Nesta nova fase, neste novo Escritor com "R", continuarei a republicar alguns dos melhores textos que anteriormente estiveram na versão deste blog na Uol. Desta vez apresento esta primeira história de Vó Nena e os Caçadores, meu primeiro universo de Fantasia com toques de terror. Busco aqui explorar não somente o sobrenatural e suas criaturas fantásticas, mas também o folclore e lendas urbanas brasileiras.
Era janeiro de 2015, e enquanto escrevia as primeiras histórias deste universo, me veio uma ideia inspirada pelo já famoso vampiro Neculai, do amigo e colega escritor Adriano Siqueira. Ele gostou do que apresentei e me deu autorização para escrever este primeiro crossover entre Neculai e personagens de outros autores.
O universo de Vó Nena e os Caçadores já teve outras histórias produzidas, que breve estarão aqui, e já conta com um e-book na Amazon, cujo link segue ao final. Espero que gostem!
Vó Nena e os Caçadores - Neculai e a
Escuridão
O
potente motor V-8 roncava alto, enquanto o Dodge Charger R/T percorria em alta
velocidade a estrada do interior.
-
Droga, droga, droga! – não parava de repetir Daniel. Era o mais velho, e
deveria ter protegido o irmão. Samuel, o caçula da dupla, sempre fora o mais
impulsivo.
Daniel
olhou no retrovisor por um momento, enquanto fazia o Dodge atingir quase 200
km/h na estreita estrada.
-
Está muito ruim? – perguntou com voz aflita.
Samuel
estava com um corte na face esquerda, e segurava o braço direito quebrado com a
outra mão.
-
Eu aguento... acelera essa p.!
Daniel
se concentrou na estrada, desviando de carros mais lentos em manobras que
rendiam longas buzinadas, e ele imaginava, vários sinais desagradáveis feitos
com o dedo médio.
-
Nunca xingue meu carro!
Sorriu
de leve. Se Samuel estava xingando, era sinal de que estava bem.
-
O que você estava pensando, Samuel? Enfrentar Neculai como se fosse um desses
vampiros porra-louca de hoje? Teve sorte dele não arrancar sua cabeça!
-
Acha mesmo, mano, que não estou aqui desesperado? Ele pegou meu celular e o
primeiro contato é a Vó Nena! Acelera isso!
-
Estou acelerando, caramba! E você sabe muito bem que o segundo contato é a
Tatiana... E como ainda tem gente que é fã desse monstro? Aquele débil mental
do programa na Internet que ele trucidou... o que acontece com esse mundo?
-
Vó Nena tem falado muito na escuridão se aproximando – disse Samuel entre duas
tossidas. – Vai ver essa onda de retardamento mental aborrecente seja um
sintoma.
Daniel
sorriu de novo. Seu irmão ia viver, se estava transbordando sarcasmo daquele
jeito. Porém, o desespero deles aumentava. Conseguiriam chegar a tempo?
Tatiana
ouviu o celular tocar. Olhou ao redor, para o aposento tomado por símbolos de
magia e ritualísticos, e encarou os olhos profundos e experimentes da figura
frágil à sua frente. Agachou-se e colocou o celular no centro do círculo,
apertou a região adequada da tela, e suspirou fundo.
-
Alô – disse, tentando parecer tranquila.
-
Alô, Tati! Foi um horror! Esse vampiro Neculai é forte demais, não conseguimos
detê-lo! E agora ele tem o seu número e o da Vó Nena...
-
Cala a boca, seu monstro filho de uma p. – disse uma voz vigorosa. – Pare de
querer imitar meu neto Samuel e apareça!
A
voz que emergiu a seguir do celular no chão poderia ser descrita de muitas
formas, mas definitivamente não era humana.
-
Cuidado com o deseja, Vó Nena...
Neculai
surgiu no instante seguinte.
-
Estou com fome! Ah, Tatiana, posso ver porque Daniel ficou tão preocupado, você
é tão linda... Ele vai sentir fortes emoções ao te ver, depois que eu
terminar...
O
vampiro estendeu a mão na direção da vidente morena, porém um crepitar o
obrigou a recolhê-la. Segurou a mão, que ficou avermelhada. Olhou para o chão,
e observou o pentagrama artisticamente desenhado no revestimento, e o círculo
de sal grosso e alho, com pouco mais de um metro, onde estava confinado.
Neculai
ergueu o rosto, exibindo os dentes afiadíssimos em um sorriso macabro, e
apanhou o celular do chão enquanto olhava para as duas.
-
Então, vocês são versadas nas artes ocultas, não é mesmo? Não que vá ajudá-las
muito.
