lá, tiveram a chance de examinar o único documento que ele possuía, uma identidade já muito desgastada pelo tempo. Era isso que Marcos usava em sua pesquisa. Subitamente, desceu as escadas correndo, e veio a seu encontro. Disse, quase sem fôlego:

- Vocês não vão acreditar no que encontrei sobre nosso amigo Zé da Pinga!

Rapidamente enfiou um disquete no laptop de Renato, e abriu o documento. Todos puderam ver a cópia de uma identidade militar datada dos anos setenta. Ali constava o nome verdadeiro de Zé da Pinga:

- José Amaro de Freitas, chegou a patente de tenente na Força Aérea, serviu a maior parte da carreira no Pará, e deu baixa em 1988. Esse nome nos diz algo?

Leonardo estava sem entender nada. Porém Renato, dono de uma memória prodigiosa para fatos ufológicos, logo pareceu ter um tipo de “iluminação”. Digitou mais rápido do que os colegas podiam ver algum comando no teclado, e logo outro documento luziu na tela:

- O na época sargento José Amaro de Freitas foi um dos participantes de um projeto da Aeronáutica no sul do Pará que investigou ovnis no final de 1977, e que ficou conhecido como Operação Prato!

Todos conheciam o caso. O comandante da Operação dera uma entrevista há poucos anos, detalhando tudo que havia acontecido na época. Infelizmente, mais dados sobre a mesma nunca foram revelados, nem mesmo a grande quantidade de filmes e fotos que os militares haviam obtido, e que deviam continuar ocultos nos arquivos da Aeronáutica.

- Meu Deus, estão achando que José veio para cá... para fugir de algo com que tiveram contato naquela época?

A pergunta de Célia tinha razão de ser. Entre os relatos que haviam colhido, alguns diziam que Freitas, ou Zé da Pinga, chegara a ter numa ocasião meia dúzia de seguidores, e iniciaram uma espécie de culto extraterrestre. Logo, porém, todos sumiram menos Zé que, abandonado, passou a beber e vagar pela periferia da cidade.

- Gente, esse caso está ficando cada vez melhor!

Por incrível que possa parecer foi Marcos, o mais ponderado do grupo, que disse isso cheio de entusiasmo. Decidiram que deviam voltar a encontrar Zé o mais depressa possível.

No dia seguinte, forma procurar o Zé, mas não o encontraram em casa nem em lugar nenhum. Seu Waldir não sabia o que fora feito dele, até que uma outra vizinha disse que três jipes haviam chegado no meio da noite:

- Saiu um monte de gente armada e com roupas do exército, parece, e levaram o Zé. Pareciam muito bravos com ele...

Procuraram pela cidade, e finalmente chegaram a delegacia. De fato, três veículos com o tradicional verde, e com inscrições da força aérea, estavam estacionados defronte a mesma. Dois soldados montavam guarda na entrada, e não permitiram que entrassem.

Suas reclamações e protestos deveriam ter sido ouvidos lá dentro, pois logo o capitão Flávio saiu, acompanhado por um homem em uniforme militar, que parecia oficial. Entretanto, tal como os soldados de guarda, o mesmo não trazia qualquer insígnia ou identificação na roupa. Foi Flávio que disse:

- Lamento, mas tenho ordens de cooperar com o pessoal da FAB nesse caso. Devo pedir que se retirem daqui.

O outro não dizia nada, apenas os observava com um misto de indiferença e aborrecimento. Marcos respondeu:

- Capitão, o senhor é a única autoridade nesta cidade que mostrou um pouco de ética e respeito, tanto por nós quanto pelas pessoas que têm testemunhado esse fenômeno. Vai nos abandonar agora?

Gritos, de repente, foram ouvidos vindos de dentro da delegacia. Kássia e Renato, indignados, responderam quase gritando:

- Estão batendo nele? Estão maltratando o Zé? Mas o que ele fez?

- Vou ter que pedir novamente que saiam, por favor, do contrário os prenderei por desacato.

Flávio falou isso com firmeza, mas percebia-se em seu tom de voz que no íntimo a situação lhe repugnava. Sem alternativa, o grupo entrou na perua e afastou-se dali. Logo cruzaram com o carro do jornal que vinha em sentido contrário, e os repórteres fizeram sinal que os seguissem. Chegando a sede do mesmo, todos entraram, e Maria foi logo dizendo:

- Aquele safado! Foi Eduardo quem chamou os militares! Parece que tem algum conhecido ou parente oficial.

Gustavo ainda acrescentou:

- Quando descobrimos que prenderam o Zé, já era tarde demais. Dá uma raiva não poder fazer nada!

Eles pareciam hesitar em dizer algo que estavam guardando. Finalmente, Maria acrescentou:

- De manhã, logo depois de voltarmos da delegacia onde também não nos deixaram entrar, havia um envelope enfiado por baixo da porta. Vejam só...

Dentro do envelope, havia uma série de documentos, listas de compras, valores e números de telefone, tudo com carimbo da prefeitura. Todos puderam ver que aquilo era a prova que o prefeito havia beneficiado empresas de amigos e parentes na preparação da festa de emancipação da cidade, e em obras superfaturadas feitas para a ocasião. O anônimo autor da denúncia havia trabalhado direito.

- Quase direito demais, será que ele mesmo teria participado da negociata, perguntou Gustavo.

- O que vão fazer com isso, disse Leonardo.

Marcos teve uma idéia. Conhecia muita gente da imprensa em Campinas e cidades vizinhas. Logo cópias dos documentos eram enviadas via faz e e-mail para as redações de diversos jornais da região. O explosivo material seria publicado no dia seguinte.

- Com isso, pegamos o prefeito, disse Renato. Mas o que podemos fazer pelo Zé?

Maria disse que só havia uma pessoa a quem recorrer:

- Padre Reginaldo. Esperem, eu sei que ele não é muito de ficar do nosso lado, mas também sei que quando o próprio prefeito e alguns vereadores foram colhidos por denúncias que nosso jornal fez, ele ficou do nosso lado. Deve ser a pessoa mais respeitada da cidade, até o prefeito não se atreve a ignorá-lo!

Claro que Reginaldo não concordou com eles a princípio. Relutou muito em usar sua influência para ajudar o Zé, e ponderou, com o que a maioria do grupo concordou, que os militares dificilmente o ouviriam.

Finalmente o convenceram, e o padre disse que mais tarde, quando fechasse a igreja, iria a delegacia e tentaria fazer algo. Todos ficaram na expectativa, e duplas foram escaladas para alternadamente vigiar a casa onde a mesma funcionava, a fim de evitar que os militares fugissem com o Zé.

Renato e Célia faziam sua ronda cuidadosa por volta das nove da noite. As ruas, como era habitual, estavam quase vazias, rotina de cidade pequena. Caminhavam nas proximidades da delegacia, quando a moça apontou para o céu:

- Olha! Tem um ponto de luz lá no alto que está se movendo!

Renato percebeu, e apontou a câmera. O ponto de luz foi crescendo, até que deixaram de vê-lo depois de mergulhar atrás da delegacia. O lado da rua em que a mesma se encontrava era formado por uma série de terrenos baldios, e contornava um morro. Era por trás do mesmo que a estranha luz tinha sumido.

Resolveram se separar e ir investigar. Renato seguiu pela outra travessa que também contornava o morro, enquanto Célia voltava pela direção em que tinham vindo. Por isso, nenhum dos dois percebeu padre Reginaldo caminhando na direção da delegacia.

O padre vinha apoiando-se em seu inseparável guarda-chuva, maldizendo-se por haver concordado com os repórteres e ufólogos. Afinal, os mesmos pareciam sempre estar correndo atrás de confusão. Mas, apesar disso, não concordava em absoluto que alguém fosse preso de forma arbitrária, mesmo que fosse um mendigo como o Zé da Pinga. Resolveu que seria muito duro com Flávio e os militares. Estava quase chegando, quando percebeu um foco de luz intenso vindo de dentro da delegacia.

