Samuel, como sempre, estava cismado.
— Essa P. desse carro tá querendo aprontar alguma comigo!
Daniel dirigia em meio ao tráfego pesado para a Festa do Peão. Era sempre a mesma história quando saíam com o Fusca de Vó Nena.
— Dá para relaxar?
— Olha, olha agora! – disse Samuel, apontando para os mostradores do painel. – Ficaram com luz vermelha, como ele faz sempre quando estou aqui!
O irmão mais velho desviou os olhos por um instante, e constatou que o velocímetro e o marcador de combustível de fato exibiam uma leve luminescência vermelha. Atento ao trânsito pesado, respondeu:
— Mas Samuel, o que você queria? Conhece muito bem a história da Vó com esse carro! Falando nisso, liga prá elas já que não tá fazendo nada!
Samuel ia dizer alguma coisa, mas desistiu. Pegou o celular e olhou pela janela, tentando se esquecer do quanto não gostava daquele carro. Tatiana logo atendeu:
— Oi, Samuel!
— Coloca na viva-voz – disse Daniel.
Samuel fez isso, e o irmão perguntou:
— Tati, tudo bem?
— Tudo, e vocês?
— Quase chegando, e como sempre Samuel está de birra com o carro – riu Daniel.
— Essa P. desse carro é que tem birra comigo! – protestou o irmão mais novo.
Ouviu-se uma voz indignada:
— Mas que P. de linguagem é essa, Samuel, seu moleque! – Vó Nena gritou entre duas fortes tossidas. — Essa é a M. de educação que sua mãe te deu?
Daniel riu mais ainda, e perguntou:
— Vó, como a senhora está?
Nena tossiu de novo, ouviu-se também um espirro, e ela respondeu:
— Esses médicos filhos de uma P. já deveriam ter inventado um remédio contra essa M. de gripe, meu filho! Tô que não me aguento! E falando nisso, tá cuidado direitinho do Fusca?
— O Poizé tá excelente, Vó! Só o Samuel que não gosta muito dele...
Ouviram-se as risadas de Nena e Tatiana, e a anciã respondeu depois de nova tossida:
— O Fusca também não gosta muito do Samuel, he, he, he... meus netos, tomem cuidado.
— Tati, teve mais alguma visão? – perguntou Samuel tentando mudar de assunto.
— Não, nada, só aquela – disse a vidente. — Meninos, cuidado, duas forças muito poderosas estão a ponto de se enfrentar, e tudo aponta para a Festa do Peão.
— Pode deixar, amor – respondeu Daniel. – Trouxemos tudo que podemos precisar, e nenhuma coisa ruim vai escapar da gente.
— Qualquer coisa vocês liguem, meus netos – disse Nena.
Todos se despediram no momento em que entraram com o Fusca, um raro modelo azul monocromático ano 1962, no enorme estacionamento do evento. Rodaram um pouco pelos corredores apertados e Daniel reparou quando, em dado momento, passaram por um casal e três filhos, dois meninos e duas meninas, a pé. O garoto menor apontou o carro e deu um soco no braço do irmão, para em seguida o mais velho sair correndo atrás do mais novo. Até Samuel deu risada, e após mais algumas voltas viram um carro liberando uma vaga. Depois que ele saiu Daniel manobrou e estacionou o Fusca de ré, mas Samuel olhou para o lado e disse:
— Tá apertado aqui, não vai querer que amasse a porta no carro do lado.
— Refaço a manobra, então.
Daniel saiu um pouco da vaga, virou o volante, e dessa vez o Fusca encaixou-se bem. Desligaram no momento em que um utilitário esportivo compacto parou na frente deles. O motorista baixou o vidro e gesticulou. Daniel saiu primeiro e fez sinal negativo com a mão.
Porém, o outro resolveu insistir. Tirou o chapéu e o abanou, mas os dois irmãos continuavam a ignorá-lo enquanto pegavam as mochilas no banco de trás.
— Ô, sujeito, cê tava saindo! – berrou finalmente o outro.
— Não estava, amigo – respondeu Daniel. – Só manobrando para estacionar melhor.
O motorista do jipe olhou para o lado, e eles repararam na garota também de chapéu. O sujeito voltou a gritar com eles:
— Caramba, tô circulando aqui faz tempo, tira essa M. daí para eu estacionar!
Samuel, pela primeira vez, olhou para o Fusca e sorriu. Do painel emanava um brilho vermelho mais forte. Daniel, por sua vez, tentou argumentar:
— Olha colega, estamos chegando e já estacionamos. Vamos tratar dos nossos negócios, e não temos tempo a perder.
— Pois vão perder é essa tranqueira que puseram na minha vaga, seus frouxo!
O sujeito arrancou com o jipe, andou poucos metros, freou e engatou a ré. Os dois irmãos se afastaram, observando tranquilamente.
O jipe veio e bateu no Fusca, amassando o para-lama e o para-choque esquerdos e um pouco do capô. O motorista do jipe olhou pela janela, e estranhou os dois irmãos de pé a pouca distância, simplesmente observando. Ele olhou para a moça a seu lado, engatou a primeira, afastou-se um pouco, e voltou de ré pela segunda vez.
No momento em que o jipe ia novamente acertar o Fusca, o capô deste abriu-se e em seguida se fechou contra a traseira do utilitário esportivo. O motorista do jipe olhou pela janela, e abriu a boca espantado. De dentro do Fusca emanava uma luminosidade vermelha, visível também nos faróis, e o carro continuava a abrir e fechar o capô, dando verdadeiras mastigadas na traseira do jipe. A lataria do utilitário ficava cada vez mais amassada, e os dois ocupantes começaram a gritar.
— Mas que P. é essa!?
— Acelera, C., vamos fugir daqui, tá esperando o quê?
— Tô acelerando, mulher, tô acelerando!
