domingo, 11 de dezembro de 2022

ZÉ DA PINGA 20 ANOS

 Eram outros tempos! Maravilhosos tempos quando, por três inesquecíveis anos, a comunidade nerd ansiava pela chegada de dezembro. Significava que um novo filme da maior trilogia da história do cinema, O Senhor dos Anéis de Peter Jackson, estava chegando!

Arquivo-X estava indiscutivelmente chegando a seu fim, mas os excers continuavam fiéis às aventuras de Mulder e Scully. E, de uma Galáxia Muito, Muito Distante, ainda nutríamos esperanças de grandes histórias vindas da Lucasfilm.

Foi um tempo inesquecível para aqueles ávidos por boas histórias, e também para contadores de histórias. Mesmo aqueles que iniciavam sua trajetória.



Era a época gloriosa da revista Sci-Fi News, e foi uma alegria e uma honra inesquecíveis quando minha primeira publicação em mídia física, na edição 62 dessa saudosa revista, chegou às bancas. Tenho a grata satisfação de saber que Zé da Pinga ainda é lembrado pelos fãs de ficção científica, e devo a eles, e também à equipe da revista, Silvia, Lu, Fábio, Paulão e o Professor Walter, inúmeros agradecimentos por esse apoio e incentivo naquele saboroso mas difícil início.



Zé da Pinga ainda foi publicado em meu segundo livro, Filhas das Estrelas, em 2011 pela Editora Estronho. Que continua disponível como e-book, e vocês podem conferir lá embaixo, ao final deste post. Há algumas diferenças, evidentemente, em relação a versão que apresentarei a vocês daqui a pouco, que é a que foi publicada na Sci-Fi News 62. E, com os contos A Marca e Irmãos, também integrantes de Filhas das Estrelas, estabeleci que Zé da Pinga é uma história que faz parte do mesmo universo de meu primeiro livro, De Roswell a Varginha (Tarja Editorial, 2008).



Então, sem mais delongas, apresento Zé da Pinga em sua versão original para vocês, celebrando 20 anos de sua primeira publicação. Boa leitura!



ZÉ DA PINGA


- É verdade, seu moço. A luz veio de lá do morro, “alumiando” tudo por estas bandas!

- E “tumém” ali no fundo, na chácara de “seo” Armando, onde dizem que o “bicho” pousou.

O casal, simplório mas muito solícito, explicava tudo o que haviam testemunhado três noites antes. Célia perguntou:

- E os senhores têm visto essas luzes há quanto tempo?

O homem coçou os ralos pêlos que cobriam seu queixo, e por fim disse:

- “Óia”, dona, pelo que a gente se “alembra”, faz bem uns dez dias...

Célia trocou olhares com Marcos. Renato digitava o relato do casal com uma rapidez fenomenal no laptop, enquanto os irmãos Kássia e Leonardo andavam pelos arredores buscando mais evidências.

Salto do Avanhandava, pequena cidade do interior paulista a cerca de cinquenta quilômetros de Campinas, estava a poucos dias de comemorar os vinte anos de sua emancipação e transformação em município. Contudo, para alguns de seus pouco mais de seis mil habitantes, não era aquele o assunto principal naqueles dias, mas sim a grande quantidade de visões de estranhas luzes durante as noites. Na verdade, toda a região era assolada, há semanas, por uma onda de aparições de ovnis, mas, conforme o testemunho que acabavam de tomar de seu Waldir e de dona Iracema, sua esposa, há dez dias os fenômenos se concentravam nas menores cidades daquela região, em especial sobre Salto do Avanhandava.

- O que os senhores acham que é isso?

Seu Waldir perguntou com legítimo interesse, mostrando uma curiosidade típica da região para tudo que era novidade. Renato, no entusiasmo de seus 23 anos, respondeu:

- É uma onda ufológica como há tempos não víamos, seu Waldir! Praticamente desde o Caso Varginha não temos nada assim! Pelo visto, os “extras” estão se animando de novo!

- O padre Reginaldo diz que é tudo coisa do capeta, disse Iracema.

Sem que ninguém pudesse impedir, Renato continuou:

- Que nada, dona Iracema! Acreditamos que eles vêm de outros planetas, outros sistemas solares! Não tem nada do diabo nisso. Até mesmo o papa disse recentemente...

- Renato, menos, menos, cortou Marcos, o líder do grupo. Não queremos tomar mais o tempo dos senhores, não é mesmo? Agradecemos pela ajuda.