Aquilo definitivamente era fora do normal, e o padre ficou alerta, aproximando-se devagar. Estava a ponto de ficar adiante da porta, quando viu uma sombra que parecia sair da mesma:

- Alô, disse suando frio. Quem está aí?

Nenhuma resposta. Resolutamente, depois de segurar a grande cruz que trazia ao peito, avançou mais três passos e ficou diante da porta. Arregalou os olhos e ficou boquiaberto com o que viu, certificando-se em décimos de segundo que levaria aquela imagem consigo para o túmulo.



Flávio, seus auxiliares e os militares estavam caídos ao chão, parecendo mortos. No centro da sala, havia algo, ou alguém... padre Reginaldo não sabia descrevê-lo. Aquilo deveria ter um metro e vinte de altura, uma cabeça grande em relação ao corpo, e o que pareciam dois grandes olhos negros. Foi tudo que o padre conseguiu distinguir diante da forte luminosidade que inundava o ambiente.

Ficou ali, paralisado, sem conseguir esboçar qualquer reação. O ser virou-se para ele, e a seguir para outra porta, de onde saiu, cambaleando, o Zé da Pinga. O mesmo passou pelo padre depois de lançar-lhe um rápido olhar, seu rosto muito machucado pelas agressões de que havia sido vítima. Cruzou o umbral da porta e afastou-se pela rua.

Renato e Célia vieram correndo, um de cada lado, depois de avistarem um brilho estranho sobre a delegacia. Renato sentiu um calafrio ao ver um vulto cambaleando pela rua, e arrepiou-se novamente ao reconhecer o Zé, todo machucado e sangrando. Perguntou-lhe como havia saído, sem obter resposta. Quando ouviu o grito de Célia, pediu que ele ficasse ali, e correu os pouco mais de cinquenta metros de volta a delegacia.

Célia estava ajudando padre Reginaldo, que estava caído, apoiado na parede da casa. O homem parecia abobado, não falava coisa com coisa. Lá dentro, os militares continuavam caídos, mas Flávio já tentava se levantar, enquanto perguntava, gaguejando:

- O..., o q-que... acont... aconteceu?

Logo Marcos chegava com Kássia para render os companheiros, e ambos se mostravam espantados com o que havia acontecido. Finalmente, o padre disse:

- Eu vi... eu vi...

- O que o senhor viu, padre?

Renato repetiu a pergunta em tom febril, mas Reginaldo só falava isso. Finalmente, o jovem ufólogo lembrou-se do Zé, levantou-se e olhou na direção em que o havia deixado, mas:

- Cadê ele? Cadê o Zé? Eu o deixei bem ali! Estava todo machucado, esses canalhas devem tê-lo espancado horas a fio!

Resolveram sair para procurá-lo. Marcos levou Flávio e Kássia no carro, enquanto o resto seguiu a pé. Mais de meia hora depois, este último grupo encontrou o mendigo caminhando a esmo, perto de um bosque. Célia gritou:

- Zé, espere! Queremos ajudá-lo!

Ele se voltou, e todos se arrepiaram novamente ao ver seus ferimentos. Apesar de ainda estarem amparando o padre, apressaram o passo. Zé estava a ponto de entrar no bosque, quando avistaram os faróis do carro se aproximando. Renato gritou novamente:

- Zé, espere, podemos ajudar, vamos proteger você!

Nisso todos ficaram ofuscados por um brilho intenso que subitamente saiu do bosque. Renato virou-se assustado, enquanto que, protegendo os olhos, Célia e padre Reginaldo viram um cone de luz cair sobre Zé. Ele olhou novamente para o grupo, e todos se espantaram, pois seu rosto estava limpo, sem um arranhão!

- Como, como é possível?

Padre Reginaldo olhava sem acreditar. Renato, recuperado do clarão, apontou a filmadora. O cone de luz que envolvia o Zé desapareceu, e ele mergulhou no bosque. Marcos passou a toda por eles, tentando alcançar o mendigo. Subitamente, as luzes do carro se apagaram, e o motor do mesmo deixou de funcionar. Parou bem antes de chegar ao bosque.

Célia e Renato deixaram padre Reginaldo, que fora acometido por uma crise de tremedeira, e saíram correndo. Os ocupantes do carro também abriram as portas e tentaram alcançar o bosque, mas um novo clarão, emergindo por entre as árvores, fez com que todos parassem.

Um objeto, de mais de dez metros de diâmetro e intensamente iluminado, começou a se elevar. Aquela única massa luminosa subiu rapidamente até ficar com um tamanho semelhante a lua cheia, quando disparou para o céu com uma velocidade extraordinária. Tornou-se um pontinho de luz, e desapareceu em instantes sem deixar vestígios.

Voltaram na manhã seguinte bem cedo. Todos ficaram estarrecidos, mesmo padre Reginaldo, ao encontrar um grande círculo de grama revirada e em alguns pontos queimada, na clareira bem no centro do bosque. O círculo tinha um diâmetro de pouco mais de dez metros. Dentro do mesmo, quatro impressões redondas, obviamente resultantes de um grande peso. A terra dentro das mesmas estava bem compactada, confirmando aquela observação. Leonardo apressou-se a recolher amostras de toda a área, ajudado pela irmã, Kássia.

Os moradores das redondezas foram unânimes em confirmar as observações do grupo. Estavam todos muito assustados, e recorriam ao folclore ou a crenças religiosas para explicar o que ocorrera.

Os militares, depois de aparecerem no local pela manhã e rapidamente darem uma olhada fugaz em tudo, foram embora. Suas identidades e a unidade a que pertenciam não puderam ser determinadas.

Subindo nas árvores que rodeavam a clareira, encontraram diversas folhas queimadas, e também recolheram amostras para análise. O contador geiger que trouxeram, contudo, não acusou presença de radioatividade.

Padre Reginaldo, depois de passar boa parte da noite trocando idéias com Renato, e diante das evidências, fez um sermão muito diferente naquela manhã. Disse que a obra de Deus não pode ser nunca diminuída por nossas limitadas percepções, e que, segundo a velha sabedoria popular, “há muito mais coisas no céu e na terra do que sonha nossa vã filosofia”.

Todo o grupo de ufólogos fez questão de assistir a missa, e retribuíram com alegria o sorriso de padre Reginaldo. Haviam conquistado um importante aliado, o que já compensava a viagem e toda aquela confusão.

Os jornais de toda a região publicaram a documentação, comprovando as falcatruas do prefeito Eduardo. Dias depois, souberam que a câmara de vereadores, em tempo recorde, o havia afastado, e um processo criminal para que devolvesse os recursos de que havia indevidamente se apropriado fora instalado na comarca municipal.

A identidade da pessoa que enviou a documentação não foi conhecida por algum tempo. Semanas depois, Maria lhes enviara uma edição do jornal, em que Flávio explicava as razões de seu pedido de demissão. Segundo o ex-chefe de polícia, “tinha que acertar contas com o passado, pagar por coisas das quais sabia, mas que não fiz nada para impedir”. Foi convocado como a principal testemunha de acusação contra o prefeito, mas a oposição já reclama da demora no processo, e não concorda que o mesmo seja conduzido por um juiz que é primo do ex-prefeito.