O Fusca segurava o canto esquerdo do utilitário com a roda traseira deste no ar. Finalmente, após arrancar um pedaço da lateral traseira, abriu o capô e o jipe saiu em disparada, guinchando os pneus.
Daniel e Samuel simplesmente observaram tudo sem fazer nada. O Fusca havia saído um pouco da vaga, e recuou de ré enquanto sua lataria amassada retornava ao formato original. Quando parou em seu lugar, não havia mais qualquer sinal do incidente, exceto o pedaço do jipe no chão.
Samuel se aproximou, abaixando-se para apanhar a peça de metal e dizendo:
— Esses são os únicos momentos em que gosto desse carro.
Como que respondendo, os faróis do Fusca se tingiram brevemente de uma luminescência vermelha. O irmão mais novo parou, encarou o carro, e finalmente desistiu. A peça de metal ficou no chão.
Samuel voltou para junto de Daniel, que ria muito, e os dois rumaram para a entrada da Festa do Peão.
O evento estava lotado, com presença de pessoas de todas as cidades da região, e até vindas de outros estados. Na arena peões se exibiam montando cavalos e touros bravos, e na feira e na praça de alimentação havia muito o que ver e muito onde gastar.
O barulhento grupo que se acomodou em um dos stands de churrasco no meio da tarde, entretanto, queria consumir outro tipo de mercadoria. Todos se vestiam como autênticos peões de boiadeiro, mas seu interesse estava nas moças que passavam. Alguns do grupo já aproveitavam a companhia de garotas em roupas típicas, short ou calça jeans, camisa e chapéu, mas Fernando dizia que ainda estava esperando a dele.
E nesse momento a viu passando: morena, bronzeada, vestindo um short pequeno e justo, top, chapéu e botas. Ele se virou para os amigos, que exibiram sorrisos de aprovação, levantou-se do banco e aproximou-se da moça. Enlaçou sua cintura e foi logo dizendo:
— A moça tá desacompanhada, tá?
A morena virou o rosto para ele, e Fernando teve a impressão de ver um brilho diferente em seus olhos. Mas então ela abriu um sorriso e respondeu:
— Não estou mais.
Ela agarrou-o pela nuca e o beijou, enfiando a língua em sua boca com vontade. Os amigos berraram em aprovação, e a menina puxou Fernando para um canto, não muito longe da barraca onde sua turma comia e se bolinava.
A morena parecia insaciável, e Fernando ria com a sorte que teve.
— Mas você é gostosa mesmo, hein?
Ela acariciava todo o corpo do rapaz, arrancou sua camisa que estava presa na calça, e disse:
— Meu nome é Sheila, e o seu?
— Fernando, fofa. Mas você quer aqui mesmo? Assim?
Sheila o provocava, passava as mãos em seu corpo, e conduziu a mão dele para sua bunda, enquanto dizia:
— Por quê? Você não quer?
Em resposta, o peão de asfalto a agarrou, apalpando todo seu corpo. Sheila sorria enquanto ele beijava seu pescoço, depois tirou o chapéu do rapaz, segurando-o pelos cabelos e o beijou.
Fernando poderia jurar que jamais havia sido beijado daquela forma. Sheila parecia querer comê-lo vivo.
E foi quando sentiu. Os lábios da morena começaram a esquentar, um fogo parecia vir de dentro dela, e passar através do beijo para Fernando. Mas o que sentiu não era prazer.
O terror se espalhou por seu ser. Tentou gritar, mas a mulher o segurava com firmeza incomum, beijando e sugando sem parar. O tormento não tinha fim.
E então Fernando não sentiu mais nada.
Os gritos aterrorizantes chamaram a atenção de Samuel e Daniel, que haviam parado em uma barraca na praça de alimentação para um lanche. Sequer haviam tomado café antes de sair, apressados por Vó Nena diante da visão que Tatiana tivera, e se aprontavam para saborear grandes hambúrgueres, quando um tumulto lhes chamou a atenção.
Chegaram correndo, abrindo caminho entre a multidão. Garotas choravam, e alguns dos rapazes pareciam que iam borrar as calças em breve. Um vomitava no canto, quando os dois irmãos viram o motivo da balbúrdia.
Um corpo estava estirado no chão, vestindo roupas novas de caubói. Entretanto, o cadáver estava seco, com aparência mumificada. Samuel rapidamente tirou a câmera da mochila e bateu várias fotos, depois mudou a configuração para filmar a cena.
Enquanto isso Daniel interrogava as pessoas próximas:
— Alguém viu o que aconteceu?
Algumas pessoas evitavam encará-lo, outras saiam apressadas. Enquanto Samuel continuava a registrar o cadáver e procurar alguma evidência ao redor, Daniel repetia suas perguntas.
— Ele... ele parecia feliz, saiu com uma morena gostosa que chegou..
Daniel se virou e encarou um rapaz jovem, que disse ser amigo do morto. Conversou rapidamente com ele, mas era basicamente tudo que sabia. Observando uma e outra pessoa apontando a câmera do celular para o cadáver, ele perguntou ao rapaz:
— Será que ninguém tirou foto dessa mulher?
Outro sujeito da turma amparava o que havia vomitado, enquanto dois ainda estavam com as garotas que haviam conhecido. Diante da pergunta de Daniel, uma delas apanhou o celular e começou a mexer no aparelho. Finalmente passou a olhar fixamente para a tela, acompanhada das amigas que a rodeavam.
Daniel abriu caminho e ficou diante da menina. Ela percebeu, ergueu os olhos, e por fim virou a tela do celular para ele.
Aquele cavalo estava bem mais agitado que de costume, e quatro homens não conseguiam segurá-lo. O bicho relinchava e escoiceava, enquanto os peões tentavam com muito esforço introduzi-lo no cercado por onde seria conduzido até a arena.