O jovem guardou o laptop a contragosto, e com os demais cumprimentou o pequeno grupo de moradores do Baixo Morro, bairro da periferia da cidade. Estavam entrando na perua, quando Waldir pareceu lembrar-se:

- Ah, nós esquecemos de avisar, o pessoal aqui do bairro tá dizendo que um bêbado, que todo mundo chama de Zé da Pinga, tá sumido há uns dois dias.

Eles voltaram a se interessar, pedindo mais detalhes. Ouviram que aquele homem costumava vagar pelo bairro mendigando, e era muito conhecido nos dois ou três bares das redondezas. Apesar de gostar de ficar de pileque, não incomodava ninguém, a não ser quando ficava mais animado, segundo diziam, e saía dizendo que “eles” chegariam em breve.

- Quem são “eles”, seu Waldir?

A pergunta de Marcos foi respondida com um erguer de ombros. Ninguém sabia mais nada sobre o Zé. Ele aparecera na região há uns quinze anos, e corriam boatos que tinha sido militar ou coisa parecida na época da ditadura.

- Uns e outros ainda falam que ele “teve” envolvido com alguma coisa séria do governo, disse dona Iracema. Mas nós não “crerdita” muito, não, esse povo gosta de contar história.

Agradeceram, e com todos a bordo da perua se encaminharam para o endereço de mais uma testemunha, logo na outra rua do mesmo bairro seguindo as indicações de seu Waldir. As ruas de terra batida dificultavam um pouco a marcha do veículo, e eles também haviam ouvido muitas reclamações sobre como o prefeito Eduardo não fazia nada para melhorar as condições de vida daquela parte pobre da cidade. Realmente, quando chegaram ali, precisaram pedir autorização para investigar o caso, e os funcionários e o próprio prefeito não foram muito prestativos. A única exceção fora o chefe da polícia local, capitão Flávio, que parecia ser a única autoridade na cidade realmente interessada em encontrar uma explicação para os acontecimentos.

Passaram mais meia hora entrevistando pessoas no novo endereço, e todos os relatos coincidiam. Algo de muito estranho estava acontecendo, o que era ainda mais respaldado por algumas marcas no solo e folhas queimadas de árvores, que encontraram quando foram investigar a chácara de seu Armando. Este, um pequeno produtor rural, também mostrou-se muito simpático, dando os endereços de diversas outras testemunhas.

Estavam nisso, quando viram uma pessoa chegar correndo pela rua, e reconheceram seu Waldir. O homem, esbaforido, disse quase gritando:

- É o Zé da Pinga! Ele apareceu!

Mais tarde, estavam no hospital da cidade, pequeno mas felizmente com capacidade de fazer um atendimento de boa qualidade. Zé havia aparecido com as roupas ainda mais esfarrapadas que de costume, e com um profundo ferimento na cabeça. Disse que havia caído depois que a “casa redonda” levantara vôo...

- Será que o senhor poderia repetir para nós o que se passou, perguntou Célia com todo carinho.

O médico que dava alguns pontos no corte balançou a cabeça em sinal de desaprovação, mas permaneceu calado. O homem voltou a contar sua estranha história. Disse que um grupo de “sacis” chegaram dentro de uma luz, e o convidaram para visitar sua casa.

- E eu fiquei espantado, dona, porque a casa dos “bichinhos” era redonda! Tudo era redondo, e muito “alumiado”, mas eu não conseguia ver nenhuma lâmpada...

Ele contou que os “sacis” como os chamava, fizeram um tipo de exame médico nele, em uma sala que foi descrita como semelhante a que se encontrava naquele momento. Depois, eles teriam contado muitas histórias para ele, e mostrado algumas imagens “numa espécie de televisão” segundo o Zé.

- E o que mostravam essas imagens, Zé, e o que eles contaram para você?

Ele olhou para Marcos, que do alto de seus quarenta anos e mais de vinte dedicados a pesquisa ufológica era o líder do grupo, e respondeu:

- Olha, “seo” Marcos, eles me mandaram dizer só que logo logo eles e mais uma porção de outras “gentes” do lugar de onde eles vêm vão chegar na Terra, porque “nóis” não “tamo” cuidando bem dela, e vão nos ensinar muitas coisas.

