quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

Fantomius o ladrão de casaca parte 4

É CULTURAMA!


Não poderíamos começar mais esta parte de nossa série sobre o Ladrão de Casaca sem antes comentar a melhor notícia do ano! Conforme revelado em primeira mão pelo site Planeta Gibi, a editora Culturama, fundada em 2003 em Caxias do Sul, é a nova casa dos quadrinhos Disney no Brasil!

A Culturama produz atualmente livros e revistas de atividades com personagens de várias empresas, como Disney, Marvel, Star Wars e da Mauricio de Sousa Produções. Á frente do projeto, também para alegria dos fãs da Disney, está Paulo Maffia, recentemente contratado pela editora.

Paulo Maffia postou em seu perfil no Facebook várias fotos com a equipe da Culturama visitando a Exposição de Quadrinhos do MIS (confira nossa cobertura no Corujice Literária), a CCXP 2018 e o escritório da Disney no Brasil. Isso encheu de esperanças os fãs dos personagens de Patópolis e Ratópolis (teremos finalmente a separação entre as cidades nas novas publicações?) que ainda debatiam qual casa editorial abrigaria a Disney, após as primeiras notícias do Planeta Gibi há poucas semanas.

O responsável pela divulgação foi o diretor da Culturama, Fabio Hoffmann, em entrevista à Tua Rádio, também de Caxias do Sul. A notícia aponta que serão relançados, a partir do primeiro trimestre de 2019, os gibis tradicionais da Disney no Brasil.

Aparentemente, isso significa que em breve teremos de volta Pato Donald, Tio Patinhas, Mickey, Pateta e Zé Carioca. Especulando um pouco, torcemos fortemente para que esse recomeço envolva também a publicação do Almanaque Disney e da Disney Big. Paulo Maffia, jornalista que fazia a pesquisa sobre as HQs a serem lançadas, é sem dúvida garantia de qualidade e de manutenção de nomes de personagens e outros elementos já clássicos dos quadrinhos Disney. Como também de retomada de publicações e séries que nós, do Escritor com “R” e Corujice Literária, muito amamos.


Histórias como a própria saga de Fantomius, da qual apresentamos a Parte 4 de nossa série de artigos abaixo; Superpato Nova Era, a nova fase das publicações de ficção científica do maior herói da Disney (E por que não retomar as publicações de As Novas Aventuras do Superpato? Sonhar não custa...); Donald Duplo, o alter-ego espião de Donald e que teve seu reboot em Crime Temporal, que mencionamos em Superpato e o Fluxo do Tempo; Os Mágicos de Mickey, série de fantasia que tivemos em Disney Jumbo e que continua a sair na Itália; e Donald Quest, história muito comentada desde sua publicação no exterior, que mistura elementos de fantasia com Steampunk.

Os fãs cobram ainda a retomada das publicações em capa dura, como a série dedicada a Carl Barks e a Biblioteca Don Rosa. De novo especulando, penso que em um primeiro momento somente os títulos tradicionais enumerados acima serão publicados, e quem sabe no segundo semestre de 2019 possamos ver algo mais elaborado. Os fãs comentam ainda a respeito das séries intermediárias, Lendas Disney, Disney Saga e O Melhor da Disney Brasil, que em minha opinião, devido ao preço bem mais em conta que os volumes de capa dura, provavelmente teriam precedência em uma futura retomada de publicações.


Estes são, pois, os fatos e algumas especulações a respeito da aguardada retomada das publicações Disney em nosso país. Uma notícia maravilhosa, belo presente de Natal aos fãs dos personagens Disney! A nosso amigo Paulo Maffia apresentamos os melhores parabéns e votos de muito sucesso nessa nova fase, pois os quadrinhos Disney não poderiam estar em melhores mãos!

Agora vamos à Parte 4 de Fantomius, o Ladrão de Casaca!

A máscara de Fu Man Atchú


Essa história saiu na Topolino 3072 de 8 de outubro de 2014, e aqui em Tio Patinhas 596 de fevereiro de 2015. Começa com John Quackett, Dolly Pata e Copérnico Pardal visitando a Grande Muralha da China, e talvez os construtores do monumento devessem ter pensado no perigo representado pelo desastrado pato! O objetivo do trio é o Museu de Pequim e a Máscara de Ouro de Gengis Kão, porém há outra parte interessada: a ladra Lady Mostarda, que leva as notícias sobre a presença de Fantomius ao senhor do crime local, Fu Man Atchú.

Quando Fantomius e Dolly Páprika invadem o museu à noite, Lady Mostarda os espera, e ficamos sabendo que ela foi parceira do anti-herói anos antes. E evidentemente a cena de ciúmes logo evolui para uma luta entre as duas, com Dolly levando a melhor. Mas o casal não tem tempo de comemorar, pois Copérnico é sequestrado. As instruções em um bilhete exigem que eles devem entregar a máscara a uma atriz na Ópera de Pequim.

Depois de uma aula sobre essa tradição no país John entrega a máscara para a atriz que é na verdade Jen Yu, nome verdadeiro de Lady Mostarda. Eles a seguem após trocar de roupas (e Dolly é sedutora como sempre nessa cena) graças a uma invenção de Copérnico.

O covil de Fu Man Atchú fica nos subterrâneos da Cidade Proibida em Pequim, mas nossos heróis são capturados e confrontam o vilão. O chinês tem um plano megalomaníaco e precisa da máscara de Gengis Kão para realizá-lo, mas nossos heróis escapam de suas armadilhas e libertam Copérnico. Acontece mais um confronto entre Dolly e Mostarda, mas nossa heroína triunfa novamente. De volta à Vila Rosa, eles ficam preparados para um possível confronto no futuro, pois Jen Yu conhece suas identidades.

A trama é evidentemente inspirada no filme A Máscara de Fu Manchu, de 1932, no qual um pesquisador inglês deve encontrar a tumba de Genghis Khan e suas poderosas relíquias, para impedir que o maléfico Dr. Fu Manchu as encontre e utilize para escravizar o mundo. Pelas grandes diferenças de enredo A Máscara de Fu Man Atchú não pode ser classificada como uma paródia, mas revela importantes informações sobre o passado do Ladrão de Casaca. Vale ainda mencionar que Tio Patinhas 596, onde foi publicada a história, traz ainda a Parte 1 do Guia de Patópolis, e o grande destaque é a casa do Donald, incluindo o esconderijo do Superpato!-

O Butim dos Barkservilles



No Brasil foi publicada em Tio Patinhas 597 de março de 2015, depois que na Itália saiu na Topolino 3073 de 15 de outubro de 2014. A aventura começa com uma viagem de trem pelo interior da Inglaterra, e adivinhem quem acionou o freio de emergência da composição, pensando que o mecanismo serviria para chamar o camareiro? John e Dolly viajam em companhia de Sir Henry Barkserville e do Dr. Patson, assistente de certo famoso detetive, que por algum motivo perderam as passagens.

Motivo esse mais conhecido como Dolly Páprika, claro.

John acerta as coisas com eles, pois é amigo do primo de Henry, Carl. Nisso comentam a respeito da maldição de Barkserville Hall e do misterioso mastim que assombra o local.

Evidentemente já encontramos várias referências. Barkserville vem de Carl Barks, o “homem dos patos” e um dos maiores, se não o maior, artista Disney. E a trama é evidentemente inspirada em uma obra de Arthur Conan Doyle de que falaremos depois.

O casal de patos são convidados a se hospedar na propriedade, e John, acompanhado de Henry e Patson, conhece primeiro um estranho fazendeiro que os alerta quanto ao mastim fantasma, e depois um naturalista e dono de uma propriedade vizinha chamado Topleton. Naquela noite, Fantomius e Dolly vasculham a mansão sem encontrar nada, mas observam o mordomo, Quackmore, sair furtivamente. O mordomo é então visto auxiliando seu irmão, que veste roupas de presidiário, mas nesse momento os patos mascarados são surpreendidos pelo famoso detetive Patock Holmes!


Nisso, o fugitivo grita, dizendo que viu o misterioso mastim, e Dolly e Fantomius aproveitam para escapar. O ego de Holmes o impede de, no café na manhã seguinte, comentar a respeito do casal, mesmo que John continue provocando o detetive.