Não muito longe dali um jovem casal passeava com a filha de quatro anos. A menina segurava a mão da mãe, e virava a cabeça para todos os lados, olhando o movimento.
O cavalo continuava a escoicear. Um grupo de pessoas assistia a cena a pouca distância.
A menina andava com um cavalo de pelúcia na outra mão, mas o brinquedo caiu, e ela se virou, soltando-se da mãe. Esta a chamou pelo nome, mas a menina correu para apanhar o bicho de pelúcia.
O cavalo finalmente acertou um coice de raspão, derrubando um dos homens. Os demais não conseguiram segurá-lo, e o animal saiu em disparada. O grupo de pessoas que assistia se dispersou, as pessoas corriam apavoradas e o cavalo passou galopando por elas.
A menina apanhou o cavalo de pelúcia, mas foi derrubada por pessoas que fugiam, assustadas com o cavalo que se aproximava.
Os pais da menina gritaram, paralisados pelo pânico, observando o animal se aproximar de sua filha.
Nesse instante uma moça loira, linda, usando um vestido curto delicado, chapéu e botas, se interpôs entre o cavalo em disparada e a menina.
O animal avançou mais alguns passos e parou diante da loira. A moça o olhava fixamente, e o cavalo baixou a cabeça. A loira o acariciou, enquanto o casal se aproximava correndo e tomava a menina nos braços.
— Obrigado, muito obrigado, moça! – disseram eles.
A loira os olhou com ar indiferente, virou-se e fez uma carícia final no cavalo. Os peões chegaram correndo nesse momento, olhando a cena sem conseguir acreditar.
A moça lançou um último olhar para o cavalo e se afastou andando, desaparecendo em meio à multidão.
O casal e sua filha seguiram em outra direção, enquanto os peões não tiveram qualquer dificuldade em conduzir o cavalo de volta à arena. Um e outro ainda olhava para trás procurando a loira, e comentavam entre si perguntando como ela pôde parar um animal bravo como aquele.
Na Festa do Peão também acontecia uma exposição com as novidades da moderna indústria agropecuária. Tratores, máquinas e implementos estavam em exposição e, assim como o restante do evento, o local também estava apinhado de gente.
Carla era uma das promotoras, e por mais que morresse de vontade de estar com as amigas, que aproveitavam a festa vestidas a caráter, já havia parado de reclamar do conjunto blazer e saia que vestia. O dinheiro que pagavam fazia valer a pena, e ela aproveitava um intervalo para esticar as pernas depois de comer algo.
Lembrou-se da morena de short e top que já havia chamado sua atenção quando passou várias vezes por seu estande, e Carla pensou em como seria bom encontrá-la. Suspirou com a recordação dos olhares que trocaram e já estava voltando, quando seu sonho se tornou realidade.
A morena surgiu de trás de um dos enormes tratores, olhando para Carla com desejo.
— Oi, sou Sheila – disse.
— Oi — respondeu Carla.
A morena apanhou sua mão, conduzindo-a para um canto sossegado. Carla olhou o relógio e viu que ainda tinha alguns minutos, e afinal ela tinha direito de aproveitar a festa. Conversaram um pouco enquanto andavam e, ao constatar que ninguém mais as incomodaria, Carla beijou Sheila com vontade
A promotora passeava com as mãos pelo corpo da morena, que retribuiu seus carinhos. Parecia que uma queria devorar a outra.
— Alguém viu a Carla?
O gerente da revendedora de tratores estava furioso. A promotora havia saído para seu intervalo e ainda não retornara.
Um grito aterrorizante veio de trás de uma colheitadeira exposta em outro estande. As pessoas correram para lá e não acreditaram no que viram.
— Mas que P. é essa ceufi?
— É selfie, Vó – explica Tatiana. – A mesma coisa que autorretrato.
— Esse povo tá é cada vez mais besta, isso sim! – comenta a anciã.
As duas observaram a foto enviada pelos rapazes, enquanto Samuel explicava:
— Faz uns vinte minutos soubemos de outro zunzunzum, e descobrimos um segundo corpo, uma moça que era promotora num estande da feira agropecuária, aqui ao lado.
— Algumas pessoas disseram que a moça estava no intervalo e se engraçou com uma morena gostosa – acrescentou Daniel.
— Sei, morena gostosa – comentou Tatiana.
— Amor, você sabe que só tenho olhos prá você.
— Vamos deixar de sem-vergonhice enquanto a gente caça, vocês dois? – disse Vó Nena entre duas tossidas.
— Daí demos sorte, pois uma das meninas do primeiro grupo fotografou o tal Fernando saindo com a morena, e quando mostramos essa foto para as testemunhas do segundo caso, confirmaram que é a mesma mulher.
— Além disso, soubemos de outra coisa estranha – comentou Samuel. – Um cavalo desembestou para cima de uma menina pequena, e uma loira também gostosa... eu posso comentar, viu, mano? Enfim, essa loira apareceu de repente e amansou o bicho.
Samuel fez uma pausa, e prosseguiu:
— Tipo, amansou mesmo! O cavalo era para ser montado durante a competição dos peões, mas ficou manso, não serve mais pro rodeio!
Ouviram pelo telefone Vó Nena tossir bastante, e depois de alguns instantes a anciã, com voz rouca, disse:
— Meus netos, a primeira vagabunda deve ser uma súcubo
— Súcubo? – perguntou Samuel.
— É, um demônio que seduz e rouba a energia das pessoas – completou Nena. – E não faz diferença, homem, mulher, o que aparecer prá ela tá bom.
— E como matamos, Vó? – perguntou Daniel.
— Faca, espada, fogo, bala de prata, tudo isso serve, meus netos. Mas tomem cuidado, essas filhas da P. são muito fortes, resistentes, e principalmente vocês que são homens, podem cair no papo dela muito fácil. Não vão abrindo as calças aí prá qualquer uma, hein?