Os dois ufólogos se olharam, e até o médico havia parado para acompanhar as palavras, que soavam fantásticas e até loucas demais, mas eram ao mesmo tempo fascinantes. Zé ainda disse:

- Eles me contaram mais uma porção de coisa, mas ainda não posso “contá” elas “proceis”. Só quando eles me chamarem de novo.

- E quando vai ser isso, Zé, perguntou Célia.

Ele olhou para a moça, que tinha vinte e cinco anos, e respondeu:

- Logo, logo, dona...

Deixaram-no descansando um pouco na enfermaria, e saíram. No corredor, o prefeito e o capitão da polícia aguardavam.

- Gostaria de mais uma vez pedir aos senhores que terminem logo com isso! Não queremos que essas histórias se espalhem, e atrapalhem o aniversário da cidade.

Aquela parecia a única preocupação de Eduardo. Mostrava-se muito ansioso. Marcos respondeu:

- Temos algo estranho acontecendo, prefeito, e gostaríamos de continuar investigando.

- Vão dizer que acreditam nessa bobagem? Por favor, o homem é um pobre-diabo, vive bêbado pelos cantos!



- Mas ninguém o viu pelos últimos dois dias, prefeito, respondeu Célia. Todas as pessoas que entrevistamos disseram que Zé nunca sumiu por tanto tempo.

Eduardo parecia muito contrariado. Ficou com a cara ainda mais fechada quando Flávio disse que muitas pessoas estavam assustadas, e portanto era sua obrigação tentar desvendar aquele mistério:

- E, para isso, se pudermos contar com ajuda especializada melhor, não concorda, prefeito?

Ele não parecia nada feliz, resmungou algo incompreensível, cumprimentou todos com um leve aceno de cabeça e retirou-se dali. Na saída, quase trombou com dois repórteres do único jornal local, que também ajudavam nas investigações. A moça, Maria, cumprimentou os presentes e o chefe de polícia que também saiu, e dirigiu-se aos ufólogos:

- É, vocês conseguiram incomodar o prefeito.

- Maria, por que ele está assim, perguntou Marcos. Afinal, são poucas pessoas que acreditam sequer que esses fenômenos estejam acontecendo.

O outro repórter, Gustavo, chamou todos para um canto, e disse que a festa significava muito para o prefeito. O mesmo era de uma família de muita influência por toda a região, e se a mesma fosse um sucesso, poderia ser usada como propaganda eleitoral:

- Logo vai haver eleições, e Eduardo quer se candidatar a deputado estadual. Além de tudo, correm boatos que muita coisa nessa festa foi superfaturada. Não temos provas, mas empresas de familiares e amigos do prefeito estão entre os fornecedores...

Intrigas políticas, mais um complicador para uma situação já bem complicada! Eles trocaram mais impressões sobre o que parecia estar acontecendo, e já se dispunham a ir embora, quando o mesmo médico veio correndo, com uma radiografia nas mãos. Sua expressão dava mostras de profunda confusão.

- Estava examinando novamente as radiografias que tiramos do Zé, e acabei encontrando isso. Nunca vi nada igual!

Apontou diretamente para um estranho objeto na chapa, logo acima do osso da fronte do crânio do Zé. Todos puderam ver um estranho objeto alongado, de formato cilíndrico, alojado do lado oposto ao ferimento que acabara de ser tratado. Não havia qualquer sinal de um orifício de entrada. Os repórteres ficaram boquiabertos, enquanto os ufólogos se entreolharam pela enésima vez. O caso ficava mais interessante a cada nova pista encontrada.

Enquanto os outros ficavam no hospital, Renato, Kássia e Leonardo resolveram ir assistir a uma das missas de padre Reginaldo. Mal entraram na pequena igreja e sentaram-se em três lugares vazios, e as cabeças que haviam se virado para trás para observá-los já se voltavam para frente, e um “zunzunzum” de conversas paralelas começou a ser ouvido. O padre interrompeu o sermão por alguns instantes com expressão contrariada, e logo voltou a falar, com muito mais veemência que antes:

- E finalmente, aqueles entre vocês com idéias imorais, que se questionam sobre a Criação do Senhor, e até almejam acrescentar “coisas” a Sua Divina Obra, estejam avisados: nas Sagradas Escrituras está, há muito tempo, o relato do que irá acontecer ao Final dos Tempos! Está escrito que nos céus aparecerão prodígios, mas que são na verdade maquinações do Mal para dominar os fracos de espírito, para cobrir e denegrir a obra de Deus na Terra! Aqueles dentre vocês que derem ouvidos aos que espalham essas histórias de falsos prodígios padecerão na danação eterna, assim está escrito!

