Tatiana caminhou pela rua, entrando no espaço da festa. Havia barracas e stands, e ela passeou por ali enquanto aguardava Daniel, que fora estacionar o Fusca.
— Gata, que pernas, você é linda!
Um cara em um grupo de rapazes fez o comentário. Tati, que vestia camiseta branca, short preto e jaqueta de couro, continuou a andar, fez um giro no corpo e respondeu:
— Sei disso, são firmes e de pele sedosa. Mas são só para meu amor!
O grupo lançou assobios no ar, zoando com o engraçadinho que fizera o comentário. A vidente sorriu e continuou andando, cumprimentou conhecidos aqui e ali, e então alguém a enlaçou pela cintura.
— Demorei?
Ela se virou e abraçou Daniel. Ele correspondeu, agarrando a namorada junto a seu corpo, e se beijaram. Depois Tati conferiu a roupa dele, calça jeans, camiseta branca e jaqueta de couro, e com expressão de aprovação disse:
— Você está tão lindo!
— E você é sempre linda — cochichando ao ouvido dela, acrescentou: — E gostosa!
Depois de mais um beijo continuaram a andar. Passava das sete da noite e estavam com fome, então se dirigiram ao setor de comidas típicas. A feira se estendia por três quarteirões, e estavam no começo do segundo quando viram adolescentes correndo na direção da rua lateral.
No final da via principal onde estavam fora montado um palco onde bandas de vários estilos e gêneros se apresentavam. Mas da transversal vinha um som de batidas que fez Tati exibir uma expressão preocupada.
— Tem alguma coisa lá...
Eles trocaram um olhar. Daniel reparou em mais jovens que corriam naquela direção, e disse:
— Não tinha nada previsto por ali. Damos uma olhada?
A namorada fez que sim, e de mãos dadas eles seguiram pela rua menor. Logo o som de batidas se tornou mais nítido, e um arremedo de letra foi entendido:
Vem chuchuca
Vem comigo dançar
Vem requebrar
Que eu quero te pegar.
— Horrível! — comentou Daniel. — Lembro da vez que aqueles funkeiros invadiram a rua do José, e ele chamou a turma dos lobisomens. Puseram todo mundo pra correr!
Tati não respondeu. Havia levado a outra mão à cabeça, e quando olhou para Dan sua expressão era aflita.
— Amor, tem alguma coisa muito ruim lá.
Apressaram o passo, chegaram à esquina e viraram à esquerda. Então viram.
Dezenas de jovens dançavam e gritavam diante de um furgão. Neste fora montado um sistema de som, e diante dele, microfone na mão, um sujeito recitava a letra:
Eu sou o máximo
Ninguém pode comigo
Não tem puliça nem Caçador
Que comigo não trema
Vem vagabunda rebola assim
Vou te pegar e usar como quiser
Vem curtir bem assim.
— Mesmo sem o barulho infernal esse sujeito merecia uma surra só por assassinar o idioma desse jeito — Daniel começara a ficar zangado.
Tatiana firmou o olhar, e deixou que sua vidência vasculhasse a cena. A garota sentiu um fluxo avassalador de horror que quase foi demais para sua mente. Apertou a mão do amado enquanto entendia o que estava acontecendo, e então finalmente disse:
— Não é um sujeito. Eu te mostro.
Ergueu a mão de Daniel, ao mesmo tempo em que transmitiu a ele suas impressões.
O funkeiro, que estava sozinho, era magro, mas de músculos salientes, usava cabelos longos, ondulados e desgrenhados, boné virado para trás, largas correntes ao pescoço, camiseta regata e calças jeans puídas. Fazia gestos e dançava da forma típica dos apreciadores daquele gênero, e a multidão crescente que o acompanhava vibrava e urrava, o acompanhando no canto.
Então Daniel viu. A pele do sujeito era de um vermelho bem escuro, e da testa logo abaixo do boné saíam chifres negros.
— Está de brincadeira! A porra de um demônio!? E mencionou Caçadores ainda por cima!
— O que vamos fazer? — perguntou Tati. — Não podemos passar no meio desse pessoal com armas na mão. Fora que tiros de balas de prata vão causar pânico, mesmo que talvez machuquem esse cretino.