— Vó!? – disse Tatiana indignada.
Nena riu, bem como os rapazes, mas a anciã completou:
— Filha, essas pestes seduzem até quem já passou da idade! E até você, linda desse jeito, pode cair na conversa de uma delas.
— E essa outra, Vó? – perguntou Samuel. – Acha que a gente deve investigar?
— Pelo visto a Tati acertou, Samuel, meu neto – comentou Nena entre duas tossidas. – Não é normal uma moça amansar cavalo bravo assim, só de olhar e tocar. Fiquem de olho, vou mandar a Tati pesquisar, pois não lembro de cabeça qual criatura influencia bicho assim.
— Vamos ficar de olho, Vó – disse Daniel.
— E você se cuide! Principalmente com esses rabos-de-saia! – disse Tatiana.
— Eu te amo, Tati!
Daniel desligou, Tatiana segurou o celular contra o peito, preocupada com o namorado.
O grupo de quatro peões comentava o desempenho inédito de dois dos competidores do rodeio.
— C., nunca vi o Mané e o Severino montarem tão bem!
— Eles sempre foram uns frôxo – comenta outro. – Como é que agora tão quase na final?
— Ara, agora só quero saber é de pegar mulher. E olha só que boazuda essa...
Os quatro observaram a loira passando, de vestido delicado, chapéu e botas, e foram atrás. Percebendo como ela parecia perdida, olhando para todos os lados como se procurasse alguma coisa, um deles se adiantou e perguntou:
— A moça parece perdida, carece de precisá de ajuda?
A loira se virou, e os peões fizeram um semicírculo diante dela.
— Preciso ver os animais.
— Ah, então a moça falou c´as as pessoas certa! – um deles se adiantou, piscou para os demais, e passou o braço pelos ombros dela. – Como é seu nome, belezura?
— Ariele.
— Pois então, a gente é tudo peão, e podemos te levar pra ver os bicho. Prefere touro ou cavalo?
— Quero ver todos.
— Então, vem com a gente!
O peão saiu andando com Ariele, e seus três companheiros foram atrás. Nesse momento cruzaram com Samuel e Daniel, e o mais velho se virou, observando o grupo.
— Se essa loira não tiver cuidado, pode se dar mal... – comentou Samuel.
Daniel apanhou um objeto do bolso, colocou-o na palma da mão, e apontou os dedos para o grupo. A agulha da bússola se moveu, apontando para as pessoas que se afastavam.
— Não sei se é ela que pode se dar mal... vamos, mano!
Sem explicar, Daniel saiu correndo atrás dos peões. Samuel o seguiu a contragosto.
Dois dos peões estavam caídos ao chão, um deles gemendo e segurando o braço quebrado, o outro desacordado.
O terceiro tentava segurar a loira por trás, enquanto o quarto berrava com ela:
— Sua piranha! A gente só queria se divertir um pouco.
— Vocês são esses homens horríveis que maltratam os animais! Me larguem!
Ariele se debatia, mas o peão a segurava pelos braços. Nesse momento chegaram Daniel e Samuel.
— O que tá acontecendo aqui?
O peão encarando Ariele se virou, olhou os dois rapazes e disse:
— Vão embora, seus frangote, antes que sobre proceis também!
O que segurava a loira se distraiu, e Ariele aproveitou. Ergueu o pé e rapidamente o desceu, acertando a ponta do pé do homem com o salto de sua bota. O peão a largou berrando.
— Sua filha da p.!
Mas o homem não desistiu. Fez um movimento rápido com a mão para acertar um soco na loira, mas só conseguiu derrubar seu chapéu. Este esvoaçou e caiu perto de Daniel, que observou a peça de relance e disse:
— Essa não...
No mesmo instante eles foram derrubados por uma súbita ventania. O peão diante do irmão mais velho se virou, somente para ser acertado por um raio bem no peito. O outro se afastou pulando no pé que não fora pisado, de olhos arregalados para a loira.
Ariele flutuava a centímetros do chão, uma luz intensa saía de seus olhos, e raios crepitavam e saltavam de suas mãos. O vento, do qual ela própria era a origem, fustigava seus cabelos e só aumentava.
Os quatro peões por fim levantaram, olhando em pânico para a loira.
— Vão embora daqui, seus M., se quiserem viver! – berrou Samuel. Foi a senha para os quatro saírem correndo e desaparecer.
Daniel, enquanto isso, apanhou o chapéu da loira, e tentou se aproximar dela. Ele não ouvia os gritos de Samuel, enquanto avançava passo após passo. A moça ainda flutuava, e ele conseguiu se esquivar de alguns dos raios que saíam dela.
Finalmente, com um salto, Daniel colocou o chapéu na cabeça da loira. Os dois caíram ao chão.
A próxima coisa que o irmão mais velho viu foi Samuel quase em cima deles, apontando a arma com balas de prata para a moça e gritando:
— Mas que P. é você? Vou te mandar bala de qualquer jeito, então é melhor falar, se quiser que doa menos!
Daniel se levantou e segurou a arma, obrigando o irmão a baixá-la. Samuel não entendeu:
— Tá louco, mano? Não viu o que essa coisa fez?
— Vi sim, e foi você que não viu no chapéu dela.
— Chapéu? Mas que P. é essa de chapéu? – perguntou Samuel, virando-se para olhar para a loira, que já se levantava. – O que tem o chapéu...
— Obrigada por devolvê-lo a mim, estranho – disse a loira com uma voz suave e melodiosa. Ela tirou o chapéu, segurando-o junto ao corpo, e nesse momento Samuel viu.
Na parte da frente, acima da aba, havia uma estrela de cinco pontas cujo brilho variava como um caleidoscópio. A moça passou uma das mãos, e o brilho se espalhou por todo o chapéu. Em seguida, a forma luminosa se alongou e estabilizou, com a estrela em uma das pontas.