Longe de se intimidarem com as ameaçadoras palavras do padre, aquilo divertiu os ufólogos. Renato, que gravava tudo com sua câmera digital, mal conseguia evitar de dar gargalhadas. Os outros insistiam aos cochichos para que se contivesse. Finalmente, depois da comunhão e dos ritos finais, a igreja ficou vazia, e os três foram falar com padre Reginaldo.

- O que querem aqui? Esta é a Casa de Deus!

Leonardo, o mais diplomático dos três, pediu desculpas, mas assegurou que não estavam ali para incomodar ninguém:

- Desculpe, padre, não é nossa intenção trazer algo negativo para ninguém nesta cidade. Queremos apenas juntar provas, entender os fatos desses acontecimentos...

- Não há nada para entender, cortou o padre rispidamente. O diabo pode se manifestar de muitas formas, como deveriam saber se estudaram a Bíblia Sagrada.

Kássia, que trazia um crucifixo pendurado em uma correntinha, perguntou:

- Mas padre, a mesma Bíblia não nos ensina as palavras de Jesus, que não devemos julgar para não sermos julgados, e devemos amar o próximo como Ele nos amou?

O padre resmungou qualquer coisa, e ela ainda disse:

- Pelo que sei, a Bíblia não cita nada sobre os dinossauros, mas já encontramos seus ossos e outros vestígios, e portanto sabemos que os mesmos existiram. O senhor nega isso?

- E acho que se lembra há alguns anos, quando a NASA, a agência espacial americana, anunciou a descoberta de bactérias fossilizadas em um meteorito marciano, acrescentou Renato com todo entusiasmo. Vai negar isso também, padre? Os extraterrestres não existem só porque a Bíblia não os cita nominalmente?

Renato já ia falar dos sumérios, que nos legaram um relato do Dilúvio milhares de anos mais antigo que o das Escrituras, quando Kássia gentilmente o cutucou. Leonardo prosseguiu:

- Desculpe nosso amigo, padre. Aliás, nem é nosso trabalho convencer o senhor, nem qualquer pessoa, de nosso ponto de vista. Queremos apenas analisar os fatos. E ouvir todas as opiniões, foi para isso que viemos ouvir o que tem a dizer.

- Já sabem o que penso de tudo isso. Agora vão!

Com isso, estava encerrada mais aquela entrevista. O padre ainda lançou um olhar mal humorado para Kássia, que usava calças compridas, e retirou-se. Já haviam reparado que apenas as mulheres mais jovens da cidade vestiam-se daquela forma, e sabiam que uma razão para aquilo era exatamente os sermões de padre Reginaldo, que não admitia “pouca-vergonha” por parte de nenhum de seus fiéis, nem desvios do que chamava de caminho da virtude. Depois de enfrentarem outros olhares hostis e ameaçadores por parte de beatas e outros devotos que os esperavam fora da igreja, entraram na perua e foram ao encontro dos amigos.

Estavam no começo da noite no pequeno hotel da cidade conversando e verificando os dados que haviam coletado:

- Esta cidade parece parada no tempo, reclamou Renato.

- Nosso amigo é sempre muito radical, mas agora estou com ele, disse Kássia. Imagine, as mulheres e senhoras ficam me encarando e olhando feio só por causa de como me visto! Sentiu isso também, Célia?

- Acho que é isso que faz uma viagem dessas valer a pena, respondeu ela. Conhecer outras pessoas, outros lugares. O Brasil é tão grande, e é difícil imaginar que em nosso próprio país ainda exista gente que vive assim, não é?

Marcos, estava no quarto comunicando-se com colegas por e-mail. Haviam levado o Zé do hospital para um lugar que o mesmo chamava de casa, um barraco nos fundos da casa de um vizinho do seu Waldir. Lá, tiveram a chance de examinar o único documento que ele possuía, uma identidade já muito desgastada pelo tempo. Era isso que Marcos usava em sua pesquisa. Subitamente, desceu as escadas correndo, e veio a seu encontro. Disse, quase sem fôlego:

- Vocês não vão acreditar no que encontrei sobre nosso amigo Zé da Pinga!