— Precisamos do Fusca aqui, em primeiro lugar — disse Daniel.
Enfiou a mão no bolso da calça, segurou a chave do carro assombrado e mentalmente fez o chamado.
O barulho ensurdecedor continuava. Moradores das redondezas saíam das casas, mas demonstravam um evidente receio de ir reclamar. A multidão, que já deveria ter uma centena de jovens e adolescentes, berrava cada vez mais, parecendo em transe.
Uma e outra pessoa veio ter com o casal, mas eles não puderam dar qualquer resposta. Uma mulher disse que ligaria para a polícia e voltou para casa, situada no outro quarteirão.
Daniel já pensava que o Fusca Azul demorava demais, quando finalmente escutou o barulho do motor refrigerado a ar. O carro surgiu da outra rua e veio se aproximando, mas não parou perto deles, seguindo adiante.
— Ei! — disse o jovem Caçador.
A moça se virou para ele e acrescentou:
— Tinha alguém no lugar do motorista?
As duas portas do veículo abriram, e um solo de guitarra poderoso se fez ouvir, logo acompanhado de uma feroz bateria.
O ritmo harmonioso cresceu, sobrepujando o barulho do funkeiro. Então Tatiana e Daniel ouviram:
Crazy, but that's how it goes
Millions of people living as foes
Maybe it's not too late
To learn how to love
And forget how to hate.
Então uma pessoa saiu do Fusca, que parara a alguns metros do furgão, e com agilidade subiu em sua capota. O carro abrira alas entre a plateia do funkeiro enquanto muitas daquelas pessoas observavam, atônitas.
E o homem de preto, de cabelos longos e escuros, continuou cantando:
Mental wounds not healing
Life's a bitter shame
I'm going off the rails on a crazy train
I'm going off the rails on a crazy train.
O encantamento do demônio, então, começou a fraquejar, e as pessoas passaram a vê-lo como realmente era. Algumas gritaram e fugiram correndo, mas a maioria simplesmente se virou para o recém chegado. A música, então, foi trocada, e ele cantou:
Finished with my woman
'Cause she couldn't help me with my mind
People think I'm insane
Because I am frowning all the time.
— Não acredito! — exclamou Tati.
— Ozzy! — completou Dan.
Os Caçadores se aproximaram. Percorreram as alas abertas pelo Fusca até estarem ao lado do carro. O cantor se virou fugazmente para o casal, abriu um largo sorriso, depois se voltou para a plateia e prosseguiu:
All day long I think of things
But nothing seems to satisfy
Think I'll lose my mind
If I don't find something to pacify
Can you help me
Occupy my brain?
Oh yeah.
O som era alto, a melodia e a letra cristalinas, mas os dois conseguiam conversar normalmente.
— Nunca pensei que o som do Fusca fosse tão bom — disse Tatiana.
Daniel olhou para ela enquanto examinava as opções de armas no banco traseiro, e ela então completou:
— É, claro, carro assombrado!
O demônio fazia trejeitos, tentava superar o rock com sua letra tenebrosa, mas mal era ouvido. Porém vários dos jovens que ainda estavam próximos dele se voltaram para os Caçadores. Seus olhares eram vidrados e exibiam expressões que deixavam claro o que viria a seguir.
— Ele está comandando aquela rapaziada para nos atacar! — gritou Tati.
— Acho que Ozzy vai dar um jeito nisso também — respondeu Daniel. Ele se ergueu segurando duas espadas na mão.
A lenda do rock, então, começou mais uma música:
Out on the streets, I'm stalking the night
I can hear my heavy breathing
Paid for the kill, but it doesn't seem right
Something there I can't believe in
Voices are calling from inside my head
I can hear them, I can hear them
Vanishing memories of things that were said
They can't try to hurt me now.
O poderoso som de Ozzy finalmente quebrou a influência do demônio naquelas pessoas. Elas piscaram os olhos e deram com a lenda, cantando sobre a capota de um Fusca Azul. Os que não tinham se afastado da cena rodeavam o carro e acompanhavam o show, batendo palmas e cantando junto.
— Não! — disse o demônio com voz cavernosa, tomada pelo que parecia todo o ódio do mundo. — Sou um enviado da Escuridão, e vou tomar quantas dessas almas quiser!