— Tá de brincadeira comigo!? – disse Samuel incrédulo.
— Soube no momento em que vi a estrela – comentou Daniel. – E quer guardar essa arma, cacete?
Samuel voltou a apontar a arma para a moça, que disse:
— Sou Ariele, e vim a este lugar para defender os animais de uma presença maléfica.
— A única coisa aqui que não é natural é você, moça – comentou o irmãos mais novo ainda com a arma apontada.
— P., Samuel, já mandei guardar isso! – disse Daniel. E, virando-se para a moça, disse:
— E você, fada, daqui a pouco vai ter um monte de gente aqui por causa dessa confusão. Melhor irmos conversar em um lugar seguro, pois já sabemos dessa presença maléfica.
Daniel apanhou sua mochila do chão e foi andando. Ariele e Samuel olhavam para ele incrédulos, quando o irmão mais velho se virou e acrescentou:
— Ou podem os dois ficar aí se encarando. Vocês que sabem.
Daniel se afastou. A varinha de Ariele voltou a ser um chapéu e ela seguiu o rapaz. Deixado sozinho, Samuel resmungou alguns palavrões, voltou a colocar a arma na mochila, e finalmente os seguiu.
— Fadas são seres elementais, como as iaras, alamoas, sacis e outros da nossa terra – explicou Vó Nena. A anciã deu uma forte tossida e prosseguiu: — Não são naturais do Brasil, então os daqui não gostam muito delas. Mas elas não são maléficas como os filhos da P. dos vampiros, que também são estrangeiros no nosso país.
— Vó, essa coisa causou uma confusão dos diabos quando perdeu o chapéu, que na verdade era a varinha dela – disse Samuel com ao telefone. – Tem certeza?
— Os poderes das fadas são enormes, Samuel – disse Tatiana, entrando na conversa. – As varinhas servem para canalizá-los, e também como controle no caso de fadas muito jovens, provavelmente como é o caso da que vocês encontraram.
A vidente fez silêncio por um momento, depois acrescentou:
— E o Daniel, onde está?
— Foi com ela ver mais uma etapa do rodeio.
— Ah, foi? Ele vai ver só quando voltar!
— Fica quieta, menina! – disse Nena. – Samuel, meu neto, a fada disse por que queria ver o tal rodeio? Perceberam alguma outra coisa anormal?
— O comentário que ouvimos por todo lado aqui é que dois peões que eram desconhecidos estão tendo muito destaque. Essa etapa é a semifinal, e parece que eles nunca foram tão longe.
Nena tossiu, e nem ela nem Tatiana falaram nada por alguns segundos. Então a anciã finalmente respondeu:
— Ás vezes, uma filha da P. dessas súcubos não suga a vítima de uma vez. Essas desgraças gostam de manipular, e pode acontecer de fazer isso com mais de uma pessoa, tirando proveito da energia delas.
— A senhora acha então que essa súcubo, a tal da morena gostosa, pode ter influenciado esses peões?
— E a fada pode ter sentido essa energia também – comentou Tatiana. – Acabei de sentir também, Samuel, foi só pensar na Festa do Peão que me veio essa imagem.
Tatiana ficou em silêncio, e depois acrescentou com voz trêmula:
— Imagem de muito sangue e morte, Samuel. E você e o Daniel no meio. Tomem cuidado, pelo amor de Deus!
— Vamos tomar, Tati. Mais alguma coisa, Vó?
— Quando forem matar a coisa, meu neto, tomem cuidado. A fada pode ajudar, mas não confiem muito.
Eles se despediram e Samuel desligou, guardando o celular. Pessoas passavam por eles, apressadas para chegar à arena, onde a semifinal começaria em poucos minutos. E ele voltou a ouvir comentários, aqui e ali, a respeito do incrível desempenho dos dois peões desconhecidos.
Samuel ajeitou a mochila e correu.
As arquibancadas estavam lotadas para a competição. Os peões se revezavam no lombo dos cavalos, tentando ficar os oito segundos regulamentares sobre os animais. Estes, por sua vez, escoiceavam e muito, dificultando ao máximo o trabalho dos competidores.
A cada peão que conseguia completar o tempo e pular da montaria o público berrava. Vários deles tinham sua própria torcida organizada, porém vários grupos já haviam deixado a arena, devido à desclassificação de seus favoritos.
Porém, dois dos concorrentes estavam chamando a maior parte da atenção, e também da torcida, na competição desse ano. Quando Mané foi anunciado, aquela parte da torcida que gosta de vibrar com um azarão se ergueu e gritou o nome do peão a plenos pulmões. Depois de se preparar, a porteira foi aberta e Mané tratou de se segurar sobre o cavalo, uma das mãos para cima e a outra firmemente segura na corda que contornava o corpo do animal. A multidão vibrava, e quando os oito segundos se passaram, Mané largou o cavalo, saltou e aterrissou com uma cambalhota.
O peão observou os auxiliares apanharem o cavalo bravo, e abriu os braços. O público vibrou, gritando seu nome.
— Esses brutos estão machucando os animais! Vou parar com isso!
Ariele, observando a cena entre a grade que separava a arquibancada da arena, estava furiosa. Daniel, a seu lado, observou Mané estender o braço e apontar para outro peão que se preparava. O locutor do rodeio anunciou o nome de Severino, e a multidão foi ao delírio mais uma vez.
— Vem cá, foram nesses dois mesmo que você sentiu algo diferente?
— O que importa? – perguntou a fada. – Os animais estão sofrendo.
— Importa que tem alguma coisa muito ruim aqui, e pessoas podem morrer.
— Não me importo com os humanos.
Daniel olhou para a loira, sorriu com o canto da boca e disse:
— Isso não combina com as histórias que contam sobre vocês.
Ariele se virou para ele, mostrando uma curiosidade que até então Daniel não havia visto, e perguntou:
— Que histórias?