Apesar de terem prolongado sua permanência em Salto do Avanhandava por mais dois dias, e buscado em todos os lugares possíveis, não havia sido encontrado qualquer sinal do Zé da Pinga, ou José Amaro de Freitas, antigo tenente da FAB, e que quando era sargento, por volta de 1977, teve contato com “algo” inexplicável no sul do Pará. Nunca mais ninguém da cidade viu ou ouviu falar nele, e muitos são os que agora sentem muitas saudades desse personagem. Outros, ao contrário, o consideram apenas uma lenda, “o mendigo que foi raptado por um disco voador”. A opinião de Renato, contudo, que escreveu o artigo que foi um dos destaques de capa da principal publicação brasileira do gênero dois meses depois, era bem diferente. O texto terminava assim:

“Apesar deste caso continuar sob investigação, não sabemos se algum dia realmente teremos alguma notícia de Freitas, ou como era conhecido, Zé da Pinga. Ele teve contato com  algo muito além de nossas pobres concepções, na Amazônia do final dos anos setenta. Talvez não estivesse preparado para tanto, pois os relatórios a que tivemos acesso dão conta que ele simplesmente sumiu logo após a Operação Prato ser desativada. Apesar de procurado, só foi encontrado pelos militares, aparentemente, quando da ocorrência dos fatos descritos neste artigo. Seu paradeiro permanece ignorado.

Quanto ao que dizia, sobre a chegada “deles”, só o que nos resta é aguardar...

Contudo, e se os leitores me permitem especular um pouco, talvez aqueles que o contataram em 1977 perceberam seu erro, perceberam o que o contato fez com o Zé, e finalmente vieram procurá-lo. Acreditamos que, vendo a forma como ele foi tratado por seus semelhantes, tenham concluído que levá-lo com eles fosse a melhor alternativa. Assim, é possível que Zé da Pinga seja, afinal, o primeiro embaixador da Terra em algum mundo distante. Fazemos votos, então, que fale de nós, de seu mundo, com a mesma tolerância, respeito e benevolência que muitos lhe negaram”.


Obrigado a todos que sempre me apoiaram, e faço aqui um pedido: continuem a fazer o que fazem! Nos leiam e nos apoiem, pois são vocês que fazem tudo valer a pena!



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quarta-feira, 19 de outubro de 2022

A LISTA: OS EDITORES DA NAÇÃO


A Lista é um fórum e rede social da qual participam produtores e divulgadores de conhecimento. Escritores, professores, jornalistas, cientistas e muitos outros. Cada um deles habita um universo paralelo distinto, uma realidade, um mundo, um Brasil que pode ser semelhante ao nosso, mas também muito diferente. Acompanhe agora mais uma história, situada em um distante universo que pode estar muito próximo de nós.


Ás 19 horas em ponto, como vinha acontecendo há treze anos, todos eram obrigados a manter seus televisores ligados. O pronunciamento do presidente da Suprema Corte, Barnabé de Nonato, começou pontualmente, e ele começou como de habitual:

— Brasileiras e brasileiros, novamente lamento informá-los que as empresas e portais recusam-se a colaborar com as iniciativas sociais e de defesa da democracia brasileira capitaneadas por esta Suprema Corte. Continuam a resistir a esta iniciativa democrática, mesmo diante dos alertas de que o acesso à internet pode vir a ser cortado para nosso país, caso não se disponham a colaborar e exibir este pronunciamento ao vivo.

Machado Monteiro de Assis, batizado em honra ao grande escritor brasileiro que havia sido proscrito naquela realidade, pois a fina ironia, o humor sutilmente sarcástico e o refinamento linguístico eram intoleráveis para a ideologia dominante, pensou na época em que conseguia rir daquilo.

As multas pesadas e a ameaça de suspensão de acesso a quem não ligasse seu televisor para assistir ao pronunciamento do juiz dependiam inteiramente do monitoramento, via internet, desses mesmos televisores. E na prática era impossível para plataformas de vídeo obrigar os usuários a assistir aos pronunciamentos. Restava ao magistrado mandar prender jornalistas e humoristas que se atreviam a manter-se no ar no mesmo horário, fazendo troça e comentários irônicos quanto a sua fala.

— Sob minhas ordens – prosseguiu Barnabé – os deputados federais Walter Kovacs, Cristina Bernardes, Geraldo Aparecido e Dora Neves foram presos pela Polícia Federal. Sua recusa em votar a favor do Projeto de Lei 2630-2020, a Lei de Garantias de Diversidade, Inclusão e Verdade na Comunicação, uma iniciativa louvável destinada a restabelecer a paz, a liberdade e a democracia de forma definitiva em nosso país é incompreensível e inaceitável. No site da Suprema Corte também estão listados os nomes de outros parlamentares que infelizmente precisaram ser detidos e ter o seu mandato suspenso, por exercerem seus votos no Congresso Nacional de forma contrária aos interesses da sociedade.

“Contrária aos interesses da sociedade”, pensou Machado, significava contrária aos interesses de Sandero Salvador, líder do partido nanico Sustentação Social. Ele era, havia anos, o ocupante de um cargo novo criado pela própria Suprema Corte, o de Primeiro Fiscal da Justiça Social, um testa-de-ferro da corte no congresso. Assis verificou o site e constatou, sem qualquer surpresa, que entre os presos estava o senador Fernando Delagnol, autor de vários pedidos de impeachment contra Barnabé de Nonato.

Também sem surpresas, Nonato não se referiu a ele, mas exaltou seu cúmplice Salvador:

— Quero louvar e parabenizar as iniciativas e esforços incansáveis do senador Sandero Salvador, uma voz atuante e firme no combate às forças que ameaçam nossa democracia. Ele e seu partido, a SS, merecem o espaço que têm ocupado cada vez mais na cena política brasileira.

“Meus Deus” pensou Machado, “eles sequer têm vergonha de usar a sigla SS”. E novamente refletiu como a SS nunca teve votos suficientes para conseguir a aprovação de suas propostas no congresso, mas aprenderam depressa a judicializar sua atuação parlamentar e conseguir o que pretendiam na marra. Sempre, é claro, se dizendo “democratas”.

Cansado, ele fechou a janela do vídeo de Barnabé na tela do computador. Fazia anos que não tinha televisor, então não sofreria punição pelo gesto. Não que não tivesse problemas... Mas decidiu que a melhor maneira de desabafar seria com seus amigos na Lista.


De: Machado de Assis

Para: A LISTA

Assunto: Re: “Defender a democracia” destruindo a democracia


Olá, colegas da Lista. O cerco contra as liberdades e a democracia no Brasil de meu universo, feito pelas instituições que deveriam zelar pelas leis, pela Constituição e por essa mesma democracia, segue cada vez mais cerrado. Eu poderia encarar com ironia esse ataque contra a democracia feito alegadamente para defender a democracia, mas até mesmo a ironia está sendo abolida de artigos, textos, contos e livros por aqui.

Quando conseguimos colocar um fim ao governo populista de Kleyton Hernandes, que destruiu a economia da nação e tentou por inúmeras vezes instituir controles das liberdades, sempre por meio de eufemismos como “controle social da mídia” e “democratização e regulação dos meios de comunicação”, acreditamos que estávamos livres do tal “progressismo” que é na verdade o pior dos autoritarismos.

Infelizmente estávamos errados. Esse período tenebroso de quatorze anos deixou como legado a politização de inúmeros círculos da sociedade, da política e do aparato estatal, através da infiltração de militantes e ativistas que não buscam meramente defender uma causa ou agenda, mas sim impô-la pela força sobre todos os demais.

As primeiras infiltrações, evidentemente, foram na educação, e estima-se que gerações tenham sido perdidas para a ideologia “progressista”. O resultado são bandos de analfabetos funcionais e autênticos fanáticos ideológicos que não medem esforços para destruir cada pilar da civilização que nos separa do caos.

O virtual comando do país passou para a Suprema Corte, que se imiscuiu indevidamente nos demais poderes, colocando-se acima deles com literalmente poder absoluto sobre cada aspecto da vida da nação. Pelo visto acreditaram quando Tenório Damásio, antigo funcionário do partido de Hernandes e um dos juízes da mais alta corte, afirmou serem eles os “editores da nação”.