Rapidamente enfiou um disquete no laptop de Renato, e abriu o documento. Todos puderam ver a cópia de uma identidade militar datada dos anos setenta. Ali constava o nome verdadeiro de Zé da Pinga:

- José Amaro de Freitas, chegou a patente de tenente na Força Aérea, serviu a maior parte da carreira no Pará, e deu baixa em 1988. Esse nome nos diz algo?

Leonardo estava sem entender nada. Porém Renato, dono de uma memória prodigiosa para fatos ufológicos, logo pareceu ter um tipo de “iluminação”. Digitou mais rápido do que os colegas podiam ver algum comando no teclado, e logo outro documento luziu na tela:

- O na época sargento José Amaro de Freitas foi um dos participantes de um projeto da Aeronáutica no sul do Pará que investigou ovnis no final de 1977, e que ficou conhecido como Operação Prato!

Todos conheciam o caso. O comandante da Operação dera uma entrevista há poucos anos, detalhando tudo que havia acontecido na época. Infelizmente, mais dados sobre a mesma nunca foram revelados, nem mesmo a grande quantidade de filmes e fotos que os militares haviam obtido, e que deviam continuar ocultos nos arquivos da Aeronáutica.

- Meu Deus, estão achando que José veio para cá... para fugir de algo com que tiveram contato naquela época?

A pergunta de Célia tinha razão de ser. Entre os relatos que haviam colhido, alguns diziam que Freitas, ou Zé da Pinga, chegara a ter numa ocasião meia dúzia de seguidores, e iniciaram uma espécie de culto extraterrestre. Logo, porém, todos sumiram menos Zé que, abandonado, passou a beber e vagar pela periferia da cidade.

- Gente, esse caso está ficando cada vez melhor!

Por incrível que possa parecer foi Marcos, o mais ponderado do grupo, que disse isso cheio de entusiasmo. Decidiram que deviam voltar a encontrar Zé o mais depressa possível.

No dia seguinte, forma procurar o Zé, mas não o encontraram em casa nem em lugar nenhum. Seu Waldir não sabia o que fora feito dele, até que uma outra vizinha disse que três jipes haviam chegado no meio da noite:

- Saiu um monte de gente armada e com roupas do exército, parece, e levaram o Zé. Pareciam muito bravos com ele...

Procuraram pela cidade, e finalmente chegaram a delegacia. De fato, três veículos com o tradicional verde, e com inscrições da força aérea, estavam estacionados defronte a mesma. Dois soldados montavam guarda na entrada, e não permitiram que entrassem.

Suas reclamações e protestos deveriam ter sido ouvidos lá dentro, pois logo o capitão Flávio saiu, acompanhado por um homem em uniforme militar, que parecia oficial. Entretanto, tal como os soldados de guarda, o mesmo não trazia qualquer insígnia ou identificação na roupa. Foi Flávio que disse:

- Lamento, mas tenho ordens de cooperar com o pessoal da FAB nesse caso. Devo pedir que se retirem daqui.

O outro não dizia nada, apenas os observava com um misto de indiferença e aborrecimento. Marcos respondeu:

- Capitão, o senhor é a única autoridade nesta cidade que mostrou um pouco de ética e respeito, tanto por nós quanto pelas pessoas que têm testemunhado esse fenômeno. Vai nos abandonar agora?

Gritos, de repente, foram ouvidos vindos de dentro da delegacia. Kássia e Renato, indignados, responderam quase gritando:

- Estão batendo nele? Estão maltratando o Zé? Mas o que ele fez?

- Vou ter que pedir novamente que saiam, por favor, do contrário os prenderei por desacato.

Flávio falou isso com firmeza, mas percebia-se em seu tom de voz que no íntimo a situação lhe repugnava. Sem alternativa, o grupo entrou na perua e afastou-se dali. Logo cruzaram com o carro do jornal que vinha em sentido contrário, e os repórteres fizeram sinal que os seguissem. Chegando a sede do mesmo, todos entraram, e Maria foi logo dizendo:

- Aquele safado! Foi Eduardo quem chamou os militares! Parece que tem algum conhecido ou parente oficial.

Gustavo ainda acrescentou:

- Quando descobrimos que prenderam o Zé, já era tarde demais. Dá uma raiva não poder fazer nada!

Eles pareciam hesitar em dizer algo que estavam guardando. Finalmente, Maria acrescentou:

- De manhã, logo depois de voltarmos da delegacia onde também não nos deixaram entrar, havia um envelope enfiado por baixo da porta. Vejam só...