Foi a vez do caçador ficar curioso. Perguntou:
— Nunca ouviu falar em contos de fada? Cinderela, Branca de Neve, Bela Adormecida, essas coisas?
— Estive pouco no mundo dos humanos, sou uma fada jovem.
Daniel viu aí uma oportunidade, e decidiu tentar obter mais informações.
— E o que veio fazer aqui? Só proteger os animais?
— Sim.
— Mas esse rodeio existe há anos, por que só agora? Vieram outras com você?
Ariele, que até então observava a arena e a multidão, tornou a encarar Daniel. Respondeu:
— Muitas de nós sentiram a escuridão, mas somente eu decidi vir, contra o conselho de minhas irmãs.
— Por que outras fadas não vieram? – perguntou Daniel enquanto voltava a apanhar os binóculos.
Na arena, Severino já estava pronto, e quando a porteira abriu o mesmo roteiro se repetiu. Oito segundos depois ele também saltava do cavalo e agradecia aos aplausos, mas rapidamente olhou nas proximidades do corredor que contornava a arena, parecendo procurar algo.
Subitamente o peão fixou o olhar em um ponto, e seguiu correndo para lá. Daniel moveu os binóculos, e conseguiu ver de relance Mané, o outro peão, com o braço ao redor da cintura de uma morena. A mesma da foto que haviam conseguido.
Daniel baixou os binóculos e pensou em sair correndo para lá. Ariele, nesse meio tempo, respondeu:
— Minhas irmãs acham que a escuridão já cresceu muito, e não devemos nos envolver.
Daniel olhou decidido para a loira, agarrou a mão dela e disse:
— Pois agora você está envolvida mesmo. Vem!
O caçador saiu correndo, desviando das pessoas, puxando a fada com ele.
Chegaram a um ponto do corredor circular que ficava entre a arena e a arquibancada, onde a passagem só era permitida a competidores e imprensa. Um leão de chácara estava ao lado de funcionários da Festa do Peão para desencorajar os mais atrevidos, mas isso não deteve Daniel.
— Somos da imprensa, colega, tá aqui a credencial.
Ariele observou Daniel mostrar ao homem um pedaço de papel. O portão foi aberto e eles puderam passar. A fada estendeu a mão, e o caçador deixou que ela visse o objeto.
— Mas isso é só um papel em branco – disse a fada.
— Mas não é qualquer papel – disse Daniel, guardando-o. – É um pedaço do mesmo bloco onde Getúlio Vargas assinou sua carta-testamento, o maldito.
Daniel, como parte de uma tradição familiar, parou e cuspiu no chão ao falar o nome do ditador, depois explicou:
— Muitas das desgraças que minha avó, eu, meu irmão e outros como nós combatemos começaram com ele, que tinha gente em seu governo trabalhando com magia negra, criaturas maléficas e coisas piores. Esse papel é encantado, e mostra qualquer coisa que pensemos. Mas não funciona com seres mágicos como você. E espere para ver o que a caneta que o bastardo usou faz!
Eles continuaram correndo, e nesse momento o celular de Daniel tocou. Atendeu e ouviu a voz do irmão:
— Cacete, cadê vocês?
— Estamos na área fechada, indo atrás do tal Severino. Ele viu o outro peão com a súcubo.
— E agora, como entro aí?
— Contorne por trás. E você tá com ela, né?
— Tá na mochila, afiada como sempre.
Daniel suspirou aliviado. Disse:
— Que bom, porque acho que vamos precisar!
Desligou, e continuou puxando a fada. Severino, bem distante deles, tomou um corredor lateral que se afastava da arena. Daniel começou a pensar que não conseguiria salvar os dois peões do encanto da súcubo.
Mané se sentia no paraíso. Sheila o agarrava e beijava como se quisesse devorá-lo.
— Ah, minha morena, você é muito gostosa, minha querida!
— Você que é, meu peão campeão – disse a morena sussurrando enquanto lambia sua orelha.
Mané se afastou, olhando nos olhos dela. Eram de uma cor que ele não se lembrava de ter visto antes. Na verdade, pensando um pouco a respeito, pareciam variar entre o castanho, o amarelo e o vermelho. Aquilo, por um instante, pareceu estranho demais, assim como o calor que ele sentia no corpo e nos lábios dela. Mas logo se esqueceu daquilo, voltando a agarrá-la e beijá-la.
— Minha morena, vou ganhar esse rodeio procê!
— Mas não vai mesmo, zé-ruela!
Severino, que havia ficado por um momento olhando a cena, correu e acertou um soco em cheio no rival. Toda sua raiva estava dirigida contra Mané, e só depois se veria com aquela vagabunda... não, espere... por que ficaria bravo com Sheila, a morena mais maravilhosa que já vira? Ia é acabar com aquele safado que tentava se aproveitar dela, isso sim.
Por sinal, o que mais queria era agarrar e traçar Sheila ali mesmo. Mas antes ia acabar com a raça do rival.
— Vou acabar com você, seu frôxo!
— É mesmo, seu fio d'uma quenga? Você e quem mais?
Mané ameaçou algumas vezes, depois deu um salto e caiu ao chão agarrado a Severino. Acertou vários socos no rival, mas recebeu vários golpes também. Tudo que queria era matar aquele safado para ficar com a morena.
Acabar com Mané para poder amar Sheila era tudo que Severino também queria. Enquanto os dois se engalfinhavam pelo chão, nem desconfiavam que trilhas com suas energias fluíam, indo direto para a súcubo. Sheila se deliciava com isso, e mal conseguia se conter na expectativa de qual deles iria sobrepujar o outro, e ganhar o grande prêmio.
O de ser sugado por ela, claro.
Tatiana voltava com mais uma bacia com água, para manter úmidos os lenços que punha na testa de Vó Nena. A febre da anciã havia voltado, mas logo que a vidente colocou o vasilhame sobre a mesinha ao lado da cama, sentiu tontura e precisou se segurar para não cair.