Noite seguinte, e enquanto as suspeitas de Holmes contra o fazendeiro desmoronam, Fantomius e Dolly encontram o mapa junto a uma informação sobre a verdade a respeito de Topleton. Descobre-se então o que é de fato o Mastim, e o larápio é apagado por Dolly com o gás do sono, e nossos patos ficam com o tesouro. Patock Holmes finalmente aponta Topleton como culpado, mas não revela a presença de nossos heróis, motivando um agradecimento de Fantomius com um de seus cartões de visita. Mas o detetive tem suas suspeitas quanto a identidade do Ladrão de Casaca!

A trama, claro, foi inspirada no romance O Cão dos Baskervilles de Arthur Conan Doyle, que foi inclusive adaptado para a televisão pela BBC na série Sherlock, com Benedict Cumberbatch e Martin Freeman. Como na história anterior de Marco Gervasio, não se trata de uma autêntica paródia, mas é divertido esse confronto entre Fantomius e Patock Holmes. O detetive ainda retornaria em outra história posterior, da qual evidentemente falaremos nesta série e que novamente é recheada de referências.

A série Guia de Patópolis prossegue em Tio Patinhas 597, onde O Butim dos Barkservilles foi publicada, sendo o grande destaque a Residência Von Pato, lar do Professor Ludovico, com sua enorme biblioteca e seu telhado na forma de um livro aberto!

O tesouro do Doge


Depois de publicada em Topolino 3075, de 5 de novembro de 2014, nós a tivemos em Tio Patinhas 606 de dezembro de 2015. A romântica Veneza é o palco desta aventura, que já começa com John Quackett fazendo das suas em um cassino. Adelaide e Alcmeone Pinko também estão lá, pois ela foi convidada pelo tio, Duque Grimani para passar o carnaval. No evento será exibida a coroa de ouro de Marino Grimani, um dos doges, ou líderes, de Veneza. Que, claro, é o objetivo de nossos ladrões preferidos, pois pode indicar a localização de um tesouro ainda maior.

A uma observação de John de que adora máscaras, somos transportados a Londres, em 1895, na Mansão Quackett. O jovem John discute com o pai, o Duque Andrew Quackett (informação dada em Superpato - O Legado e mencionada na Parte 2 desta série), pois este não tolera que o filho leia as aventuras de Patin Hood. O pequeno John, então com 10 anos, odeia as frequentes festas a fantasia para as quais sua família é convidada, e diz que quando crescer nunca usará uma máscara!

Essa página é toda em preto e branco, e a afirmação do patinho realmente surpreende! O que teria mudado em sua vida para que ele se tornasse Fantomius? Ah, aguardem a próxima parte desta série de artigos, há ainda mais referências vindo aí, e prometo que valerá a pena! E falando em referências, Patin Hood vem do original italiano La leggenda di Paperin Hood, história de Romano Scarpa publicada em Topolino 228 e 229 de 1960.

Durante o baile na residência Grimani Dolly e Fantomius concretizam seu plano e roubam a coroa ou chifre de ouro, mas alguns personagens misteriosos, usando máscaras brancas e “bicudas” e que apareceram já na primeira página da aventura, a tudo acompanham. Pinkoa descobre a presença de Fantomius e persegue o Ladrão de Casaca, mas este e Dolly escapam em uma sofisticada gôndola construída por Copérnico. Esse veículo é bem semelhante ao utilizado por James Bond no filme Moonracker. Os patos escapam em meio à impressionante arquitetura de Veneza, detalhadamente reproduzida por Marco Gervasio. Há muitas frases e traduções no dialeto veneziano, o que contribui para dar ainda mais sabor à trama.


Nossos heróis seguem as pistas e Fantomius finalmente encontra o tesouro do doge sob a Ponte dos Suspiros. Porém ao retornar para o barco é surpreendido pelos misteriosos personagens de máscaras brancas, que se apresentam como os guardiões de Veneza. Eles conseguiram até mesmo capturar Dolly na festa, substituindo-a por uma cúmplice, e obrigam nosso herói a entregar-lhes o tesouro.

Mas o Ladrão de Casaca é muito mais inteligente do que suas ações fazem supor. Ele percebeu que era seguido, e que não era sua Dolly quem o acompanhava, e armou uma farsa para ludibriá-los. E quando John diz a Dolly que a pata que ama é única, eles trocam um apaixonado beijo sob a Ponte dos Suspiros. Ela ainda comenta que os namorados que se beijam naquele local se amarão para sempre.


Resta o mistério de quem poderia saber a respeito do plano, e de suas identidades secretas. Na reunião dos guardiões de Veneza, descoberto o logro de Fantomius, o líder do grupo retira seu capuz, e vemos alguém muito parecido com Copérnico Pardal. E a história termina com mais um mistério, pois no quadrinho final vemos alguém na amurada de um barco chegando a Patópolis, dizendo “... Há quanto tempo!”. Mais um personagem misterioso, mas neste caso, talvez a bengala pendurada possa dar uma pista, ou não?


Mais três histórias empolgantes de Fantomius, o Ladrão de Casaca, mostrando sempre uma evolução nas tramas do grande quadrinista italiano Marco Gervasio! Sua caracterização da época, seja nos cenários, arquitetura, figurinos e figuras reais ou da ficção é perfeita, e as histórias são sempre empolgantes.

O Escritor com “R” fará agora um pequeno recesso, mas voltaremos no próximo dia 7 de janeiro. E no dia 9 de janeiro, mais um artigo inédito na série de Fantomius, o ladrão de casaca. Aproveitem até lá para reler os textos anteriores, na parte 1, parte 2 e parte 3.

Tenham todos um Feliz Natal e um excelente 2019!

Até a próxima!

segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Vó Nena e os Caçadores: Noite Feliz

Dia 26 de dezembro, plena segunda-feira e o retorno das atividades em um dos mais frequentados shoppings de São Paulo. Eram quase dez da manhã quando o vigia, ainda bocejando de sono, finalmente chegou à sala onde era feito o monitoramento das muitas câmeras de segurança do estabelecimento.

Estranhou encontrar a porta trancada, ainda mais porque ouviu barulho lá dentro. Chamou então o companheiro:

- Ô, Mané, é você? Abre a porta, caramba!

Os ruídos cessaram, e alguns instantes de silêncio se seguiram antes que a porta fosse aberta.

- Joca, entra rápido!

Depois que o colega entrou, incomodado com a expressão de medo dele, Mané voltou a trancar a porta. Rapidamente sentou-se diante de um dos computadores e se pôs a selecionar alguns arquivos. Enquanto isso Joca olhou ao redor, e descobriu o que estava fazendo aquele barulho.

Em uma mesa próxima havia dois pedaços de madeira sólida, um pesado martelo e pedaços de CDs estilhaçados. Joca se virou para Mané e perguntou:

- Tá doido? E se o gerente de segurança pega você destruindo as mídias? E ainda tá mexendo nos arquivos, para quê?

Mané continuou selecionando os arquivos, e depois transferiu todos para uma pasta. Já ia apertar o botão para deletar tudo quando olhou para Joca. Parou um instante, baixou a cabeça, voltou a olhar o colega e finalmente disse:

- Se você tivesse visto o que eu vi no dia 24, também faria a mesma coisa.

Diante do olhar de dúvida de Joca, Mané começou a contar a história.

Dois dias antes...

O shopping estava absolutamente abarrotado de gente na véspera de Natal, e Vó Nena teve que apelar:

- Ô cão dos infernos, vê se arruma uma vaga prá gente, P.!

Ela bateu no volante do Fusca azul, que acelerou pelos estreitos corredores. Uma mulher estava estacionando um utilitário esportivo em uma vaga para idosos, e chegando perto os faróis e os instrumentos do painel do Fusca se acenderam com um brilho vermelho. A mulher voltou-se para o carro antigo com olhar vidrado, deu ré quase batendo em outro carro que passava, e saiu rápido pelo corredor. Mais buzinas foram ouvidas adiante enquanto Nena rapidamente estacionava o Fusca.

- Detesto vir para esta M. de cidade, ainda mais nesta época! – disse a anciã. Os irmãos Samuel e Daniel e a namorada deste último, Tatiana, também desceram. Nena se virou para o Fusca e resmungou:

- E você, vê se fica de olho e pode arrebentar a coisa nojenta se ela aparecer por aqui.

Nena saiu andando apoiada em sua bengala feita de pau-brasil, e os jovens a seguiram. Ela continuava resmungando:

- Aquela filha da P. da Natália Neiva tinha que voltar a produzir essa P. dessa boneca, a vaca!