Dentro do envelope, havia uma série de documentos, listas de compras, valores e números de telefone, tudo com carimbo da prefeitura. Todos puderam ver que aquilo era a prova que o prefeito havia beneficiado empresas de amigos e parentes na preparação da festa de emancipação da cidade, e em obras superfaturadas feitas para a ocasião. O anônimo autor da denúncia havia trabalhado direito.

- Quase direito demais, será que ele mesmo teria participado da negociata, perguntou Gustavo.

- O que vão fazer com isso, disse Leonardo.

Marcos teve uma idéia. Conhecia muita gente da imprensa em Campinas e cidades vizinhas. Logo cópias dos documentos eram enviadas via faz e e-mail para as redações de diversos jornais da região. O explosivo material seria publicado no dia seguinte.

- Com isso, pegamos o prefeito, disse Renato. Mas o que podemos fazer pelo Zé?

Maria disse que só havia uma pessoa a quem recorrer:

- Padre Reginaldo. Esperem, eu sei que ele não é muito de ficar do nosso lado, mas também sei que quando o próprio prefeito e alguns vereadores foram colhidos por denúncias que nosso jornal fez, ele ficou do nosso lado. Deve ser a pessoa mais respeitada da cidade, até o prefeito não se atreve a ignorá-lo!

Claro que Reginaldo não concordou com eles a princípio. Relutou muito em usar sua influência para ajudar o Zé, e ponderou, com o que a maioria do grupo concordou, que os militares dificilmente o ouviriam.

Finalmente o convenceram, e o padre disse que mais tarde, quando fechasse a igreja, iria a delegacia e tentaria fazer algo. Todos ficaram na expectativa, e duplas foram escaladas para alternadamente vigiar a casa onde a mesma funcionava, a fim de evitar que os militares fugissem com o Zé.

Renato e Célia faziam sua ronda cuidadosa por volta das nove da noite. As ruas, como era habitual, estavam quase vazias, rotina de cidade pequena. Caminhavam nas proximidades da delegacia, quando a moça apontou para o céu:

- Olha! Tem um ponto de luz lá no alto que está se movendo!

Renato percebeu, e apontou a câmera. O ponto de luz foi crescendo, até que deixaram de vê-lo depois de mergulhar atrás da delegacia. O lado da rua em que a mesma se encontrava era formado por uma série de terrenos baldios, e contornava um morro. Era por trás do mesmo que a estranha luz tinha sumido.

Resolveram se separar e ir investigar. Renato seguiu pela outra travessa que também contornava o morro, enquanto Célia voltava pela direção em que tinham vindo. Por isso, nenhum dos dois percebeu padre Reginaldo caminhando na direção da delegacia.

O padre vinha apoiando-se em seu inseparável guarda-chuva, maldizendo-se por haver concordado com os repórteres e ufólogos. Afinal, os mesmos pareciam sempre estar correndo atrás de confusão. Mas, apesar disso, não concordava em absoluto que alguém fosse preso de forma arbitrária, mesmo que fosse um mendigo como o Zé da Pinga. Resolveu que seria muito duro com Flávio e os militares. Estava quase chegando, quando percebeu um foco de luz intenso vindo de dentro da delegacia.

Aquilo definitivamente era fora do normal, e o padre ficou alerta, aproximando-se devagar. Estava a ponto de ficar adiante da porta, quando viu uma sombra que parecia sair da mesma:

- Alô, disse suando frio. Quem está aí?

Nenhuma resposta. Resolutamente, depois de segurar a grande cruz que trazia ao peito, avançou mais três passos e ficou diante da porta. Arregalou os olhos e ficou boquiaberto com o que viu, certificando-se em décimos de segundo que levaria aquela imagem consigo para o túmulo.



Flávio, seus auxiliares e os militares estavam caídos ao chão, parecendo mortos. No centro da sala, havia algo, ou alguém... padre Reginaldo não sabia descrevê-lo. Aquilo deveria ter um metro e vinte de altura, uma cabeça grande em relação ao corpo, e o que pareciam dois grandes olhos negros. Foi tudo que o padre conseguiu distinguir diante da forte luminosidade que inundava o ambiente.