— Que foi, filha? – perguntou a anciã com voz fraca.
Tatiana estava trêmula, e precisou fazer um esforço enorme para se manter de pé. Conseguiu sentar-se na cama, e olhou com expressão lívida para Nena. Disse:
— Os meninos estão em perigo!
Daniel finalmente encontrou os peões, e ignorando por um momento a morena sorridente que parecia se divertir com a briga dos dois, correu para separá-los.
— Vocês parem com isso, idiotas! – berrou com toda a autoridade que conseguiu.
Severino o encarou com ódio, mas Mané agarrou Daniel pela jaqueta e o jogou para o lado. Os dois peões voltaram a brigar. Daniel caiu, depois se apoiou em um dos joelhos e observou a cena.
Lembrou-se nesse momento de Ariele. Olhou para a direção de onde havia vindo, e a fada estava apoiada em um dormente da cerca, parecendo sentir fraqueza.
— É isso mesmo, caçador? Trouxe uma fada para tentar me enfrentar?
Daniel virou o rosto, e Sheila surgiu diante dele. Assim, bem próxima, ele observou toda sua beleza e sensualidade. Sacudiu a cabeça, mas a voz da súcubo tornou a embalá-lo, enquanto os dois peões continuavam a brigar.
— Sim, Daniel, sei tudo sobre você e seu irmão. E sobre essa aí, que já havia percebido fazia tempo! Muito nova, e incapaz de resistir a mim.
Severino deu um golpe, e Mané foi lançado próximo de Sheila. O peão ficou aos pés dela, ergueu-se, e deu com o olhar da súcubo sobre ele. Sheila estendeu a mão, acariciou seu rosto, depois o puxou para junto de si, beijando-o. Daniel observou um brilho azulado passar do peão para a súcubo, antes que esta segurasse sua cabeça e com um rápido movimento quebrasse seu pescoço.
O brilho se intensificou, e o fluxo azul foi todo para a boca da demônio. Mané caiu morto ao chão.
— Uhn, delícia!
Severino olhava a cena, mas não havia qualquer medo em seu olhar. Dominado pela paralisia que sentia, Daniel estava impotente quando Sheila se aproximou do outro peão, acariciando-o.
— Doce Severino, você foi tão bom para mim! Quero mais desse seu fogo, vá lá e ganhe o rodeio! Depois volte para mim, quero você todinho!
Severino olhou embevecido para a morena, a beijou, e o brilho azulado passou da boca da súcubo para a dele. O peão, depois de mais beijos e abraços, saiu correndo pois os competidores da final estavam sendo chamados.
Sheila se virou para Daniel, que continuava desesperadamente lutando contra a paralisia.
— Está vendo, caçador? Suas esperanças não têm como durar. Como podem esperar nos vencer? Acham mesmo que podem impedir a escuridão?
Daniel arregalou os olhos, enquanto a súcubo acariciava seu rosto.
— A escuridão vai chegar, e quem vai ajudar vocês humanos? – perguntou ela.
Um rápido movimento, e a súcubo foi lançada longe. Ela bateu em uma grossa tora de madeira fincada no chão, partindo-a em duas. Daniel, liberto do encanto da demônio, levantou-se, olhou para o lado e viu Ariele.
— Nós, seres da terra, vamos ajudar, vagabunda!
O caçador mal conseguiu ver Sheila se aproximar, tão rápido que ela mais parecia um borrão, e atingir a fada fazendo-a bater contra a parede de um galpão próximo. O impacto abriu um rombo nele, mas lá de dentro saiu um potente raio que atingiu a súcubo, lançando-a no ar, girando descontrolada até cair e abrir uma vala no chão de terra batida a metros de distância.
Ariele saiu do galpão mancando, com a varinha na mão, delicadas asas vibrando em suas costas e expressão dura no rosto. Daniel se virou, e em meio a poeira viu a súcubo se levantando. Irradiava um brilho vermelho como fogo, e suas roupas ficaram em frangalhos. Sua pele rachou e quebrou, grandes pedaços que caíam ao chão e queimavam até sumir. Seus olhos ficaram amarelos, e ela disse:
— Vou matar vocês, hoje vão conhecer o verdadeiro inferno!
A súcubo abriu a boca, e um jato de chamas quase atingiu Daniel. Ele rolou pra o lado, já com uma pistola em punho, e disparou várias vezes contra a demônio.
A súcubo olhou para o próprio corpo, nos buracos feitos pelas balas de prata e que em poucos segundos se fecharam. Depois olhou para Daniel com um sorriso grotesco, antes de ser atingida por um tiro bem na testa. Ela ficou imóvel por um instante antes de cair de costas.
O caçador e a fada se aproximaram cautelosamente. Daniel mantinha a arma apontada, olhando o corpo ainda escultural da súcubo, agora nu e coberto por uma pele vermelha onde se viam marcas e linhas em preto e amarelo, delineadas por vários tons de vermelho. Ariele olhou por um momento, depois bateu as asas mais forte e flutuou para longe.
Nesse momento a súcubo abriu os olhos, chutando a arma na mão de Daniel e agarrando sua perna. Com um rápido giro lançou o caçador longe, atingindo Ariele. Os dois caíram ao chão, enquanto a demônio ficava em pé.
— Estou começando a me entediar, isso é tudo que têm?
Daniel olhou para ela, observando uma sombra se aproximando rapidamente por trás da súcubo. Em um rápido movimento, a cabeça do monstro foi separada do pescoço e caiu ao chão. O corpo se manteve poucos instantes antes de desabar também.
Os olhos da cabeça cortada ainda piscavam em desespero, enquanto Samuel brandia uma comprida faca para que todos vissem.
— A peixeira que decapitou Lampião, o Rei do Cangaço. Nunca falha!