Houve, claro, os que aplaudiram e ainda aplaudem os abusos dos juízes sobre as liberdades mais fundamentais, base de qualquer democracia. Alguns entre estes não demoraram a sentir eles próprios a “defesa da democracia” comandada pelo presidente já duas vezes reeleito da corte, Barnabé de Nonato. O Congresso Nacional, que deveria ser a instituição que julga tais delitos, é comandado por autênticos covardes cujos próprios processos de que são réus, na mesma Suprema Corte, servem como elemento de pressão para que nada seja feito.

E foi até mesmo criado um novo cargo, Primeiro Fiscal da Justiça Social, ocupado pelo senador Sandero Salvador, autêntico fiscal dos juízes no congresso. “Equilíbrio e harmonia entre os poderes”, os colegas me perguntam? Ameaças de prisão e processo foram o que de mais leve se fez contra outros juízes, advogados, jornalistas, comentaristas e escritores que se atreveram a lembrar desse princípio civilizatório fundamental.

Tornou-se um perigo acreditar que continuamos a viver em um regime de plena liberdade de expressão.

Eles clamam por diversidade mas abominam a diversidade de expressão e opinião. Afirmam defender a inclusão, mas excluem e cancelam os que discordam de suas ideias e métodos. Se apresentam como promotores da paz, amor e união, mas segregam e calam os que recusam a exigência de se ajoelhar e lhes dedicar fidelidade absoluta.

A caterva operadora desses ideólogos nas fronteiras digitais, da internet e redes sociais, por sua vez, age por meio de derivados atuais e tecnológicos das fogueiras de livros da Alemanha nazista dos anos 1930, flagelo que sei que atingiu várias das paralelas dos colegas. Até mesmo Machado de Assis, com suas inteligentes e ácidas ironias e críticas sociais, foi “cancelado” por essa gente, ávida por defender a “inclusão”, a “diversidade” e a “democracia” combatendo de todas as formas a diversidade mais elementar que pode existir, a de opinião e expressão.

Batizado em honra ao grande Machado original, eu mesmo me tornei escritor graças à paixão que me foi transmitida por meu pai. Talvez tenha sido por isso que fui escolhido para esta misteriosa e fascinante Lista, onde há tantos e tantos outros colegas das letras e do conhecimento. E, embora tenha travado contato com aterrorizantes relatos de como a revelação da existência da Lista em diversas realidades resultou em catástrofes e até mesmo em eventos apocalípticos, não poderia mais virar as costas para o que vem acontecendo em meu Brasil.

Por isso tenho compartilhado todas as informações possíveis que me chegam, vindas desse impressionante Multiverso, na esperança de trazer racionalidade ao debate. Porém, como podem imaginar, o resultado não foi tão auspicioso quanto minhas esperanças.

Sou o mais novo a ter o nome vinculado ao Processo de Combate às Mentiras e Enaltecimento á Verdade, com o qual a Suprema Corte pretende dar o que descreve como o golpe final contra os que alega ameaçarem a democracia. Estou neste momento hospedado no maior edifício do país, a nova sede da Suprema Corte em Brasília, aguardando o momento de minha audiência com os juízes.

Tenho uma ótima advogada, amiga de muitos anos. A questão é que nem ela, nem os advogados dos demais réus, teve acesso aos autos do processo.

E eles dizem que o mesmo se destina a “defender a democracia”.

Ah, a ironia e o sarcasmo... quem diria que se tornariam tão perigosos?

Até breve, se for possível.



Assis enviou a mensagem para A Lista. Como ainda havia tempo, repassou as mais recentes notícias a respeito das violências cometidas contra a liberdade, travestidas de “defesa da democracia”. Ainda funcionava um fórum do qual era um dos fundadores em uma rede social, e ele leu os comentários sobre um sarau literário acontecido na noite anterior.

Vários autores, a maior parte seus conhecidos, participavam do evento em um bar em São Paulo. Diversos livros e antologias foram lançados, todos sem qualquer ligação com o tragicômico “progressismo”, o bar estava lotado e havia grandes filas para autografar os exemplares. O evento foi subitamente interrompido pela chegada da Polícia Federal, que impediu a saída das pessoas e interrogou cada um dos presentes.

Na ação, ordenada pelo juiz Nonato com base em um pedido do quase onipresente senador Salvador, todos os volumes foram apreendidos, incluindo os já comprados pelos frequentadores. Todos foram interrogados, e já era de manhã quando as primeiras pessoas foram liberadas para ir para casa. Editores e boa parte dos escritores presentes foram conduzidos à sede mais próxima da Polícia Federal para esclarecimentos mais detalhados, e conforme notícias postadas por quem estava no evento os profissionais das letras, escritores e escritoras, editoras e editores, estavam sendo mantidos incomunicáveis, sem comida ou água à disposição.

A mídia, em sua maioria, enaltecia a ação repetindo as palavras de Nonato, de que “toda e qualquer ameaça contra a democracia e as instituições deve ser investigada e, quando confirmada, duramente punida”. A alegação do Primeiro Fiscal para motivar a ação chegava a ser patética: “Esses pretensos escritores estão misturando política e justiça com ficção, buscando atingir as fundações das instituições”, disse ele em uma entrevista apresentada naquela manhã. “Inserir no palco sério do Congresso Nacional histórias mirabolantes e fantasiosas é certamente uma tentativa sub-reptícia de atingir a imagem e a honra dos congressistas”, afirmou ele a respeito de uma antologia lançada naquela noite, cujo tema a ser explorado pelos autores participantes era “Conspirações do Poder”. E da qual o próprio Assis era um dos participantes.

Em outros fóruns literários a operação da PF era saudada como uma “vitória contra os ‘fascistas’”, isso vindo do mesmo grupo que sempre defendeu que “política e livros sempre caminharam juntos”.

Machado pensou em responder aos comentários mais virulentos do pessoal “progressista”, mas desistiu. Havia coisas mais prementes com as quais ocupar a mente, e ele havia muito perdera qualquer vontade de discutir com fanáticos. A situação o lembrou de relatos similares que havia lido nA Lista. Como o de Amanda, que se arriscava a estudar Letras e a escrever em um Brasil onde o louvor à mediocridade vindo da versão deles de Kleyton Hernandes havia chegado a níveis estarrecedores. Sair à rua com um livro na mão naquele universo era arriscar a vida. A própria Amanda, ao corrigir um texto no computador de uma lan house havia alguns anos fora insultada de “elitista” por alguém que observara seu gesto.

Pior sorte teve Michelle, em uma realidade na qual o (des)governo de Hernandes impingiu uma tal “lei de proteção da cultura nacional” proibindo toda e qualquer manifestação artística que fosse considerada estrangeira. Perseguida por escrever, produzir e divulgar obras de artistas que faziam questão de permanecerem livres ela fora assassinada por agentes governamentais, e agora o membro dA Lista naquela realidade era seu namorado Marcelo.

Machado se lembrou então do momento em que decidira tornar públicos os arquivos e relatos dA Lista que recebia, na desesperada tentativa de mostrar ao público e as pessoas que tinham poder de decisão que a realidade era incomparavelmente, infinitamente maior do que qualquer um deles podia imaginar. Que erros como os que vinham sendo cometidos em seu Brasil trouxeram a ruína e a destruição a inúmeras outras versões deles através do Multiverso.

Lamentavelmente, só havia conseguido com isso chamar a atenção errada para si. Foi acusado de “conspirar contra a democracia” e “convidado” a ir a Brasília para prestar esclarecimentos. Alguns poucos corajosos jornalistas e instituições de imprensa estavam a seu lado, bem como a maior parte de seus colegas.