Tatiana
não conseguia parar de olhar para o rosto monstruoso. Neculai a observava com
volúpia, mas desviou o olhar para a figura miúda do outro lado.
-
Vó Nena! Já ouvi falar muito na senhora! Estou de fato honrado em conhecê-la!
Vou até contar algo que poucos humanos sabem, os monstros também às vezes se
entretêm com histórias horripilantes, e saiba que a senhora é personagem de
muitas delas!
-
Bom, eu fiz por merecer, seu filho de uma p.!
- Ah, e a linguagem chula das histórias também é verdade – deliciou-se Neculai. –
Este momento é tão excitante que quase me fez esquecer minha fome.
-
Vó – disse Tatiana, cada vez mais insegura. – Então este é Neculai?
-
Sim, filha. Um dos Antigos! – disse Nena do alto de sua sabedoria. – Eles, de
linhagens mais puras, têm esses poderes bem maiores que os outros sanguessugas
que já conhecemos. Talvez esse bicho feio aqui seja mesmo uma das primeiras
pestes trazidas prá nossa terra, pela maior calamidade de todas!
-
Sim, Tati, querida, sou diferente dos demais! – zombou Neculai. – Não sou desses
personagens de romances, especialmente as fadinhas purpurinadas daquela autora.
E entretanto, saiba que existe um entendimento tácito entre nós, vampiros, de
não atacar esses escritores. Claro, pois nos beneficiam muito com suas
histórias! Estamos nos tornando heróis graças a eles!
Tatiana
sorriu de leve, encarou o vampiro e respondeu:
-
Pois as fadas de verdade que conheço ficam muito ofendidas com essa comparação.
Neculai
sorriu mais ainda, parecendo se divertir com a situação. Depois girou o corpo,
olhando para Nena.
–
E suas palavras a traem, velha! Tenho que admitir que conseguiram me
surpreender com sua estratégia mágica, o pentagrama e o feitiço. Mas começo a
perceber que não sou eu mesmo, realmente, o alvo de sua caçada, certo?
Tatiana
olhou para Nena com expressão preocupada. A anciã lançou-lhe um olhar de alerta, mas em seguida Neculai virou-se
para Tatiana.
-
Tão linda... e com tanto medo! Crescendo, tomando conta de sua mente, como um
fogo dentro de você, consumindo-a... está sentindo, Tati? Sinto o cheiro de seu
sangue, temperado pelo desespero!
Tatiana
olhou para Neculai, e finalmente viu. Séculos de morte, chacina e violência,
vítimas incontáveis, tudo sob um véu vermelho da cor do sangue. A visão vinha
em ondas cada vez maiores, pois o próprio Neculai permitia que visse.
-
Ah, Tatiana, sim... sim! Entregue-se ao desespero! Entregue-se a mim!
O
vampiro deu um salto, e conseguiu sair do círculo de proteção. Somente suas
roupas arderam em pequenos pontos, que ele apagou simplesmente batendo com as
mãos. Tatiana e Nena deram-se as mãos, encolhendo-se em um canto. A anciã se
apoiava na bengala.
-
Então, qual das duas vai ser primeiro? – perguntou Neculai. – Ah, mas claro, já
que me proporcionaram tanta diversão, além de uma farta refeição, vou dizer o
que querem saber.
Neculai
aproximou-se vagarosamente, ficando a três passos delas. Nena segurava firme a
mão de Tatiana, que estava trêmula e ameaçava ceder em definitivo ao desespero.
-
Sim! – disse o vampiro. – Pude ver os pensamentos da vidente, e ela está
correta. A escuridão está chegando! Na verdade é um tanto incorreto,
desculpem... A escuridão sempre esteve aqui, nesta terra tão agradável a nós,
vampiros, onde se mata por quase nada, onde humanos exploram, segregam e
enganam humanos, encontrando as mais magníficas e torpes justificativas para
seus atos. Sim, para nós, o melhor do Brasil é mesmo o brasileiro! E o mais
saboroso também...
O
vampiro virou a cabeça, parecendo olhar para outros lugares, outros tempos. Em
seguida tornou a focar toda sua atenção nelas.
-
A escuridão está chegando, e não há nada que possam fazer. Ele nunca será
detido! Sempre haverá alguém ansioso para desfrutar das vantagens que ele
oferece, como era mesmo aquela propaganda? “Levar vantagem em tudo”, quem acha
que a inspirou? Ah, por causa dele o Brasil é esse jardim das delícias. E
falando em delícias...