Os olhos na cabeça da súcubo ficaram vidrados, e seu corpo parou com os espasmos. Ambas as partes finalmente pegaram fogo e queimaram em instantes, não deixando o menor rastro.
Samuel se aproximou, e ajudou o irmão a se levantar. Ariele se pôs de pé, escondendo as asas.
— Outros humanos estão vindo – ela disse.
— Já encerramos por aqui – comentou Samuel. – Melhor irmos.
Os três se afastaram em passos rápidos, mas Daniel teve tempo de dar um soco no braço do irmão:
— Cacete, onde você estava!
Samuel riu, e respondeu:
— Fiquei olhando a luta de vocês, tentando decidir o melhor momento de atacar. Eu que não queria apanhar daquela coisa.
Daniel sentia-se todo dolorido, mas estava decidido a não dar mais motivos de piadas para Samuel. Tentando não mancar, no que não estava sendo bem sucedido, acompanhou o passo do irmão e da fada. Ouviram os gritos e comentários de pessoas, certamente diante do corpo de Mané, mas nesse caso não havia nada que pudessem fazer.
Severino acabou sendo a grande decepção da Festa do Peão. Já montado no cavalo para sua apresentação na grande final, de acordo com as descrições dos auxiliares exibiu subitamente a expressão de quem não sabia o que estava fazendo ali. A porteira se abriu, e em menos de três segundos o peão anteriormente revelação estava no chão.
— E é assim que acaba – comentou Daniel. – A influência da súcubo sobre ele sumiu, e toda a energia também.
— No fim, pode até se considerar um sortudo – acrescentou Samuel. – Viveu para montar outro dia.
— Vocês humanos são estranhos.
Ariele estava ainda mais radiante do que antes, comprovando que a influência da súcubo havia afetado até a ela. Alguns frequentadores da festa olhavam com desejo para a loira, mas a presença dos dois irmãos os mantinham longe.
— E agora? – perguntou Daniel.
— Vou voltar para junto de minhas irmãs, e contar o que vi aqui. Sei que vocês e outros seres naturais deste país nos consideram invasoras, mas também somos espíritos desta terra, e sentimos a influência nefasta que se aproxima.
Daniel e Samuel se encararam. O irmão mais novo nunca gostara de estar na presença de seres encantados, e se afastou. Entretanto, antes disso fez um pequeno sinal para a fada com a cabeça.
— Seu irmão não gosta de mim, mas o que foi isso que fez com a cabeça?
Daniel riu, olhou para Ariele e disse:
— Ele não gosta de nenhum ser que não seja humano. Mas não se preocupe, foi um sinal de cumprimento. Ele deve ter gostado de saber que você me ajudou.
A fada encarou diretamente o caçador. Os olhos dela eram do azul mais profundo e cintilante que se poderia imaginar, e Daniel ficou pensando que seria fácil se apaixonar por ela. Mas naquele momento ele só queria abraçar Tatiana.
— E eu também preciso agradecer. Se não fosse você, aquela súcubo poderia ter acabado comigo – comentou Daniel ao chegarem a um local discreto. Estendeu a mão, que a fada tomou em um cumprimento.
— Vocês devem tomar cuidado – disse Ariele. – A súcubo estava certa. Um tempo de trevas se aproxima, e vocês vão precisar de toda a ajuda possível.
A fada abaixou a cabeça, depois voltou a olhar para ele por um instante. Estendeu suas asas quase transparentes, elevou-se no ar, e de repente se tornou um ponto de luz, que revoou pela área antes de desaparecer.
Samuel já aguardava junto ao Fusca.
— Como é? – perguntou Daniel em tom divertido. – Você do lado do Fusca da Vó Nena?
— Para quem encarou, na mesma tarde, uma fada e uma súcubo, esse Poizé aqui é fichinha.
O carro ligou sozinho, fazendo Samuel estremecer de leve. Mas o irmão mais novo da dupla se conteve, e entrou no carro depois que Daniel abriu a porta do passageiro.
— Já contei tudo para elas. Vó Nena teve febre agora no final da tarde, mas já está melhor de acordo com a Tati. Sua namorada teve uma visão, aliás, e está preocupada.
— Vou ligar assim que sairmos deste estacionamento – comentou Daniel.
Depois de esperar um carro manobrar e entrar em uma vaga próxima, eles saíram com o Fusca. Já havia uma picape com quase dez pessoas na caçamba esperando para estacionar na vaga da qual saíram. Dois jovens foram os primeiros a descer da caminhonete, e um deles apontou para o carro dos irmãos antes de socar o braço do outro. O restante do grupo deu risada, e alguns repetiram a brincadeira, enquanto o Fusca se afastava.
Vó Nena e os Caçadores retornarão.
Esta foi a segunda história de Vó Nena e os Caçadores, e a primeira a mostrar o Fusca Azul amaldiçoado da experiente caçadora de monstros. Estou trabalhando em histórias maiores e mais elaboradas, fiquem na torcida para saírem em livros, e não somente em e-books! Aqui vocês podem reler a primeira, Neculai e a Escuridão, um crossover com a criação do amigo e colega Adriano Siqueira.
Falando em e-books, está disponível na Amazon Vó Nena e os Caçadores: O Fusca Azul, contando a história sobre como a caçadora conseguiu seu Fusca possuído. O volume digital ainda conta com O Casarão da Rua das Dores, uma das casas mais mal-assombradas da cidade.
Não percam na próxima quarta-feira a segunda parte do especial sobre Fantomius, o Ladrão de Casaca! E não poderíamos estar mais felizes com o retorno dos quadrinhos Disney, anunciado no último dia 30 pelo site Planeta Gibi!
No próximo 17 de dezembro nos encontraremos novamente com Vó Nena e os Caçadores, em um arrepiante conto de Natal!
Até a próxima!
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