Mas a corrupção de grandes conglomerados de mídia, mancomunados com autoridades que abusavam de seus poderes cada vez mais, estavam tornando a liberdade uma mercadoria cada vez mais escassa na sociedade.

A porta do apartamento que fora cedido para ele se abriu após uma leve batida e Maria Cláudia, sua advogada, colocou meio corpo para dentro e disse:

— Machado, está na hora.

O escritor olhou para ela, sorriu levemente e suspirou. Antes de fechar o laptop e inseri-lo na maleta que levaria, viu uma última notícia.

Sandero Salvador havia acabado de postar em suas redes sociais o anúncio de que estava elaborando um projeto de lei emergencial de defesa da cultura brasileira, e um dos pontos era a proibição do uso de alegorias ou referências a qualquer instituição governamental nos três níveis da federação. Também escreveu “ser premente a necessidade de discussões no sentido de purgar a cultura brasileira, em todas as mídias, de gêneros sabidamente estrangeiros que conspurcam e tiram espaço da legítima e diversa cultura nacional”.

No vídeo era possível ver algumas manchetes nos jornais espalhados por sua mesa, descrevendo as divulgações que ele, Machado, havia feito do material recebido via A Lista.


O gigantesco edifício da Suprema Corte em Brasília, o mais alto do país com 400 m até o topo, tivera um custo estimado de quatro bilhões em moeda corrente. Fora alvo de inúmeras denúncias de corrupção e mal uso de verbas públicas, especialmente por parte do juiz Ladislau Neto, que comandou a obra. A imprensa em seus bons tempos esmiuçou as contas de sua construção, antes de o mesmo Barnabé de Nonato decretar sigilo de cem anos para os documentos.

Machado e Maria caminharam pelos corredores suntuosos, revestidos por alguns dos mármores mais caros disponíveis no mercado internacional. Depois de tomarem dois elevadores, pois por questão de segurança nenhuma dessas máquinas proporcionava acesso a todo o prédio, chegaram ao salão onde se davam as audiências e interrogatórios do Processo de Enaltecimento à Verdade, versão reduzida do título utilizada por todos os juízes da corte.



Maria verificou mais uma vez o comprimento da saia, arcaísmo que a presidência de Nonato havia retomado, ajeitou a beca preta que todo advogado deveria vestir em audiências na Suprema Corte, e deu uma última olhada no terno e gravata de Machado. Os seguranças e auxiliares dos juízes que os acompanhavam observaram a cena, e depois um auxiliar abriu a enorme porta, com detalhes banhados a ouro, e lhes franqueou passagem.

O salão, repleto de estátuas e retratos de juízes que se destacaram ao longo da história daquele tribunal, fazia os corredores que atravessaram parecerem os de um hotel de beira de estrada.

Estavam presentes os juízes Barnabé de Nonato e Tenório Damásio, além do senador Sandero Salvador. Andando para o assento central, diante da comprida mesa dos juízes e onde o político também se acomodava, Assis cochichou para a advogada:

— O que esse pulha está fazendo aqui?

Maria respondeu tão baixo que ele mal pôde ouvir:

— Pelo amor de Deus, Machado! Se controle, homem, que o Nonato é capaz de mandar prender nós dois! Pelo que ouvi de colegas é comum esse filho da puta estar presente, especialmente quando o interrogado é muito conhecido.

“Maria também não gosta de Salvador, que alívio”, pensou Machado, sorrindo de leve.

Ele se acomodou em seu lugar, ficando em pé enquanto não lhe mandavam sentar. Maria ficou ao lado, no lugar designado ao advogado.

— O interrogado trouxe seu computador, como requisitado? – perguntou um dos auxiliares.

Os juízes o olhavam com ar de nítida superioridade, ao passo que Salvador mantinha uma expressão de galhofa arrogante no rosto. Assis tirou o laptop da pasta e o colocou na pequena mesa diante dele. O auxiliar conectou o aparelho ao sistema de exibição do salão, ao mesmo tempo em que uma grande tela plana descia à direita de Machado. Então o escritor e sua advogada tiveram permissão de se sentar.

Nonato começou com um discurso em que burocrática e mecanicamente agradecia pela colaboração, e já começou pedindo esclarecimentos a respeito “dessa tal Lista”, como a chamou. Machado ficou em pé, respirou fundo, acionou os comandos apropriados no laptop e as informações foram exibidas no telão, ao mesmo tempo em que ele fazia sua apresentação:

— A Lista – disse Machado —  é parte um fórum de discussão e parte uma rede social, da qual participam escritores, jornalistas, professores, cientistas, advogados... todos, sem exceção, ligados de alguma forma à produção, divulgação e propagação do conhecimento. São incontáveis os participantes, divididos em grupos por afinidade, localização no Multiverso, áreas de interesse e afins. E, como já ficou claro, cada membro se situa em um universo paralelo distinto.

— O senhor afirma que existe esse... Multiverso, mas não apresenta provas – observou Damásio.

— Juiz, as provas estão aí para os senhores as verificarem. Já submeti os arquivos de meu computador a seus peritos, que tiveram total liberdade de copiá-las.

— Quem disse que o senhor não inventou toda essa fantasia? – questionou Sandero Salvador.

— E quem designou o senhor, membro do Parlamento, para participar do interrogatório de um processo de outro Poder? – inquiriu Assis sem se conter.

— Exijo que me respeite! – gritou subitamente Salvador com sua conhecida voz fina e estridente.

— O senador Salvador está aqui, como acontece em vários casos especiais, e o do senhor é um destes, como deferência a seu cargo de Primeiro Fiscal da Justiça Social – comentou Nonato, parecendo se divertir com a situação. – O senhor, Assis, irá tratá-lo com o mesmo respeito, urbanidade  e reverência reservado a nós, juízes da Suprema Corte.

“Pode apostar que sim”, pensou Machado divertindo-se. O escritor fez uma leve reverência inclinando-se para frente, e respondeu:

— Digo então ao nobre parlamentar para se lembrar de minha produção literária. Ainda sou relativamente jovem, e tenho nove livros publicados, além de participação em outras tantas antologias, e postagens de histórias curtas em meu site pessoal. A mais recente antologia, aliás, foi Conspirações do Poder, lançada na noite passada em São Paulo, como acredito que devem ter ficado sabendo. Ainda escrevo, por enquanto, para duas revistas e um jornal literários, lembrando que um desses veículos recentemente teve um de seus números recolhido por suposta “ameaça à democracia”. Então, senador, se pensa que com toda essa intensa e variada produção literária eu ainda teria tempo de criar A Lista e falsear todo o material divulgado, não posso deixar de ficar lisonjeado. Mas de fato seria impossível, com meu conhecimento, inventar as informações que disponibilizei a todos, incluindo os senhores.


— O senhor alega que em outras dessas... como se refere a elas mesmo? – questionou Nonato folheando suas anotações. – Sim, realidades paralelas, existem versões de todos nós, e situações que se assemelham às que vivemos aqui?

— Sim senhor.

— E sua intenção com essa pretensa revelação é alterar o rumo que os acontecimentos têm tomado em nosso país?

— Evidentemente, no sentido de corrigir enganos e abusos sendo cometidos em nome de... como é que os senhores se referem? — Machado consultou um caderninho que havia trazido, mas depressa o fechou e postou ao lado do laptop. – Ah, claro, “defesa da democracia”.

Foi visível a exaltação tomando a expressão de Barnabé, tanto que Maria se levantou e disse:

— Senhores, estimados juízes, entendam que meu cliente não pretende de forma alguma insultar esta Suprema Corte com suas observações. Ele é um escritor, um artista, e por vezes experimenta dificuldades em sair da linguagem literária.