- Não deve ser culpa dela por aquilo que aconteceu nos anos 80, Vó - comentou Daniel.

- Não é culpa dela o C., moleque! Como acha que uma M. de um programa como o daquela loira aguada pôde ter feito tanto sucesso?

- A senhora acha que ela fez um pacto? – perguntou Tatiana, a vidente da equipe e que estava atenta a tudo.

- Se não foi ela, filha, foi algum filho da P. que trabalhava com ela. Só sei que deu um trabalho do C. caçar a maldita boneca possuída, teve até morte no meio, mas na época não era como hoje, com a internet onde as notícias correm num instante.

- E virou lenda urbana.

- Isso, filha. Pior que nunca conseguimos exorcizar direito a coisa, a P. da boneca se perdeu num incêndio, mas não sabemos se foi destruída ou não. Procuramos mas não encontramos nada.

- Mas mesmo com internet, Vó, muita coisa acaba sendo acobertada – comentou Samuel. – O funcionário que foi encontrado morto, por exemplo, dizem que ele escorregou, caiu de uma escada e bateu a cabeça.

O elevador não demorou muito, e com certo aperto diante da quantidade de pessoas dentro eles se acomodaram. Nena deu uma cutucada em Tatiana, que apanhou o celular, abriu a galeria e mostrou uma foto para os meninos:

- É estranho que uma queda de escada deixe alguém com a cabeça totalmente virada para trás desse jeito – completou a garota.

Algumas pessoas próximas os olharam com cara de espanto, e pareceram muito aliviadas quando puderam sair do elevador.

Dois funcionários de uma loja estavam em um dos armazéns do shopping arrumando caixas de brinquedos em dois carrinhos. O gerente já havia ligado para o celular de um deles para que retornassem o quanto antes.

- E aí, o que acha que aconteceu com o Zé?

- Sei lá, só soube do que comentaram, que deu um grito bem aqui no depósito, e a próxima coisa que viram foi ele caído, com a cabeça virada prá trás.

- Também ouvi essa. E disseram ainda que estava com cara de quem tinha visto o próprio capeta!

- Virgem santa, nem fale isso!

- Pois é... até a direção do shopping veio falar com a gente, dizendo prá não comentar. Essa crise da P. também, imagina se a notícia se espalha e todo mundo fica com medo de vir aqui.

- O que será que foi, hein?

- Deixa prá lá, vamos sair logo daqui que esse lugar me dá arrepio.

Sem que eles percebessem, uma pequena figura rastejou até próximo de um dos carrinhos. A lateral deste era em forma de grade, e nas grandes caixas de papelão visíveis era possível ler “Boneca da Natália Neiva”.

A figura ergueu o braço, encostou a mão de plástico em uma das caixas e amoleceu. O que parecia uma nuvem negra fluiu de seu corpo velho, queimado e com roupas rasgadas e esgarçadas pelo tempo, e penetrou na caixa. A coisa maléfica ainda teve mais um pensamento, e pequenas porções da nuvem negra flutuaram em direção a outras caixas.

Os dois funcionários terminaram de organizar os produtos e saíram empurrando os carrinhos. Ainda era de manhã, e teriam um longo dia pela frente.

A turma tinha dificuldades em andar pelos corredores lotados.


- Bando de filhos da P. sem educação! – reclamou Vó Nena. – No meu tempo o Natal era época de dar graças a Deus por estar com a família, não essa P. desse consumismo de M.

- A senhora parece a Dercy em seus últimos anos, Vó – riu-se Samuel.

A anciã deu risada, e completou depois de se desviar de um casal cheio de sacolas que parecia querer passar através deles:

- Pois a Dercy era uma grande amiga, meu neto! Sinto saudades dela, que Deus a tenha!

- Como a senhora conheceu a Dercy? – perguntou Tatiana.

- Filha, ela veio me procurar em um momento de necessidade, sempre foi uma baita atriz, mulher independente que não levava desaforo prá casa. Acredita que até magia negra fizeram contra ela? Mas eu dei um jeito nos filhos da P., e desde então ficamos amigas, sempre que estava na região vinha me visitar.

- Então foi ela que pegou os palavrões da senhora, né, Vó? – perguntou Daniel.

Nena ia responder, mas uma “patricinha” cheia de sacolas esbarrou com força nela, quase resultando em uma queda.

- Vá para a P. que pariu, sirigaita do C.! – gritou Vó Nena. – Olha por onde anda, biscate!

A moça olhou a anciã de cima a baixo e, sem largar o celular e deixar de equilibrar as muitas sacolas de roupas de grife, disse:

- Ah, não, querida, é esse povo estressado e deselegante que eles deixam frequentar o shopping. Mas você dizia...?

Vó Nena lançou um olhar ameaçador contra a mulher, e ela e os demais voltaram a caminhar em meio à multidão. Ela disse:

- Espírito de Natal é o C. Povinho besta que nem sabe o perigo que está correndo, com uma cria dos infernos à solta por aqui.

- A Dercy teve mesmo a quem puxar – brincou Samuel.

Vó Nena lhe acertou um cascudo bem no cocuruto, e o mais jovem da turma, que também era o mais alto, voltou a se perguntar como a avó, que mal chegava a 1,60 m, conseguia fazer aquilo. 

Vó Nena e os jovens encontraram o corredor onde ficava a entrada do depósito onde o funcionário havia morrido, e que era compartilhado entre várias lojas, inclusive todos os estabelecimentos que vendiam brinquedos do lugar. Contudo, a entrada era proibida a quem não fosse funcionário, e a anciã tomou rapidamente uma decisão:

- Daniel e Tatiana vão lá e tentem encontrar mais alguma pista. Eu e Samuel vamos até a loja de brinquedos mais próxima, depois veremos.

- Nós ligamos se encontrarmos algo, Vó – disse Tatiana.

Ela e Daniel seguiram pelo corredor, abriram a porta e deram com um homem de terno com crachá da segurança.

- Tão querendo o quê aqui? – perguntou o homem. – Só para funcionários.
Daniel estendeu um pedaço de papel e disse:

- Aqui está nossa identificação. Estamos no nosso primeiro dia como temporários e nem conseguiram nos fazer as camisas da loja, amizade, sabe como é a crise...

O homem olhou o pedaço de papel, depois lhes deu passagem. Daniel guardou a folha no bolso e disse:

- Papel da caderneta do Vargas, nunca falha.

- Mas sempre está impregnado com energias negativas, amor, não é bom usar sempre.

- E eu não sei? A Vó vive repetindo prá gente.

Eles chegaram ao depósito e se puseram a procurar nos corredores entre as pilhas de caixas de variados tamanhos, contendo inúmeros produtos, ordenadas conforme o tipo destes. Desviaram aqui e ali de carrinhos levados por funcionários de lojas que corriam para reabastecer os estoques, e finalmente encontraram o setor de brinquedos.

Vasculharam as caixas, e encontraram várias que continham exemplares da boneca de Neiva. Tatiana aproximou a mão de uma das superfícies de papelão, fechou os olhos e se arrepiou. Esforçou-se, contudo, para manter a concentração, e disse:

- Esteve aqui, Daniel. Sinto...

A vidente não aguentou mais. Recolheu a mão e abraçou-se, parecendo sentir frio. O rapaz a abraçou e disse:

- Tudo bem, meu amor. O que mais viu?

Tatiana abriu os olhos, parecendo procurar alguma coisa. Depois de virar o corpo apontou e disse:

- Por ali.

Seguiram por outro corredor, e logo ouviram vozes cochichando. Dobraram uma esquina de mais caixas de papelão, e deram com dois funcionários conversando sobre alguma coisa que um deles segurava:

- Por que não quer me dar isso?

- Eu achei, é meu!

O que teve seu pedido negado olhou fixamente para o outro, e finalmente avançou sobre ele. Os dois homens rolaram no chão, até que o objeto em disputa escapou e ficou em um canto.

- É ela!

Tatiana deu o grito ao reconhecer a boneca maldita que Vó Nena perseguira por anos. Daniel esforçou-se para separar os dois rapazes, enquanto a moça estendia a mão e apanhava o brinquedo rasgado, sujo e despedaçado.