Neculai
avançou. Nena deu um passo e ficou entre ele e Tatiana, e ergueu sua bengala
como se fosse uma espada.
-
Sério, velha? – perguntou Neculai parando a um passo delas. – Vai me acertar
com a bengala, é isso?
Vó
Nena segurou firme sua bengala, mantendo Tatiana encolhida atrás de si. Neculai
abriu um largo sorriso, mostrando as aterradoras presas, no momento em que a
anciã desferiu o golpe.
Neculai
aterrissou no outro lado do cômodo, derrubando uma mesa com livros e utensílios.
O vampiro, surpreso por ter ficado grogue com o golpe, levantou-se devagar.
-
Como...?
-
Pau Brasil, seu filho de uma grande p.! – disse Vó Nena brandindo a bengala. –
Desde o começo, muito bom para machucar vocês, demônios!
Neculai
se apoiou em uma cadeira e levantou, andando de lado sem tirar os olhos do
rosto de Nena.
-
Acha mesmo que conseguirá vencer, velha? Não eu, mas todos os monstros e
demônios à solta?
-
Sei que vou, seu canalha! – disse Vó Nena, sempre com a bengala em riste.
Neculai
soltou uma pavorosa gargalhada.
-
Já se esqueceu em que país está, Nena? Até eu ganhei um fã clube! Aqui os
políticos, aliás a classe que mais se aproveita da presença dele, de seu
principal alvo, roubam sem parar e o povo torna a elegê-los! Sempre haverá egos
inflados, ganância e sede de poder, e sempre haverá monstros como eu para tirar
proveito!
Foi
a vez de Vó Nena rir.
-
Todos esses séculos, Neculai, e você ainda não aprendeu o principal. Em meio a
escuridão, mesmo a menor fagulha espanta as trevas!
Nena
se aproximou erguendo a bengala, e revelando uma estaca na outra mão. Porém
Neculai foi mais ligeiro, deslizou para o celular que ainda estava no círculo,
e ignorando a dor das queimaduras devido à energia mágica, apertou um comando.
Desapareceu no mesmo instante, mas sua voz ainda pôde ser ouvida.
-
Vamos ver se seus contatos, Nena, irão gostar de minha visita!
Um
potente barulho de motor, seguido pelo guincho de uma forte freada, vieram lá
de fora. No instante seguinte Daniel e Samuel entraram correndo.
-
Cadê o maldito? – perguntou Daniel apontando a espingarda municiada com balas
de prata.
Nena
sentou-se em uma cadeira. Estava cansada, apoiou as mãos na bengala e disse
-
Calma, meus netos, ele foi embora. Samuel, venha cá e deixe sua avó ver esse
braço.
Tatiana,
refeita dos momentos de terror, correu e abraçou Daniel. Trocaram um longo
beijo. Samuel por sua vez obedeceu e se aproximou. Nena examinou o ferimento e
disse:
-
É, mágica não vai resolver isso. Samuel, deixa esses agarramentos prá depois e
leva seu irmão pro hospital.
-
Vó, o que rolou aqui? – perguntou Samuel. – Vocês tão vivas, não dá prá acreditar!
Aquele vampiro filho da p...
Samuel
tomou um dolorido peteleco da avó, que disse:
-
Olha a linguagem, moleque!
-
P., Vó, doeu!
Outro
cascudo, ainda mais doído. Daniel e Tatiana, ainda abraçados, pararam de se
beijar para apreciar a cena, que sempre se repetia.
-
P. é o c., moleque! – gritou Vó Nena. – Tô te educando! Agora entra naquela
banheira que seu irmão chama de carro, e vá pro hospital tratar desse braço!
Tatiana
ajudou a levar Samuel até o Dodge, e o mais novo dos irmãos ainda reclamava,
massageando o cocuruto.
-
Caramba, como ela é quase um metro mais baixa que eu, e consegue me bater
assim?
-
Anos de prática – riu Daniel.
Os
dois irmãos entraram no Dodge, que logo sumiu na noite. Tatiana entrou, bem a
tempo de acompanhar Vó Nena atendendo ao celular.
-
Vó, tem certeza que é seguro?
-
Minha filha, aquele ordinário daquele vampiro que nem pense em voltar aqui. –
apanhou o celular e apertou o comando de atender – Alô.
Pelo
aparelho puderam acompanhar gritos, e a mesma voz inumana de antes.
-
Nena, Nena... muito esperto de sua parte! Só havia um contato no celular, e
quem diria? Era de seu maior inimigo nesta cidade! Apareci bem no meio de um
culto, a confusão como pode imaginar foi enorme, e devo dizer que os dois
seguranças dele e uma das fiéis estavam deliciosos.