A advogada lhe lançou um olhar furioso. Barnabé continuava com expressão de poucos amigos, e Assis respondeu aos dois com neutralidade no olhar.

— Pretendo, com a revelação da existência da Lista e a divulgação de quantas informações forem possíveis que dela recebo – prosseguiu o autor, — mostrar para todos que a realidade como a concebemos é infinitamente mais complexa do que podemos imaginar, e que não devemos cometer em nosso Brasil os mesmos erros que levaram outras versões de nosso país à ruína, em diversos universos paralelos.

— O senhor está brincando com esta Suprema Corte, e será punido por isso! – exasperou-se Tenório.

— Senhor juiz, tivemos em anos recentes uma pandemia que ceifou inúmeras vidas, e na qual um dos motes era “respeitar a ciência”. Muitas das informações científicas que tenho divulgado, recebidas dA Lista, têm sido corroboradas por membros da comunidade científica, aqui e no exterior. Recebi mensagens entusiasmadas de cientistas, afirmando que suas pesquisas poderão avançar anos com essas informações. Será que isso não bastará para os senhores? Devemos respeitar a ciência como um todo, ou como tem sido o caso em nosso país nas últimas décadas, especialmente no tocante à matemática, biologia, genética, e agora astronomia e astrofísica, depende da ciência?

Machado olhou para o lado, e Maria lhe implorava com o olhar para maneirar. Damásio ainda o olhava com fúria, Nonato demonstrava ganas de mandar colocá-lo a ferros. Por sua vez, Salvador parecia se divertir.

Foi do senador o aparte seguinte:

— Com a permissão do eminentíssimo juiz Barnabé de Nonato, gostaria de fazer uma pergunta ao interrogado.

Nonato olhou de lado, depois se virou para Assis e disse:

— O nobre senador da SS pode se manifestar livremente.

Machado de novo ficou embasbacado pela naturalidade com que usavam aquela sigla, e aguardou a palavra do político.

— Senhor Machado de Assis, o senhor aludiu a versões de nosso país, até mesmo versões de pessoas nessas outras realidades. Pode exemplificar?

O escritor olhou para o político com expressão neutra, mas por dentro sua mente fervilhava. Havia se preparado para aquela eventualidade, e abriu um arquivo que separara caso aquela oportunidade se mostrasse.

No telão luziam arquivos de reportagens de Brasis de outros universos, mostrando a atuação dos duplos de Barnabé de Nonato e Sandero Salvador. Até mesmo vídeos dos dois personagens foram exibidos, enquanto Machado explicava:

— Este duplo do senhor, juiz Nonato, é escritor e professor em sua realidade. Tornou-se o primeiro brasileiro a vencer o Prêmio Nobel na categoria de literatura. E recentemente precisou fugir do país a fim de escapar da perseguição movida contra ele pelo regime de Kleyton Hernandes.

O silêncio se instalou no grande salão. Machado olhou ao redor e reparou que mesmo os assistentes observavam, mudos de espanto, as informações. O autor prosseguiu:

— Quanto a seu duplo, senador, é um advogado em sua paralela, e muito conhecido por defender críticos e dissidentes do regime de Eusari Serra, cúmplice da versão deles de Hernandes que o sucedeu naquele Brasil.

Ele viu que Salvador conteve a respiração por um momento. Fora um dos mais radicais na defesa do governo inepto de Serra em sua realidade, na época em que a incompetente ocupava a presidência e fora impedida após o devido processo no congresso, que sua facção chamava de “golpe”. Assis prosseguiu:

— O advogado Sandero Salvador desse Brasil paralelo já foi hostilizado diversas vezes por grupos radicais defensores de Serra e Hernandes, e esse mesmo grupo costuma aparecer nas sedes dos veículos de imprensa e mídia quando ele concede entrevistas. Desnecessário dizer que muitas destas foram vandalizadas por esses criminosos.

— Quem o senhor chama de “criminosos” eu chamo de defensores da democracia plena! – disparou Salvador. – É realmente reconfortante saber que em outros lugares se praticam ações libertadoras como as nossas!

Machado aguardou um momento, e como o senador não se desse conta do que acabara de dizer, disparou:

— Quer dizer então que agora o senhor não considera mais que tudo isto são “fábulas”, senador?

Por um instante houve um nítido princípio de pânico na expressão do político. Era comum que ele fosse apanhado em contradição por seus adversários políticos no congresso, ocasiões em que sempre se desenrolavam cenas que dificilmente se enquadrariam no afamado “decoro parlamentar”. “Está mais para decoro para lamentar”, riu-se Assis. Mas depois que surgiu a cumplicidade entre ele e os juízes da Suprema Corte, Salvador se sentia livre para agir conforme lhe aprouvesse, enquanto boa parte de seus adversários políticos haviam sido presos ou perderam o cargo, graças às ações de Nonato e seus asseclas.

O juiz, por sinal, ainda se mantinha calado. Examinando-o com mais atenção, Machado quase podia dizer que ele ficara abalado com as revelações sobre seu duplo.

— Nonato, que foi? Acorde, homem!

As palavras de Salvador tiveram um efeito imediato, e o juiz tornou a exibir a expressão arrogante e superior de quem realmente se acha um dos “editores da nação”. Respondeu:

— Uma preleção interessante, senhor Assis, mas que não prova nada...

— Como não prova? – interrompeu Salvador. – Acredito, meu caro juiz, que podemos deixar eufemismos e manobras de lado, e conversar com nosso estimado escritor livremente!

Os dois se encararam, e a um gesto de Barnabé quase todos os assistentes se retiraram. Ficaram somente dois, sendo um o técnico do equipamento multimídia, além dos quatro seguranças armados. O técnico desconectou o equipamento do laptop de Machado, que este não desligou, e acoplou o computador do senador ao sistema de projeção.

— Meu caro Machado, quando o nobre juiz Nonato me confirmou que o havia convocado a aqui comparecer, fiquei realmente radiante! – começou Sandero. – No fundo, sua defesa da liberdade de expressão e seu apoio incondicional a seus colegas autores me provoca profunda admiração!

O senador acionou um comando em seu laptop, e prosseguiu:

— Todos lamentamos a operação da Polícia Federal em São Paulo na noite passada, isso é evidente. Ninguém pode se mostrar feliz por isso.

— Naturalmente – respondeu o escritor. – E continuo a, também naturalmente, considerar de difícil compreensão como alguém pode falar em “defesa da democracia” e apreender livros, além de prender escritores e editores.

— Todos estamos de acordo que esta situação não pode continuar. – respondeu Barnabé. – Algumas reportagens até mesmo na imprensa internacional tratam nosso país nos piores termos possíveis, e francamente injustos.

— Claro que sim, afinal todo ditador e censor não gosta de ser tratado como é.

Maria lhe deu um soco no ombro, mas Machado não ligou. Os dois inquiridores fizeram como se não tivessem ouvido as palavras do autor, e o juiz prosseguiu:

— Tenho discutido com o honrado senador Salvador algumas ideias e possibilidades para tornar esta situação menos exasperante. E o senador elaborou algumas propostas que considerei muito interessantes.

— Propostas que, a partir de agora, meu caro Machado de Assis, irei apresentar ao senhor. Veja, o que gostaríamos de fazer é convidá-lo para ser a face pública, a face da sociedade neste processo de renovação cultural democrática! Com você, uma figura já tão conhecida, nos apoiando, temos certeza de que o processo irá transcorrer no melhor ambiente possível!

Salvador apertou uma tecla, e no telão surgiu a seguinte sigla:


Programa de Promoção Igualitária e Democrática Online (P.P.I.D.O.).