Daniel não teve muito trabalho. Assim que se viram separados da boneca, os dois rapazes voltaram ao normal, coçando a cabeça e perguntando o que havia acontecido. Entretanto, o mesmo não poderia ser dito sobre Tatiana, que com uma voz cavernosa disse:

- Vão morrer, Caçadores, vão morrer gritando!

O rapaz virou-se, e viu a namorada se contorcendo enquanto segurava a boneca. Daniel poderia jurar que viu um brilho vermelho nos olhos de Tatiana, mas no instante seguinte a vidente pareceu se recuperar e voltou a si, jogando a boneca no chão.

Os dois funcionários a tudo assistiam e se apavoraram quando a boneca, caída no chão de bruços, ergueu o busto nos braços e virou a cabeça, olhando diretamente para eles. Saíram correndo o mais depressa que podiam.

Daniel os ignorou e aproximou-se de Tatiana. Ela beijou o namorado e disse:

- Não é a coisa. Tinha somente uma parte muito pequena de sua essência.

A boneca continuava olhando para eles. Tatiana remexeu na bolsa, abriu um pequeno pacote e pegou uma pitada de pó branco com os dedos. Jogou o sal sobre a boneca, que caiu imóvel no mesmo instante. A vidente a apanhou e disse:

- Pronto, esta aqui não tem mais nada.

Estendeu-a para Daniel, que a guardou na mochila. A seguir fizeram uma vistoria no local, mas Tatiana não sentiu mais qualquer outra presença maléfica.

- Vamos avisar a Vó – disse. Daniel a levou pela mão enquanto ela chamava a anciã pelo celular.

Os funcionários ergueram uma pequena torre composta de dezenas de caixas da boneca de Natália Neiva. Era um dos brinquedos mais procurados daquele Natal, e precisavam repor as unidades que eram removidas da pilha com rapidez.

A boneca possuída pela coisa foi colocada na segunda fileira a contar do alto. Ela conseguia enxergar quase toda a loja de sua posição. Inebriou-se diante das inúmeras possibilidades ali, bem a seu alcance. Quanta inocência, quantos sonhos de esperanças, quantas almas jovens prontas para serem consumidas.



A coisa lançou sua visão cobiçosa sobre as várias famílias ali presentes, sentindo que seu momento estava chegando.

Vó Nena e Samuel entraram na loja a muito custo, abrindo caminho entre a multidão que tentava escolher o melhor brinquedo. Um funcionário solícito veio atender a anciã.

- A senhora procura algo em especial para seu neto?

- Sim, procuro sim. Procuro uma P. de uma boneca possuída que precisamos destruir antes que mate mais alguém nesta pocilga!

Vó Nena ignorou o olhar de espanto do rapaz, e seguida por Samuel conseguiu chegar ao setor de bonecas. Encontraram o lugar onde exemplares da boneca de Neiva eram disputados, e a anciã tentou com seu pêndulo determinar se alguma delas era a que fora tomada pela entidade negra.

Duas meninas passaram correndo, esbarrando em Vó Nena e no pêndulo.

- Mas que M. de pais que não tomam conta de suas crias! C., estamos tentando salvar a vida de vocês aqui, P.!

Samuel apanhou o pêndulo e o manteve no alto, distante das crianças que faziam uma autêntica arruaça. De repente o objeto místico apontou para a direção de uma funcionária da loja.

Eles abriram caminho entre a multidão e, ao chegarem ao lado da moça, a ouviram dizer:

- Muito bem, quem abriu esta caixa?

A moça agitava a caixa vazia na mão. Vó Nena a apanhou e examinou. O pêndulo que Samuel segurava apontou para a caixa girando, o que era um mau sinal.

- Está aqui, meu neto – disse a anciã.

- O que está aqui, minha senhora? – perguntou a moça.

- Uma coisa que pode matar todo mundo nesta P. de loja num instante, minha filha. Se quiser evitar isso peça para todo mundo sair.

- A senhora está doida, eu vou...

- Tá, fica lá no seu canto que a gente se vira – disse a anciã passando a ignorar a funcionária.

Nena seguiu Samuel, que tentava abrir caminho entre o mar de gente.

A coisa não tinha pensamentos, somente instinto. Foi se arrastando enquanto se ocultava pelos cantos, alheia à atenção da multidão que lotava a loja.

Algumas crianças pequenas subitamente cruzaram seu caminho, e acharam graça naquela boneca que andava sozinha. Uma menina estendeu as mãos para apanhá-la, mas a coisa escapuliu passando por baixo de uma das estantes.

- Papai, quero aquela que anda!

A conversa chamou a atenção dos dois Caçadores, que se aproximaram. O pai mostrou uma caixa com a boneca de Neiva, dizendo:

- Esta aqui, não é filhinha, como combinamos.

- Não! Quero aquela que passou andando prá lá – e a garota apontou.

Vó Nena e Samuel se apressaram a seguir a direção apontada pela menina.

O rapazinho não devia ter cinco anos, e brincava com um pequeno grupo de outros de sua idade. Em meio à bagunça, ninguém percebeu a boneca que se aproximava lentamente, com um cordão de luzes natalinas nas mãos.

A sombra que habitava a boneca, uma minúscula porção da monstruosidade original, não pensava nem agia conscientemente de qualquer forma. Mas tinha um forte e maléfico instinto, que lhe apontava a urgente necessidade de tomar uma vida inocente.

Estava a ponto de erguer o cordão, passá-lo pelo pescoço do garotinho e tomar sua vida, o que lhe garantiria plena existência, quando um forte golpe a lançou longe. Mais um chute e ela estava num canto isolado, e a última coisa que sentiu foi o frio do metal em suas entranhas.

Vó Nena agira bem rápido. Atingiu a coisa com a bengala de pau-brasil lançando-a para o lado. Samuel a chutou para um canto isolado ao mesmo tempo em que desembainhava o punhal cerimonial que havia pertencido a um dos maçons que fizera parte da Inconfidência Mineira.

Enterrou a faca mágica na boneca, e conseguiu até mesmo observar a essência negra sair do brinquedo e se desvanecer.

Samuel chutou a boneca destruída para baixo de uma das prateleiras, dizendo de si para si:

- Eu que não vou pagar por essa P. Bem, vamos dar as boas novas para Vó Nena.

Encontrou a anciã ainda com o grupo de meninos. Depois de recomendar que fossem bonzinhos e obedecessem aos pais ela acompanhou Samuel para a saída.

- Matei a coisa com o punhal, Vó, até vi a essência desaparecer.

- Nós que combatemos as trevas adquirimos essa visão mais apurada, meu neto.

- Mas e a senhora ali, de papo com os pirralhos?

Vó Nena sorriu e disse:

- Essa é uma época boa, os pequenos fazendo suas primeiras descobertas. Depois viram umas pestes que precisam ter rédea curta.

Nena deu um cutucão em Samuel com o cotovelo, e completou:

- Mas depois que crescem não param de nos dar orgulho!

Samuel atendeu sorrindo o celular que tocava, conversou rapidamente com Tatiana, guardou o aparelho e disse:

- Eles encontraram a boneca original e Tatiana acabou com o que de ruim ainda havia nela. Estão indo para a segunda loja.

- Vamos lá com eles, Samuel – disse Vó Nena decidida. – Essa coisa é pior do que eu pensava, e temos que ficar juntos. Vamos acabar com esse filho da P. de uma vez por todas!

Tatiana e Daniel entraram a muito custo na segunda loja. Era a menor das três que havia no shopping, mas igualmente lotada. Com esforço abriram caminho entre pais e mães estressados e crianças birrentas até a seção de bonecas.

Eles passaram pelo corredor onde meninas se digladiavam por um exemplar da boneca de Natália Neiva, e Daniel cochichou ao ouvido da namorada:

- Sente alguma coisa?

Tatiana fechou os olhos e tentou se concentrar em meio à bagunça. Levou alguns encontrões das crianças que caçavam seu presente de Natal, mas não conseguiu sentir nada ali. Abriu os olhos e fez que não para o namorado.

- E se formos ver na fila do caixa? – perguntou ela.

Gastaram mais algum tempo abrindo caminho e chegaram à fila, onde a balbúrdia era a mesma. Pediram licença enquanto discretamente Tatiana tentava captar algum sinal da presença maligna.

Um pai bufava de impaciência enquanto consultava o relógio, segurando a filha pela mão. A menina trazia embaixo do braço a caixa com a boneca, e Tatiana a princípio achou graça.