Ficou ali, paralisado, sem conseguir esboçar qualquer reação. O ser virou-se para ele, e a seguir para outra porta, de onde saiu, cambaleando, o Zé da Pinga. O mesmo passou pelo padre depois de lançar-lhe um rápido olhar, seu rosto muito machucado pelas agressões de que havia sido vítima. Cruzou o umbral da porta e afastou-se pela rua.

Renato e Célia vieram correndo, um de cada lado, depois de avistarem um brilho estranho sobre a delegacia. Renato sentiu um calafrio ao ver um vulto cambaleando pela rua, e arrepiou-se novamente ao reconhecer o Zé, todo machucado e sangrando. Perguntou-lhe como havia saído, sem obter resposta. Quando ouviu o grito de Célia, pediu que ele ficasse ali, e correu os pouco mais de cinquenta metros de volta a delegacia.

Célia estava ajudando padre Reginaldo, que estava caído, apoiado na parede da casa. O homem parecia abobado, não falava coisa com coisa. Lá dentro, os militares continuavam caídos, mas Flávio já tentava se levantar, enquanto perguntava, gaguejando:

- O..., o q-que... acont... aconteceu?

Logo Marcos chegava com Kássia para render os companheiros, e ambos se mostravam espantados com o que havia acontecido. Finalmente, o padre disse:

- Eu vi... eu vi...

- O que o senhor viu, padre?

Renato repetiu a pergunta em tom febril, mas Reginaldo só falava isso. Finalmente, o jovem ufólogo lembrou-se do Zé, levantou-se e olhou na direção em que o havia deixado, mas:

- Cadê ele? Cadê o Zé? Eu o deixei bem ali! Estava todo machucado, esses canalhas devem tê-lo espancado horas a fio!

Resolveram sair para procurá-lo. Marcos levou Flávio e Kássia no carro, enquanto o resto seguiu a pé. Mais de meia hora depois, este último grupo encontrou o mendigo caminhando a esmo, perto de um bosque. Célia gritou:

- Zé, espere! Queremos ajudá-lo!

Ele se voltou, e todos se arrepiaram novamente ao ver seus ferimentos. Apesar de ainda estarem amparando o padre, apressaram o passo. Zé estava a ponto de entrar no bosque, quando avistaram os faróis do carro se aproximando. Renato gritou novamente:

- Zé, espere, podemos ajudar, vamos proteger você!

Nisso todos ficaram ofuscados por um brilho intenso que subitamente saiu do bosque. Renato virou-se assustado, enquanto que, protegendo os olhos, Célia e padre Reginaldo viram um cone de luz cair sobre Zé. Ele olhou novamente para o grupo, e todos se espantaram, pois seu rosto estava limpo, sem um arranhão!

- Como, como é possível?

Padre Reginaldo olhava sem acreditar. Renato, recuperado do clarão, apontou a filmadora. O cone de luz que envolvia o Zé desapareceu, e ele mergulhou no bosque. Marcos passou a toda por eles, tentando alcançar o mendigo. Subitamente, as luzes do carro se apagaram, e o motor do mesmo deixou de funcionar. Parou bem antes de chegar ao bosque.

Célia e Renato deixaram padre Reginaldo, que fora acometido por uma crise de tremedeira, e saíram correndo. Os ocupantes do carro também abriram as portas e tentaram alcançar o bosque, mas um novo clarão, emergindo por entre as árvores, fez com que todos parassem.

Um objeto, de mais de dez metros de diâmetro e intensamente iluminado, começou a se elevar. Aquela única massa luminosa subiu rapidamente até ficar com um tamanho semelhante a lua cheia, quando disparou para o céu com uma velocidade extraordinária. Tornou-se um pontinho de luz, e desapareceu em instantes sem deixar vestígios.

Voltaram na manhã seguinte bem cedo. Todos ficaram estarrecidos, mesmo padre Reginaldo, ao encontrar um grande círculo de grama revirada e em alguns pontos queimada, na clareira bem no centro do bosque. O círculo tinha um diâmetro de pouco mais de dez metros. Dentro do mesmo, quatro impressões redondas, obviamente resultantes de um grande peso. A terra dentro das mesmas estava bem compactada, confirmando aquela observação. Leonardo apressou-se a recolher amostras de toda a área, ajudado pela irmã, Kássia.

Os moradores das redondezas foram unânimes em confirmar as observações do grupo. Estavam todos muito assustados, e recorriam ao folclore ou a crenças religiosas para explicar o que ocorrera.