— O caríssimo escritor já deve ter ouvido falar da iniciativa dos nobres ministros presentes – começou Salvador. – O Programa de Promoção da Informação Confiável e Autêntica da Suprema Corte, para o qual foram convidados vários notáveis da comunicação, das artes e do jornalismo, está sendo implementado, e as personalidades chamadas se mostraram, todas, encantadas em participar dessa iniciativa democrática.

Machado teve que se esforçar muito para não gargalhar alto. A sigla P.P.I.C.A. já havia se tornado motivo de chacota e de inúmeros memes, especialmente quando se soube que um dos designados para participar desse autêntico Ministério da Verdade era o conhecido youtubber Gervásio Neto, famoso pelas polêmicas em seu apoio incondicional à Hernandes, Salvador, Nonato e seu bando, e pelo conteúdo com a profundidade de um pires que exibia em seu canal.

“Celebridades palpiteiras a quem será concedido o poder de permitir ou não que publiquemos o que escrevemos ou produzimos. Como pudemos descer tanto?”, perguntou-se mentalmente Assis pela enésima vez.

— O P.P.I.D.O. é uma proposta de ampliar a atuação do P.P.I.C.A. – disse Salvador. Assis olhou para o lado, e Maria estava sacudindo o corpo e se esforçando para não rir. Vergonha, como sempre, parecia ser algo desconhecido para Salvador e seu grupo. O senador prosseguiu: — Deverá ser estruturado como um ministério, e terá autonomia para analisar, estudar, verificar, fiscalizar, corrigir e, se for o caso, punir todo e qualquer abuso contra a democracia cometido no ambiente virtual, abrangendo sites, blogs e redes sociais.



“Se pareceu insano, é porque é”, pensou Machado. O autor tentou imaginar o tamanho da estrutura necessária que estivesse à altura daquele desafio totalitário, mas logo desistiu. O mais provável é que fiscalizassem somente os grandes portais e um e outro produtor de conteúdo, como já o faziam. Evidentemente tal estrutura deveria ter um orçamento astronômico, e ele fazia ideia de para onde iria tal quantidade de dinheiro.

— Uma das propostas do senador que considerei mais interessantes foi a utilização de drones – comentou Damásio.

— Sim. – acrescentou Nonato. – Fiquei bastante impressionado com essa ideia, senador, se o senhor puder destacá-la.

— Claro que sim, juiz.

A um comando surgiu a ficha completa, com imagens e projeções 3D, de um dos drones mais avançados do mercado. Machado o conhecia, pois havia estudado a respeito para seu conto da antologia Conspirações do Poder. Um sofisticado modelo de quatro rotores, o mais moderno do mercado, e o escritor destacou um pormenor nítido na ficha exibida:

— Caro senador, senhores juízes, conheço bem esse modelo, pois foi um dos elementos que estudei para minha história da trilogia que, pelo bem da democracia, os senhores apreenderam na noite passada. Se importa em detalhar mais, senador?

— Pois não. Tenho assessores altamente versados em informática, que me garantiram que, por meio de drones, a fiscalização de postagens em redes sociais e no ambiente online em geral, que possam ser atentatórias contra nossa democracia, seria muito mais efetiva e eficaz.



— É uma coincidência impressionante com o que escrevi em minha história, senador! Na qual, por sinal, tais aeronaves seriam dotadas de armamento e rastreariam inimigos do regime por meio de vigilância pelas redes sociais. O alvo, claro, seria eliminado. E percebo que, em suas projeções, são visíveis ainda as armas dos drones. Serão utilizados dessa forma, então?

Barnabé olhou para Machado, depois para Salvador, e então fez um gesto como se cortasse sua garganta com o dedo indicador esticado. O senador comentou:

— Infelizmente essas foram as únicas imagens que o fabricante pôde me enviar a tempo. Naturalmente não pretendemos, em princípio, utilizar tais equipamentos com armamentos. Não há necessidade disso, por enquanto.

O sorriso costumeiramente cínico de Sandero Salvador reluziu com ainda mais nitidez do que Assis gostaria de ter visto. Depois de alguns instantes ele prosseguiu:

— Mas é claro que fiscalizar somente não basta! Muito mais importante é fomentar a produção cultural em todas as mídias e formatos! – disse triunfante o senador. – É por isso que também irei apresentar mais esta proposta!

Outra sequência de letras luziu no telão:


BRcultural.


— A BRcultural se destina a ser uma agência de fomento e promoção de todas as formas de cultura! – disse Salvador em tom triunfante. – Queremos proporcionar oportunidades e os justos e democráticos espaços e divulgação para artistas de todas as tendências, por todo o território nacional.

Como uma propaganda política dos tempos dos marqueteiros regiamente pagos, surgiram imagens de músicos, escritores, cineastas, artesãos e todo tipo de artista criando suas obras, e vindas de todos os lados as letras que formavam o nome BRcultural em várias cores, onde o vermelho suplantava o verde e amarelo.

— Então, caro Machado, o que acha? – perguntou o senador.

O autor olhou para Maria, que se esforçava para manter uma expressão neutra. Depois para o político e os dois juízes, suspirou fundo e disse:

— Se não me lembrasse de seus ataques contra a realidade da Lista ainda há pouco, senador, me acusando de ter inventado tudo, diria que tirou a ideia dessa BRcultural de outra entidade a serviço da censura e opressão, uma praga que estranhamente assola muitas das paralelas semelhantes à nossa, a Culturalbrás.

Salvador, sem deixar em nenhum momento de exibir o mesmo sorriso, olhou para Nonato, depois para Damásio, e então encarou Machado dizendo:

— Está vendo, caro Assis? Seu desejo de implementar mudanças em nossa realidade divulgando informações a respeito de outras já está funcionando.

Assis começou a rir. Surpreendeu-se por não ser admoestado por nenhum dos presentes, e demorou até conseguir se controlar novamente.

— De novo, senador, continua a me espantar o gosto como cada membro de sua facção política aprecia brincar com a inteligência dos outros! Vocês se intitulam democratas e “progressistas”, pregam a inclusão e a diversidade, mas combatem com vigor de fanáticos quem pratica a diversidade mais importante e elementar de todas: a de expressão e opinião. Criminalizam, excluem e “cancelam” todos que se atrevem a discordar de vocês, e tiveram a audácia de tornar proscrito o próprio 1984 de George Orwell, do qual tiram todas as ideias que buscam aplicar na realidade. O que é o tal Programa de Promoção da Informação Confiável e Autêntica e sua risível sigla P.P.I.C.A., além do seu próprio Programa de Promoção Igualitária e Democrática Online (P.P.I.D.O.), se não o Ministério da Verdade conforme imaginado por Orwell?

Ninguém respondeu, e Machado acrescentou:

— E como pretendem financiar essas assim chamadas “iniciativas democráticas”?

— Fico satisfeito por perguntar isso – respondeu Sandero. – Estudei, juntamente com minha assessoria, variadas formas de obtenção de recursos. Uma delas seria um tributo sobre a posse de bens culturais.

A um comando surgiu uma coleção de fotos evidentemente obtidas em redes sociais mostrando vastas bibliotecas. Machado reconheceu várias delas como pertencentes a amigos, e até mesmo uma de suas estantes ocupava lugar de destaque.

— Tenho certeza – disse o senador, – que a autores consagrados como o senhor e muitos de seus colegas, que possuem vastas bibliotecas como fazem questão de exibir em seus perfis em redes sociais, interessa o surgimento de mais autores, para ampliar o mercado e proporcionar mais oportunidades inclusive aos senhores. Daí que uma de minhas ideias é a introdução do Imposto sobre Propriedade de Livros e Literatura.