Contudo, algo em sua mente deu um sinal de alerta. E este chegou no exato momento em que os olhos da boneca faiscaram em uma sinistra tonalidade vermelha.

Tatiana agarrou o braço de Daniel, e os dois olharam fixamente para a boneca. A coisa virou a cabeça para eles, e o pandemônio teve início.

Com os braços a boneca forçou a caixa, e a menina ficou sem entender nada quando sentiu o movimento. Olhou perplexa a boneca virar a cabeça para ela e exibir os olhos vermelhos. O pai ainda comentou:

- O que é agora, já não conseguiu a droga da boneca...

Sua fala foi interrompida quando a coisa pulou direto em seu rosto. A boneca agarrou a gravata do homem e a apertou, tentando estrangulá-lo. As pessoas ao redor sequer se moveram, olhando espantadas para algo que não compreendiam.

- Saiam da frente!

Daniel berrou e se lançou sobre o homem. Agarrou a boneca, que continuava enforcando o sujeito. As pessoas próximas começaram a gritar, enquanto os funcionários dos caixas observavam a cena apáticos e sem nada entender.

Daniel finalmente livrou o homem, que caiu de joelhos respirando fortemente depois de quase sufocar. A coisa saiu correndo, e Tatiana a seguiu tentando se desvencilhar das pessoas do caminho. As pessoas se dirigiam para o local dos caixas tentando saber o que era aquela confusão, o que somente dificultava o trabalho.

Daniel abriu caminho com alguns empurrões e seguiu Tatiana. A vidente tinha uma boa dianteira, mas a fuga era evidentemente mais fácil para a boneca. Ela temeu que a coisa conseguisse sair ou pior, atacasse uma criança.

A coisa seguiu desviando-se dos montes de pernas à sua frente, passando sob expositores, e somente algumas crianças se deram conta daquela boneca andando sozinha. Seu instinto lhe dizia para continuar correndo, e estava quase alcançando a saída, quando foi atingida por algo duro.

A boneca bateu de encontro a uma parede livre, e a bengala de pau brasil de Vó Nena foi espetada em seu peito. A coisa ainda esperneou e lutou, mas se desvaneceu diante da forte reza da anciã, que havia chegado naquele momento junto com Samuel.

Tatiana ainda sentiu os últimos estertores da sombra maléfica antes que se descompusesse. Daniel chegou em seguida.

- Já resolveram? – perguntou.

- Sim, amor, era só uma sombra de novo – respondeu Tatiana.

As pessoas os olhavam com espanto, e dois seguranças desviavam apressadamente das pessoas no corredor do shopping para entrarem na loja. Funcionários se aproximavam do outro lado, e Vó Nena disse:

- O filho da P. deve estar na terceira loja.

- É no piso acima, gente, vamos lá – comentou Samuel.

Quando os seguranças conseguiram entrar na loja não encontraram nada de anormal. Ao mesmo tempo o homem atacado, massageando o pescoço e sem entendernada, saiu resmungando e levando a filha pela mão.

A menina chorava, pois ficara sem sua boneca.

Sua satisfação chegou a um grau como não sentia há muito tempo. Nos braços de sua nova possuidora, mesmo através daquele invólucro sentiu a inocência e a esperanças da jovem alma. A alegria contagiante, o frescor de quem está descobrindo o mundo, tudo aquilo emanava energias das quais a coisa agora poderia se alimentar por anos a fio.

O jovem casal tinha, além de sua nova dona, uma criança menor que estava nos braços da mãe. Estava tudo perfeito, pensou. Tantos sonhos, tantas almas que poderia sugar para se fortalecer e voltar a ser grande...

Não gostava de ser balançada e virada de lá para cá, nem de saltitar ou ouvir o barulho de dedos tamborilando na caixa. Porém a longa espera estava chegando ao fim, e em breve teria uma alma cheia de energia que sempre estaria perto, somente para seu desfrute e deleite.

- Essa coisa que caçamos, meus filhos, é um parasita – disse Vó Nena com voz cansada. – Suga as energias de quem estiver perto.

- E consegue separar partes de sua essência, como as que encontramos – completou Tatiana. – Essas partes não têm consciência, mas podem adquiri-la sugando as energias de uma alma. Por isso tentaram matar o menino salvo pela Vó e aquele homem na fila.

- Mas num ambiente mais calmo a coisa pode ir sugando aos poucos, crescendo e ficando mais forte, e criando consciência – disse Vó Nena. – Por isso é importante benzer ou exorcizar essa P. toda.

Nena e os jovens chegaram finalmente à terceira loja, precisando passar através de um numeroso grupo que deixava o estabelecimento. Tatiana se atrasou ao parar em meio às pessoas, de olhos fechados e cabeça baixa. Daniel percebeu e voltou para perto dela, perguntando:

- Amor, tudo bem?

Tatiana abriu os olhos e encarou o namorado, murmurando:

- Não sei... algo... melhor entrarmos, vamos!

A coisa sentiu a presença ignóbil da mesma mulher que a havia caçado tanto tempo atrás, e pela primeira vez sentiu preocupação. Por muito pouco escapara daquela vez.

E havia algo mais, aquela outra... sentiu que representaria uma ameaça ainda maior. Mas quando as duas presenças se afastaram tranquilizou-se. Sua nova dona a apertava contra o peito, e as batidas daquele jovem e inocente coração prenunciavam ao menos anos em que o ser abjeto poderia se alimentar.

Nena e os garotos entraram finalmente na loja, e correram para a torre construída com as caixas das bonecas de Natália Neiva. Exemplares eram removidos a todo instante, e os funcionários se apressavam para repor as unidades. Os Caçadores rodearam o lugar várias vezes, sem obter qualquer resultado.

Tatiana parou depois de dar somente uma volta ao redor da torre de bonecas. Colocou as mãos na cabeça, fechou os olhos e se concentrou. Vibrações terríveis invadiram sua mente, a pura maldade que estivera ali presente finalmente surgindo nítida nas lembranças etéreas que conseguia acessar.

- Você tá bem, moça? – chegou a perguntar uma funcionária.

Tatiana abriu os olhos e encarou a mulher. Ignorando-a, a vidente saiu caminhando nervosamente em direção à saída. Os demais perceberam e correram a acompanhá-la.

- Acabou de sair, cruzamos com a coisa naquele grupo que estava saindo – disse Tati. – Sei onde está!

Depois da longa fila para pagar o estacionamento, a família aguardou mais algum tempo até conseguir entrar no elevador lotado. Dentro do compartimento, muitas das pessoas começaram a se sentir incomodadas com algo que não sabiam definir. Uma moça começou a ficar ofegante, e um senhor sentiu um terror como não experimentara havia anos. Um menino começou a chorar de medo, e sua mãe, tentando abafar o desespero que ameaçava tomar recantos que mal se lembrava no fundo de sua mente, se esforçou para consolá-lo.

Havia muito tempo que ela não se sentia assim. Seu poder crescia, e ela estava ansiosa para fazer o que de melhor conseguia. Aquele era somente o começo, e a coisa se deleitou com isso.

A família caminhou para o carro, fazendo comentários inofensivos sobre a visita ao shopping. A boçalidade e futilidade humanas sempre a aborreceram, mas era um preço insignificante a pagar pelo alimento que a nutriria, e que permitiria que voltasse a incutir terror nos corações daquelas miseráveis criaturas.

Súbito, a coisa voltou a sentir as repugnantes presenças que tanto a haviam incomodado. Não teve opção a não ser estender seus sentidos e enxergar além da fronteira opaca daquela ridícula embalagem de papel colorido.

Daniel e Tatiana se adiantaram subindo pelas escadas, enquanto Samuel ficou com Vó Nena, que já dava sinais de cansaço, aguardando o elevador. A vidente e seu namorado correram, orientados somente pelas habilidades dela.

Tati teve dúvidas quando colocou a mão na maçaneta da porta do segundo nível do estacionamento, mas por fim virou-se e correu para as escadas rumo ao terceiro nível. Daniel nada disse, temendo quebrar sua concentração, e somente a seguiu.

Correndo como dois alucinados entre os carros que circulavam buscando uma vaga para estacionar, eles finalmente viram no fim do corredor a família. Um jovem casal, a moça com um filho pequeno nos braços, e a menina de uns seis anos com uma caixa nos braços. Tatiana e Daniel correram mais.

Era ela! A nova e ameaçadora presença que havia sentido. Não! Justo agora que tudo seguia conforme seus desejos!