-
Mandou ele pro culto do vereador Ramalho? – perguntou Tatiana.
Nena
olhou divertida para a moça, sem responder. Neculai, por seu lado, disse:
-
Mas acho engraçado, velha, dizer que luta pelo lado da luz, e mandar um monstro
como eu para cá. Os dois homens e a mulher que matei deveriam ter família, e
provavelmente só estavam fazendo seu trabalho, e ela certamente queria algum
alívio das agruras de sua vida.
Elas
sentiram a voz do vampiro muito mais próxima, quando ele sussurrou:
-
Não acha que isso contará contra você, quando chegar sua hora de prestar contas
lá em cima?
-
Neculai, tudo é questão de equilíbrio – disse Nena. – E nesse quesito, maldito,
pode apostar que fiz muito mais bem do que mal. Vocês acham que vão vencer, mas
os Caçadores e os seres da terra, os Encantados, vão acabar com vocês e com
essa guerra.
-
Veremos, Nena, veremos. Até lá, não desgrude de seu celular!
E
com essa frase Neculai desligou. Vó Nena descansou o celular na mesa, voltou a
apoiar as mãos na bengala de Pau Brasil, e ficou em silêncio meditando.
-
Vó... desculpe...
Tatiana
puxou outra cadeira e sentou-se diante de Nena. A anciã segurou a mão da
vidente, olhando-a com ternura, e perguntou:
-
Desculpar por que, filha?
Tatiana
baixou a cabeça. Nena estendeu a mão e ergueu seu queixo.
-
Não fui forte o bastante – disse por fim Tatiana. – Ele iria demorar mais para
sair do círculo, se eu não tivesse fraquejado.
-
Besteira, menina! – disse Nena. – Você e os meninos nunca tinham enfrentado um
dos Antigos antes, e estão vivos depois de tanto medo e sofrimento. E isso já
quer dizer que venceram. Da próxima vez, estarão preparados!
Nena
observou Tatiana, enquanto acariciava seus longos cabelos escuros. Depois uma
sombra desceu sobre seu olhar, e ela disse:
-
Filha, você viu as vítimas de Neculai, eu sei. Mas tenho que perguntar, e o que
mais?
A
expressão de Tatiana se tornou sombria, e parte de sua mente se esforçou para
afastar o inominável pavor que ameaçava tomá-la. Nena, observando-a atentamente,
ficou com pena da moça. Finalmente a vidente disse:
-
Vi o que o vampiro comentou. Todos tentando levar vantagem. Brigas de ego, as
pessoas querendo impor suas vontades ou opiniões umas sobre as outras,
ganância, ódio, intolerância, perseguição... conflito, violência. E a escuridão
cobrindo tudo e todos.
Tatiana
suspirou. Voltou a baixar a cabeça, mas logo a ergueu de novo, encarando a
anciã.
-
Vó, e quem era ele, de quem vocês falaram?
Vó
Nena olhou para Tatiana, mais séria do que a moça jamais havia visto.
Ergueu-se, caminhando amparada pela bengala. A moça se levantou e a seguiu, e
seguiram juntas até o quintal da casa. O céu estava estrelado, como somente no
interior se pode ver, e se viam no extenso gramado as três árvores de Pau
Brasil, plantadas havia décadas pelos pais de Nena. Além deles, a cerca de
madeira que delimitava a propriedade, e a primeira das casas vizinhas.
Vó
Nena olhou para aquele bucólico panorama por alguns momentos, depois se voltou
para Tatiana. Ainda manteve um longo silêncio antes de responder:
-
Uma coisa que antes de hoje achava que era só lenda, filha. Uma coisa para a
qual todos vamos ter que nos preparar. E muito.
Neculai criado por Adriano Siqueira
Vó Nena e os Caçadores criados por
Renato A. Azevedo
Vó Nena e os Caçadores retornarão
Quero novamente agradecer ao amigo e colega Adriano Siqueira, que permitiu que eu utilizasse sua criação, o vampiro Neculai, nesta história (a imagem logo acima, aliás, tem também seu crédito). Não deixem de participar do grupo Neculai, Sangue e Desespero no Facebook, e de conferir o estupendo Contos de Vampiro e Terror! Se houvessem mais pessoas como o Adriano na Literatura Fantástica Brasileira, estaríamos em muito melhor situação com certeza!
Quero ainda convidar a todos a conhecer a mais recente história deste universo, Vó Nena e os Caçadores: O Fusca Azul, disponível na Amazon.
Até a próxima!
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