— Um pequeno levantamento nos apontou que o senhor e seus colegas, além de boa parte dos leitores que os seguem online, possuem vastos depósitos de livros, revistas, manuais e afins – completou Nonato. — Naturalmente, pelo bem do fortalecimento e democratização da cultura, e o incentivo ao surgimento de um número cada vez maior de leitores, os senhores não se furtariam a um pequeno gesto de generosidade social com o pagamento deste tributo.

— Está claro que seria incrivelmente benéfico para a sociedade que os mais jovens pudessem ser assim incentivados, não concorda? — acrescentou Salvador.

O tamanho da monstruosidade fez com que Machado de Assis ficasse sem fôlego. Os organismos de censura e de promoção dos amigos do regime, sendo ainda responsáveis pela perseguição aos que não se enquadrassem, e certamente por sua eliminação assim que a tecnologia dos drones assassinos fosse dominada...

— Então, senhor Assis – disse Barnabé de Nonato. – O que pensa da proposta do senador? Acredito estarmos sendo perfeitamente razoáveis ao expor esses planos democráticos, de promoção da diversidade e inclusão, ao senhor. Reforço o convite para que se una a nós nesse esforço para proteger as bases de nossa sociedade.

Machado começou a rir. Ria alto, e sabia ser aquela a gargalhada mais livre e catártica que dava em muito tempo. Maria, a seu lado, permaneceu em silêncio. A advogada se lembrou de juristas e outras figuras importantes que haviam denunciado sem cessar os abusos cometidos por Nonato e seus comparsas, muitos dos quais foram presos sem mandado e seus casos acrescentados ao mesmo processo contra os que “ameaçavam a democracia” que seu cliente também respondia. Começou a ficar com medo de que sua vez de também ser encarcerada estivesse próxima.

O escritor finalmente conseguiu se controlar, e perguntou:

— Há vários escritores que já defendem as arbitrariedades que todos os senhores praticam, por que não convidar um deles?

— Se o senhor aceitar – disse Salvador, – o que espero que faça, terá incomparavelmente mais impacto que um já convertido à nossa causa.

— “Converter” foi o verbo que o senhor acabou se usar, senador – disse Assis em tom triunfante. – Um verbo mais próximo da religião que da política. O senhor mais uma vez confirma que sua facção é uma seita que se dedica a fanatizar os que caem em sua lorota do “progressismo” e da “justiça social”.

— Agora chega! – berrou o político. – Vai fazer o que mandamos, ou caso contrário...

Um funcionário da corte entrou correndo, sem bater, e disse:

— Senhores juízes, está acontecendo uma coisa!

A um sinal, o técnico multimídia conectou o equipamento a vários canais de TV. Uma algaravia de vozes jornalísticas assustadas descreviam o pandemônio que tomou todas as regiões do país. Protestos simultâneos eclodiram simultaneamente em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Brasília e muitos outros lugares.

Damásio foi até as amplas janelas do nonagésimo andar onde estavam e olhou para baixo.

— A praça está tomada! – disse com expressão de terror.




Os demais, abandonando qualquer protocolo, se aproximaram. Uma multidão incalculável tomava a Praça Democrática dos Três Poderes, como o governo de Kleyton Hernandes a havia renomeado, e se concentrava ao redor do edifício. Nonato, possesso, se dirigiu ao assessor que havia entrado:

— E nossa tropa especial? Para que temos atiradores de elite? Como permitiram que a desordem desses vândalos chegasse a esse ponto!

— Senhor... a multidão é enorme... há gente de todo tipo, homens, mulheres, idosos, até crianças!

— Não interessa! São fascistas! – berrou Sandero Salvador. – Mandem que atirem!

Notícias vindas dos andares inferiores davam conta que o prédio já havia sido invadido. As forças de segurança da corte tentavam conter os mais exaltados, mas a multidão era grande demais.

— Chame os outros juízes! – berrou Barnabé. – Temos que fazer um pronunciamento conjunto e restabelecer a ordem!

— De que nos adiantou tirarmos aquele fascista imundo da presidência, e colocar aquele banana do Pedron Ortega? – questionou Tenório Damásio. – Ele é um inútil, deveria ter dado ordens para os militares agirem!

Os juízes, o senador e seus assessores e seguranças deixaram o salão quase correndo, deixando Machado e Maria sozinhos como se houvessem perdido totalmente o interesse neles. O escritor sentou-se e calmamente fechou os arquivos do laptop e o desligou, guardando-o na pasta. Maria, espantada, disse:

— Você... você transmitiu tudo ao vivo!?

Assis deu de ombros, sorriu e respondeu:

— Ninguém me mandou desligá-lo, e portanto transmiti tudo para a Lista. Meus colegas repassaram a transmissão para o canal onde tenho compartilhado tudo livremente com nossos amigos deste universo. Pelo visto nem os grandes grupos de mídia aliados de Nonato e sua turma conseguiram resistir a esse furo!

As explosões e o tumulto se fizeram ouvir cada vez mais alto, e os dois se dirigiram para fora da sala. Voltaram ao apartamento onde o escritor fora instalado, em um andar bem mais baixo e onde o barulho do que já era um conflito aberto se tornou bem mais nítido.

Maria ligou a TV, que mostrava os juízes da Suprema Corte reunidos em seu salão principal, que ficava no centésimo e último andar da torre. Barnabé de Nonato falava em “união nacional”, “defesa da democracia” e “serenar os ânimos em um momento difícil”, a fim de “buscar o entendimento com todas as forças organizadas da sociedade”.

— Desta vez não vai colar – disse Machado. – “Nenhum ditador pode conter uma população aprisionada pela força para sempre. Não há poder maior no universo que o desejo por liberdade. Contra esse poder governos, tiranos e exércitos nada podem fazer”.

O escritor, depois de recitar a passagem dita por um de seus personagens preferidos, apanhou a pequena bagagem que trouxera e, junto com sua advogada e como ninguém os impedisse, tratou de fugir dali.


De: Machado de Assis

Para: A LISTA

Assunto: Re: “Defender a democracia” destruindo a democracia


Amigos dA Lista, cinco dias já se passaram desde que se iniciou uma espontânea revolta popular, com amplos exemplos de desobediência civil e até mesmo luta armada em várias cidades.

Devo confessar que por vezes me arrependo de minha decisão de divulgar a existência e as informações dA Lista para minha realidade. No momento estou escondido em casa de amigos aqui em Minas Gerais, e devo dizer que jamais pretendi que as coisas evoluíssem dessa maneira.

Assustam-me profundamente a violência e a grande perda de vidas.

O país está literalmente sem comando. Ninguém sabe do paradeiro dos juízes da Suprema Corte, que foram evacuados poucas horas após seu patético pronunciamento no início da revolta. Boa parte da classe política também está escondida.

Imaginar o medo que essa gente deve estar sentindo, ao se ver destituída dessa maneira do poder praticamente absoluto de que desfrutavam, quase me convence do acerto de minhas ações.

Não sei o que acontecerá. Há um movimento para trazer o presidente destituído por Nonato e sua trupe de volta, mas acredito que mesmo assim as turbulências ainda vão demorar muito tempo para amainar.

Nos desejem sorte.

A Lista retornará.


Havia muito que não retornávamos às origens dA Lista, dos tempos da saudosa revista Sci-Fi News e suas críticas sociais. Foi surpreendente como o Brasil mostrado nesta história se revelou nem tão distante assim de outro, nosso conhecido...

Brevemente deveremos ter ainda mais novidades, então fiquem atentos ao nosso grupo, que vem crescendo cada vez mais, o Clube Brasileiro de Ficção Científica.

As demais histórias e universos que habitam este modesto blog continuam aí para os caros leitores conhecerem, e naturalmente os convido a conhecer as demais histórias dA Lista, tanto utlizando as tags deste blog, quanto a publicada na Amazon, o e-book A LISTA: FENDA NA REALIDADE.



E virão mais novidades, muito mais!

Até a próxima!