O casal não entendeu nada quando, conforme sua impressão, a menina começou a balançar a caixa descontroladamente. A mãe já ia dar uma bronca na filha, repetindo que somente à noite poderia abrir seu presente, quando o barulho de papelão e papel rasgando se somou à incompreensível visão das mãos da boneca saindo pelo buraco na caixa.

A menina soltou um grito, um grito de puro pavor. E não foi somente pelo susto de ver a boneca arrebentando a caixa e se debatendo para sair. Foi a certeza que surgiu em sua mente que aquele presente tão adorado escondia algo horrendo, pior que seus piores pesadelos.

A boneca finalmente se libertou e saiu correndo, diante do olhar incrédulo da família. Carros que passavam na procura por vagas frearam e xingaram Daniel e Tatiana, que passaram a perseguir o monstro.

Por onde a coisa passava as pessoas eram tomadas por um sentimento de horror que parecia sugar toda e qualquer esperança, sem conseguir determinar de onde vinha. A coisa irradiava ódio e medo, enquanto buscava fugir para algum lugar, qualquer lugar bem longe daqueles horríveis caçadores.

Pessoas na fila do elevador se assustaram com aquela pequena figura que passou depressa por eles, seguida por um rapaz e uma moça. De repente as portas do elevador se abriram e surgiram Samuel e Vó Nena, e a anciã ainda acertou um golpe de sua bengala de pau-brasil na coisa.

Os poderes daquela arma eram imensos, e o monstro voou longe. Caiu diante de um carro que passava, cuja roda a esmagou. Mas mesmo assim a coisa levantou e continuou sua fuga, arrastando-se o mais depressa que podia. Sentiu os Caçadores muito perto, e pela primeira vez o pavor a atingiu.


A seguir sentiu cada parte do corpo sintético que habitava ser esmagada por um terrível impacto contra uma coluna. O carro que a atingira recuou e a coisa ainda se debateu, antes de ser engolida para um compartimento escuro de lata, o metal estalando e se movendo a seu redor, até parar de vez.

O Fusca azul ainda irradiava um forte brilho vermelho nos faróis quando a lataria emitiu um último estalo e voltou ao seu formato original. Daniel e Tatiana chegaram correndo, conseguindo ouvir as batidas que vinham do porta-malas dianteiro. Samuel chegou em seguida, amparando Vó Nena que, exausta, abriu a porta direita e se acomodou no assento.

- Daniel, meu neto, você dirige na volta.

Todos respiraram aliviados, mas as batidas na dianteira do Fusca continuavam. Nena deu um tapa no painel do carro e gritou:

- E você fica quieto, parasita dos infernos, coisa ruim do C.!

O Fusca balançou, e as batidas pararam. Tatiana ainda sentia a presença horrenda ali, enfraquecida, mas que emanava um ódio crescente.

- Se preocupa não, filha – disse Nena segurando sua mão. – Tem arruda, trigo, e mais um monte de patuás aí na frente. O coisa ruim não escapa, não mais!

A vidente sorriu e ergueu o olhar, observando a família olhando para eles, vinda do corredor ao lado. Virou-se para a anciã, tirou algo da bolsa e disse:

- Vó, que tal a senhora...

Nena olhou o que a vidente lhe estendia e entendeu na hora. Fez uma reza e benzeu o objeto, que Tatiana em seguida levou para a menina.

- Desculpe você ter perdido seu presente, meu amor – disse, com todo o carinho que conseguia. – Espero que goste desta boneca, me fez muito feliz quando era criança, e vai fazer você também.

Tatiana estendeu uma pequena boneca de pano, antiga mas muito bem conservada, uma das que sua avó Esperança lhe fizera. A menina olhou para ela, pegou a boneca e a examinou por um tempo. Em seguida sorriu e disse “obrigada”.

Os pais da menina, ainda sem entender direito o que havia acontecido, também murmuraram agradecimentos. Tatiana sorriu e lhes disse “Feliz Natal” antes de voltar para o carro. Daniel deu partida e começou a circular, diante dos sons das buzinas dos demais veículos que se acumulavam atrás do Fusca.

- Agora vamos ter que ficar circulando até o Samuel voltar depois de pagar o estacionamento – disse ele.

- Que bonito o que fez, filha - comentou Vó Nena.

Tatiana colocou a mão no ombro da anciã, sentindo o coração leve novamente. O Fusca azul, circulando lentamente, passou por outra família, um casal com uma garota adolescente e dois meninos gêmeos menores. Um socou o braço do outro, que começou a reclamar para os pais antes de devolver o golpe.

Joca repassou a gravação da loja. A boneca andando sozinha. O rapaz metendo a faca nela.

Depois repetiu várias vezes o momento em que a boneca do estacionamento passava andando, até o Fusca a prensar contra a pilastra. O carro recuava, a frente toda amassada, antes de em poucos segundos voltar ao normal. A boneca ainda estrebuchava um pouco antes de o carro avançar e a “engolir” pelo porta-malas da frente.

Parecia coisa de cinema. Mas, como Joca sabia, Mané não entendia quase nada de eletrônica ou tecnologia. Aprendera a mexer naquele equipamento e só, nem tinha celular com internet.

Joca olhou para Mané. Este fechou na tela as janelas dos vídeos, procurou os arquivos das gravações e os deletou. Tirou os CDs, colocou-os sobre a mesa e os arrebentou com o martelo.

Jogou tudo no lixo, depois tirou o saco preto com os pedaços das outras mídias e os guardou na mochila.

- C., mano, que coisa foi essa? – perguntou Joca.

Mané colocou a mochila no ombro e olhou para o colega.

- Não quero nem saber, e pro seu bem acho que nem você quer. O gerente já deve ter chegado, vou lá pedir demissão, ir embora prá sempre desta P.

Saiu sem se despedir e nem olhar para trás. Joca ficou sozinho na sala, pensando se fazia a mesma coisa, e sentindo o terror tomar conta de seus pensamentos.

Ainda na noite daquele 24 de dezembro Vó Nena amarrou a boneca junto com folhas de arruda, mudas de trigo e alguns patuás de aprisionamento, depois de aspergir água benta na coisa. Tatiana sentiu o monstro se debatendo e proferindo as piores blasfêmias e ameaças, mas os feitiços já o haviam tornado impotente.

Em um pedaço consagrado de terra em um dos cantos da propriedade Samuel abriu um buraco, e ali enterraram mais um inimigo.

- Agora acabou – disse Vó Nena remexendo a terra com um ancinho. Jogou aqui e ali algumas sementes de grama.

- Será que sobrou alguma sombra dessa coisa, Vó? – perguntou Daniel.

- Se sobrou, meu neto, a menos que consiga parasitar alguma alma inocente, não temos com o que nos preocupar. Agora que esse filho da P. vai se desfazer aqui embaixo e voltar pro inferno do C. de onde nunca deveria ter saído, as sombras vão ainda ficar por um tempo por aí mas devem se desfazer também.

A última pá de terra foi jogada sobre a sepultura do monstro, e somente então Tatiana se descontraiu. Vó Nena se aproximou dela e a abraçou.

- Filha, muito bonito o que fez.

- Não foi nada, Vó. Vó Esmeralda me deu um monte de bonecas de pano, ainda tenho uma coleção delas no meu quarto.

Nena suspirou e disse, cheia de saudade:

- Esmeralda foi a maior vidente que conheci na vida, Tati. Como me ajudou nos anos que eu mais precisava! Fico muito contente por ter você aqui com a gente, nós te protegemos e você nos protege.

Nena a abraçou mais forte e acrescentou:

- Você já é da família, meu anjo!

Tatiana retribuiu o abraço com os olhos úmidos, e os dois rapazes se uniram a elas. Instantes depois Nena disse:

- Agora vamos parar com essa melação toda que eu quero mais é comer!

- Ô, Vó, e o espírito de Natal? – perguntou Samuel rindo.

Nena já se adiantava rumando para sua casa, e respondeu:

- Espírito de Natal o cacete! Fizemos o trabalho Dele, agora merecemos aproveitar! Tinha que ver nos bons tempos quando enchíamos a casa de gente, e o avô de vocês, que Deus o tenha, chamava prá bóia! Vamos lá, moçada, cinco minutos prá trocar de roupa e ir prá casa da mãe de vocês!