Os militares, depois de aparecerem no local pela manhã e rapidamente darem uma olhada fugaz em tudo, foram embora. Suas identidades e a unidade a que pertenciam não puderam ser determinadas.

Subindo nas árvores que rodeavam a clareira, encontraram diversas folhas queimadas, e também recolheram amostras para análise. O contador geiger que trouxeram, contudo, não acusou presença de radioatividade.

Padre Reginaldo, depois de passar boa parte da noite trocando idéias com Renato, e diante das evidências, fez um sermão muito diferente naquela manhã. Disse que a obra de Deus não pode ser nunca diminuída por nossas limitadas percepções, e que, segundo a velha sabedoria popular, “há muito mais coisas no céu e na terra do que sonha nossa vã filosofia”.

Todo o grupo de ufólogos fez questão de assistir a missa, e retribuíram com alegria o sorriso de padre Reginaldo. Haviam conquistado um importante aliado, o que já compensava a viagem e toda aquela confusão.

Os jornais de toda a região publicaram a documentação, comprovando as falcatruas do prefeito Eduardo. Dias depois, souberam que a câmara de vereadores, em tempo recorde, o havia afastado, e um processo criminal para que devolvesse os recursos de que havia indevidamente se apropriado fora instalado na comarca municipal.

A identidade da pessoa que enviou a documentação não foi conhecida por algum tempo. Semanas depois, Maria lhes enviara uma edição do jornal, em que Flávio explicava as razões de seu pedido de demissão. Segundo o ex-chefe de polícia, “tinha que acertar contas com o passado, pagar por coisas das quais sabia, mas que não fiz nada para impedir”. Foi convocado como a principal testemunha de acusação contra o prefeito, mas a oposição já reclama da demora no processo, e não concorda que o mesmo seja conduzido por um juiz que é primo do ex-prefeito.

Apesar de terem prolongado sua permanência em Salto do Avanhandava por mais dois dias, e buscado em todos os lugares possíveis, não havia sido encontrado qualquer sinal do Zé da Pinga, ou José Amaro de Freitas, antigo tenente da FAB, e que quando era sargento, por volta de 1977, teve contato com “algo” inexplicável no sul do Pará. Nunca mais ninguém da cidade viu ou ouviu falar nele, e muitos são os que agora sentem muitas saudades desse personagem. Outros, ao contrário, o consideram apenas uma lenda, “o mendigo que foi raptado por um disco voador”. A opinião de Renato, contudo, que escreveu o artigo que foi um dos destaques de capa da principal publicação brasileira do gênero dois meses depois, era bem diferente. O texto terminava assim:

“Apesar deste caso continuar sob investigação, não sabemos se algum dia realmente teremos alguma notícia de Freitas, ou como era conhecido, Zé da Pinga. Ele teve contato com  algo muito além de nossas pobres concepções, na Amazônia do final dos anos setenta. Talvez não estivesse preparado para tanto, pois os relatórios a que tivemos acesso dão conta que ele simplesmente sumiu logo após a Operação Prato ser desativada. Apesar de procurado, só foi encontrado pelos militares, aparentemente, quando da ocorrência dos fatos descritos neste artigo. Seu paradeiro permanece ignorado.

Quanto ao que dizia, sobre a chegada “deles”, só o que nos resta é aguardar...

Contudo, e se os leitores me permitem especular um pouco, talvez aqueles que o contataram em 1977 perceberam seu erro, perceberam o que o contato fez com o Zé, e finalmente vieram procurá-lo. Acreditamos que, vendo a forma como ele foi tratado por seus semelhantes, tenham concluído que levá-lo com eles fosse a melhor alternativa. Assim, é possível que Zé da Pinga seja, afinal, o primeiro embaixador da Terra em algum mundo distante. Fazemos votos, então, que fale de nós, de seu mundo, com a mesma tolerância, respeito e benevolência que muitos lhe negaram”.


Obrigado a todos que sempre me apoiaram, e faço aqui um pedido: continuem a fazer o que fazem! Nos leiam e nos apoiem, pois são vocês que fazem tudo valer a pena!



Como disse, Filhas das Estrelas continua disponível como e-book, cliquem aqui para adquiri-lo na Amazon.



Não deixem de seguir a Editora Estronho, @estronho.

E nos sigam também: @renatoa.azevedo , @corujiceliteraria , @2sobrevoandoporai .

Até a próxima!