Minutos depois todos entravam no Dodjão, que disparou pelas estreitas vias da região, o motor V-8 roncando alto.

Primeiras horas do dia 25 de dezembro, a ceia transcorreu perfeitamente, todos trocaram presentes, seus tios e primos já haviam ido embora. A menina, feliz, deu boa noite para os pais e os três irmãos e foi dormir. Não demorou a pegar no sono.

Na cadeira próxima da cama, uma boneca da Natália Neiva estava sentada.


Subitamente seus olhos brilharam em uma tonalidade vermelho-vivo, e ela lentamente virou a cabeça para a cama, onde a menina dormia confortavelmente.


Caros leitores, espero que tenham apreciado esta história natalina!

Na próxima quarta-feira, dia 19, teremos mais uma parte da série de artigos sobre Fantomius, o ladrão de casaca, e depois faremos um pequeno recesso para as festas de final de ano. Retornaremos sem falta em 7 de janeiro com mais uma história, e dia 9 com o prosseguimento da série de artigos sobre Fantomius.

Lá no Corujice Literária acabamos de publicar nossas impressões sobre a magnífica exposição de Quadrinhos no MIS, o Museu da Imagem e do Som. Esta acontece até março, e não se atrevam a perder!

Em breve, claro, teremos mais histórias de Vó Nena e os Caçadores, e até lá convido a todos a reler as tramas já publicadas:



Além disso está publicado na Amazon o e-book Vó Nena e os Caçadores: O Fusca Azul, que ainda traz a história O Casarão da Rua das Dores. Livros são sempre um ótimo presente, claro!

Assim, deixo aqui os melhores votos de um Feliz Natal e um excelente 2019 a todos!

Até a próxima!

quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

Fantomius o ladrão de casaca parte 3

A Maldição do Faraó


Esta trama foi publicada em 5 de fevereiro de 2014 na Topolino 3036, e no Brasil em Tio Patinhas 592 de outubro de 2014. Destacamos o brilhante trabalho do então editor de redação Sérgio Figueiredo e do jornalista Paulo Maffia, responsáveis pelas tramas escritas e desenhadas por Marco Gervásio chegarem a nosso país pouco tempo depois da publicação italiana. Como frequente na maioria destas histórias iniciais, vemos Lorde John Quackett novamente tendo um desempenho nada elogiável em um esporte, desta vez a esgrima. E novamente com uma referência a nossa realidade, uma vez que Nedo Naduck é a versão disneyana de Nedo Nadi, italiano considerado o maior esgrimista de todos os tempos, vencedor de seis ouros olímpicos em 1912 em Estocolmo e 1920 em Antuérpia, e único a vencer a medalha de ouro nas três armas (florete, espada e sabre) em uma única Olimpíada.

A história começa um pouco antes disso, no Vale dos Reis no Egito, na expedição de Lorde Patovon e Howard Pato, versões pato do egiptólogo Howard Carter e de Lorde Carnavon, descobridores da tumba do faraó Tutankhamon em 4 de novembro de 1922. Ao ouvir a notícia enquanto discute com Naduck, John fica evidentemente muito interessado.

De volta a Vila Rosa (e como é bom ver o lugar em seu esplendor durante os anos 1920!) Dolly se mostra preocupada com a maldição, mas Quackett está irredutível no plano de roubar o tesouro do faraó que será exposto no Museu de Patópolis. Afirma-se que os participantes da expedição foram perseguidos pela múmia do faraó, mas isso não demove John, e até Copérnico quer conferir a mostra, pois Howard Pato foi seu colega de estudos.

Todos se encontram no Museu, quando Patovon e Howard comentam seus encontros com a múmia. Dolly ainda insiste com John, mas eles se concentram na exposição. Dolly fica com um vaso de ouro, e estranhamente Howard afirma que o objeto não estava entre os achados da tumba. Chega nesse momento o comissário Pinko, afirmando que o vaso foi encontrado com um ladrão e enviado ao Museu. Copérnico desconfia, e relendo as notícias descobre uma foto de Howard e Patovon na tumba, com o vaso bem visível.

Pinko e um policial estão de guarda no museu quando a múmia ataca novamente, porém é confrontada por Fantomius, revelando-se como Howard Pato. O vaso guardava um papiro que descrevia algo mais valioso que ouro, e o arqueólogo o escondeu. Depois do roubo, e passou a atacar como múmia pensando estar com algum outro membro da expedição, só voltando a encontrá-lo no Museu.


Fantomius naturalmente escapa deles, e reparem antes disso, enquanto eles conversam, em um quadrinho com Dolly Páprika aguardando na moto com sidecar do casal. Ao fundo podemos ver nitidamente um edifício quase idêntico ao Empire State Building de Nova York, um dirigível, e o prédio mais famoso de Patópolis sobre uma também famosa colina... sim, primeira aparição em uma história de Fantomius! Nossos heróis retornam a seu refúgio, quando Copérnico faz uma importante descoberta sobre o papiro, e John decide que eles devem viajar ao Egito.

A edição conta ainda com um extra, Os Ruidosos Anos 20 de Fantomius, analisando como Marco Gervásio explorou brilhantemente essa época de grande efervescência cultura em suas histórias, as inovações tecnológicas do período, além de suas famosas personalidades. Sim, histórias em quadrinhos sempre foram cultura!

A Oitava Maravilha do Mundo


Esta excelente história, uma das mais repletas de referências de toda a série, saiu na Topolino 3037, de 12 de fevereiro de 2014, e em Tio Patinhas 593 de novembro de 2014. No início da trama novamente vemos Lorde John Quackett em uma competição esportiva, no caso automobilismo. Ele disputa posição com o rival Temporali, e os resultados, como de costume, não são lá essas coisas.


Aqui vale uma pausa, pois para um fã de automobilismo como este escriba essa foi uma das mais sensacionais referências inseridas nas histórias de Fantomius pelo grande Marco Gervásio. Temporali é a versão de carne, osso e penas de Tazio Nuvolari (16/11/1892 – 11/08/1953), italiano considerado de forma unânime pela imprensa especializada mundial como um dos maiores monstros sagrados da história do automobilismo. Em 1994 a revista Quattroruote fez uma reportagem especial sobre Ayrton Senna, e nela se afirma que o legendário piloto italiano era um análogo do brasileiro entre os anos 1920 e 1930. Sua maior vitória, contra todas as expectativas e que o transformou em lenda, aconteceu no Grande Prêmio da Alemanha de 1935 em Nurburgring.

Nuvolari era piloto da Alfa Romeo, e em fotos da época se pode ver o conhecido símbolo da Ferrari em seu carro. Ele corria pela escuderia de Enzo Ferrari, que somente depois da guerra passou a construir seus próprios carros. Era um período de renovação no esporte, onde vigorava na classe Grand Prix um regulamento impondo peso de 750 kg para os monopostos, sendo que os motores eram livres.

Os fabricantes alemães, contudo, conseguiram colocar motores incrivelmente potentes em seus carros. O Mercedez-Benz W25 (oito cilindros em linha e 314 HP) e o Auto Union Type B (16 cilindros em V e 375 HP) dominavam as corridas, atingindo velocidades máximas superiores a 300 km/h. O Auto Union, aliás, com motor central, fora projetado por Ferdinand Porsche, criador do Fusca e, depois da guerra, de sua própria marca.

Tazio, enquanto isso, alinhou no grid do GP da Alemanha seu Alfa Romeo B P3 (oito cilindros em linha e 215 HP), que chegava a 230 km/h e cuja tecnologia de estrutura e suspensões igualmente estava bem defasada diante dos carros alemães. Ele largou na primeira fila pois a ordem de largada era por sorteio, e o chamado Inferno Verde (apelido do circuito de Nurburgring), com quase 23 km de extensão, estava molhado pela chuva que caía.


Por sinal, neste vídeo se pode ver a volta do Porsche 919 estabelecendo um novo recorde nesse extraordinário e perigoso circuito em 29 de junho de 2018. Agora podem ter uma vaga ideia de como deveria ter sido correr na chuva, com carros sem cintos de segurança e pneus finos, em 1935... Outra prova sensacional que ocorre ali anualmente é a 24 Horas de Nurburgring, na qual mais de 120 carros largam.

Então, quase como uma prévia de outra sensacional corrida debaixo de chuva que aconteceu na Inglaterra, em Donington, em 1993, Nuvolari combateu os pilotos dos carros alemães e, com seu imenso talento, venceu a prova debaixo do silêncio da torcida alemã. Que depois, claro, aplaudiu entusiasticamente um dos mais extraordinários feitos da história do automobilismo! Por isso que para mim foi um imenso prazer ler essa história, com a merecida e divertida homenagem de Marco Gervásio ao grande Tazio Nuvolari!

Como sempre, durante a discussão entre Quackett e Temporali, outro personagem fala a respeito da chegada a Patópolis do cineasta Carl Quackham após sua visita à misteriosa Ilha da Caveira. Quackham afirma ter descoberto a Oitava Maravilha do Mundo, que exibirá na noite seguinte no grande teatro de Patópolis. Evidentemente John, ou Fantomius, se interessa.


Evidentemente a referência aqui é Carl Denham, cineasta vivido em King Kong de 1933 por Robert Amstrong, e na de 2005 por Jack Black. Por sinal Quackham parece ser de fato a versão patopolense deste último! Comparecem ao Teatro D.U.C.K. a nata da sociedade, e ao lado de John, Dolly e Copérnico se sentam o comissário Pinko e sua esposa Adelaide. Surge Quackham fazendo as apresentações, e antes do surgimento da Maravilha, vemos duas patas com um pato entre elas na plateia. Os três são Matilda, Patoso e Hortência, as duas são as irmãs do Tio Patinhas, sendo que Patoso e Hortência são os pais de Donald e Dumbella!

Finalmente surge Gong, o gorila gigante capturado por Quackham na Ilha da Caveira. Enquanto eles se exibem Dolly fica indignada pelo macaco ter sido retirado de seu habitat, e o casal por fim decide mesmo roubá-lo, mas com o intuito de mandá-lo de volta para casa. Nisso, os flashes das fotos dos jornalistas terminam por iniciar a confusão. Gong fica arisco e termina por levar Dolly. Enquanto Pinko chama o exército, John decide vestir a roupa de Fantomius em uma cabine telefônica. Nem preciso comentar a referência, não é?

Nosso herói segue o rastro de confusão e observa Gong subindo o Empire Duck Building, prédio mais alto de Patópolis. E lá ao fundo está, novamente, o edifício mais conhecido da cidade... Os aviões militares se aproximam enquanto Dolly se preocupa que, enquanto tentam salvá-la, eles acabem ferindo Gong. Fantomius escala o prédio, enquanto Copérnico segue pelos subterrâneos da Vila Rosa atrás de um veículo apropriado, o Fantomarino.


Fantomius resgata Dolly e eles seguem para o porto, com Gong logo atrás. No porto, finalmente chega Copérnico com o Fantomarino, nada menos que um sofisticado submarino inspirado em outro veículo subaquático, descrito na obra de certo pioneiro máximo da Ficção Científica. Alguns podem conhecê-lo, seu nome é Julio Verne. Mas a versão se assemelha mais a de outro autor, Alan Moore, em parceria com o artista Kevin O'Neill.

Com Gong a bordo, tomando todo o estoque de suco de chicória para desespero de Copérnico, eles rumam para a Ilha da Caveira após outra referência. Na superfície Quackham reclama com Pinko que Fantomius o fez perder milhões, mas o comissário diz que somente esse furto do Ladrão de Casaca ele aprova. Merian Cooper conversa então com Quackham querendo fazer um filme sobre o evento, e depois vemos o cartaz anunciando King Kong de 1933, dirigido pelo próprio Merian Cooper e tendo no elenco Fay Wray, Robert Armstrong e Bruce Cabot.

Mais uma belíssima e divertida declaração de amor ao cinema de Marco Gervásio em uma estupenda história de Fantomius! Marco disse que o King Kong original é um de seus filmes preferidos, e na HQ quis dar-lhe o final com que muitos sonhavam. E que ficou nada menos que brilhante!

Fantomius na Neve


História publicada em Topolino 3039, de 25 de fevereiro de 2014, e que vimos no Brasil em Tio Patinhas 594, de dezembro de 2014. De novo Lorde Quackett mostra suas “habilidades” no esporte, desta vez o esqui, em uma história onde o humor é a característica mais forte. Começa com as “vítimas” de nosso herói caindo, acompanhadas de um considerável monte de neve, aos pés de Hercule Patorot, lendo tranquilamente seu jornal na estação de esqui do Pico Calvo.

Devem se lembrar de Brutfagor, história analisada na parte 2 deste especial, onde pela primeira vez aparece o detetive belga, inspirado em Hercule Poirot de Agatha Christie. Ele veio para o aniversário da Baronesa Del Fuxico, que será presenteada pelo marido com um colar de brilhantes. Em sua residência de inverno, a Casa da Marmota, John e Dolly elaboram seu plano, quando chega Copérnico, que foi fazer um reconhecimento e testar os esquis a jato de vapor que devem ser utilizados na fuga. E que estão somente com um “pequeno” problema nos freios...

O inventor descobriu que o barão irá se fantasiar de Fantomius, fingir roubar o colar e, rendido pelo comissário Pinko, revelará sua identidade e finalmente presenteará a esposa com as gemas. Na mesma noite Pinko se prepara quando chega Patorot, e fica claro que o comissário não morre de amores pelo detetive. Depois dessa discussão chega o barão já fantasiado, que recebe o colar de Pinko e invade a festa. Porém ele escapa pela janela, revelando-se como o verdadeiro Fantomius!

Começa então uma perseguição pela neve, e Fantomius revela ser um ótimo esquiador, dando um salto digno das Olimpíadas (e a modalidade de fato estreou nos Jogos de 1924. Pinko, como sempre, está mais para ator de pastelão, e Fantomius retorna ao esconderijo mesmo com o freio dos esquis novamente falhando. Copérnico descobre que o colar é falso, e John revela já saber disso.

De volta à festa, Patorot revela que trocou as jóias prevendo a ação de Fantomius, para a alegria da baronesa. Esta agradece ao detetive francês e vai apanhar as gemas. Patorot se indigna, dizendo ser na verdade belga, e nesse momento “se toca”. Corre ao quarto dos barões e encontra o casal dormindo. A baronesa, claro, era Dolly, e nossos heróis comemoram o golpe enquanto John escreve no Diário! Em outro dia, em Londres, uma dupla de personagens lê as notícias sobre Fantomius superar Patorot, e um deles proclama: “elementar”!


Na pesquisa para escrever esta série de artigos descobri que a Casa da Marmota apareceu pela primeira vez em uma história de Marco Gervasio publicada em 13 de novembro de 2001 em Topolino 2398. O título italiano é Paperinik contro le Giovani Marmotte, e em Portugal a trama foi publicada em Pato Donald (2ª Série) 118 de 2005, traduzida para Donald Contra os Escoteiros-Mirins. Na trama Donald visita uma biblioteca e, em um livro dedicado a Fantomius, descobre a existência de mais esse refúgio do Ladrão de Casaca. Conforme o site Inducks, que pode ser consultado nos links destacados, permanece inédita no Brasil, portanto fica mais uma sugestão para a futura editora que deve retomar a publicação de quadrinhos Disney aqui em 2019.

Essas histórias mostram uma nitída evolução, seja na complexidade e elaboração das tramas, as referências sempre geniais e no ambiente geral, posicionando Fantomius nos anos 1920 de forma precisa. São sempre deliciosas para ler, e encontrar cada referência e aprender com elas é sempre uma alegria, como toda boa história.

Na Itália e em Portugal estão sendo publicados encadernados, dentro da série As Melhores Histórias Disney, trazendo a sequência de todas as histórias de Fantomius. Aqui no Brasil, até o final da publicação dos quadrinhos pela Abril, em julho de 2018, todas as histórias vinham sendo publicadas completas e na ordem correta, coisa raríssima em nosso país, e os nomes dos personagens eram cuidadosamente modificados, conforme o caso, a fim de bater com as referências. De novo, um brilhante e primoroso trabalho dos responsáveis.

Esperemos que a nova editora dos quadrinhos Disney no Brasil, anunciada pelo site Planeta Gibi conforme repercutimos na parte 2, tenha esse mesmo cuidado e mantenha os  nomes já consagrados, voltando a publicar as histórias de Fantomius de Marco Gervásio com regularidade e mantendo a ordem correta. Os sinais, conforme aquele site publicou, são muito promissores. Não merece menos essa sensacional saga!

Até a próxima!