Ozzy olhou para ele enquanto a melodia seguia, riu alto e respondeu:
— E eu sou o Príncipe das Trevas, coisa ruim!
E em seguida emendou:
But a shot in the dark
One step away from you
Just a shot in the dark
Nothing that you can do
Just a shot in the dark
Always creeping up on you, alright.
O próprio demônio sentiu os efeitos da música, e suas pernas fraquejaram. Concentrado em Ozzy, só percebeu que havia mais adversários próximos quando uma dor lancinante atravessou seu coração.
Agonizante, ele virou a cabeça para olhar por sobre o ombro. Tatiana estava lá, expressão determinada, e virando a espada dentro de seu corpo.
— Você escolheu a noite errada para vir atrapalhar a festa!
A moça brandiu a lâmina, fazendo-a atravessar o corpo da criatura e sair pela lateral. O demônio urrou e apoiou um joelho no chão. Nisso, voltou a olhar para frente ao ouvir:
— E quando voltar para o lugar de onde veio, diga que este mundo está protegido pelos Caçadores!
Daniel golpeou com sua espada, decapitando o monstro com um só golpe. Quase imediatamente a cabeça e o corpo se transformaram em uma fumaça negra que se dissipou no ar.
Eles se olharam, e o rapaz segurou a mão da moça. Retornaram para perto do Fusca, e um grupo de pessoas acompanhava os últimos acordes de Ozzy:
I've seen your face a thousand times
Every day we've been apart
I don't care about the sunshine, yeah
'Cause Mama, Mama, I'm coming home
I'm coming home
I'm coming home
I'm coming home.
As pessoas aplaudiram entusiasticamente, disseram obrigado e foram embora. Daniel guardou as espadas e depois abraçou Tatiana.
Ozzy desceu do carro e ficou diante deles.
— Cara, foi incrível, obrigado! — disse Daniel.
Tatiana, com lágrimas nos olhos, o abraçou.
— Isto é um adeus?
Ele olhou nos olhos dela, segurou seu queixo e disse:
— Meu bem, nenhum adeus é para sempre.
Estendeu o braço, Daniel se aproximou e os três se uniram em um forte abraço. Ozzy então acrescentou:
— Quando chegar a hora, cada um de nós se tornará um... Encantado!
O abraço seguiu firme, então os três se olharam. Ele disse:
— Amo vocês, moçada!
— E nós te amamos, Ozzy — responderam em uníssimo.
Ozzy deu um beijo no rosto dos dois, recebeu outros de volta, e nesse momento um trem, abrindo uma brecha no tecido entre as realidades, veio pela rua. A locomotiva apitou forte e soltou baforadas de vapor, e um dos vagões parou ao lado deles.
— O rock n'roll é o maior amor da minha vida, pois foi através dele que cheguei a todos os outros. Meus queridos, amem bastante, e que Deus os abençoe!
Depois de novo abraço, Ozzy entrou no trem. Os acordes regressaram:
Maybe it's not too late
To learn how to love
And forget how to hate
Mental wounds not healing
Life's a bitter shame
I'm going off the rails on a crazy train
I'm going off the rails on a crazy train.
Tati e Dan viram o trem se afastar com Ozzy acenando, subindo para o céu e penetrando em nuvens que cobriam a região. Momentos depois estas se dissiparam, e estrelas brilharam no firmamento.
O Fusca regressou, depois de haver empurrado a van para diante de um terreno baldio. Abaixou as janelas ao mesmo tempo em que ligou o rádio, e eles ouviram:
Except for me I'm the lonely one
I live in shame
I say goodbye to romance yeah
Goodbye to friends I tell you
Goodbye to all the past
I guess that we'll meet
We'll meet in the end.
— Adeus a este romance jamais! — disse Tati abraçando Daniel.
O rádio do Fusca então emendou:
We shared the years, we shared each day.
In love together, we found a way.
But soon the world, had its evil way.
My heart was blinded, love went astray.
I'm going through changes.
I'm going through changes.
— Nosso amor nunca vai se perder — respondeu Daniel. Mas já dançava com Tatiana.
Então veio:
After all there's only just the two of us
And here we are still fighting for our lives
Watching all of history repeat itself, time after time
I'm just a dreamer
I dream my life away
I'm just a dreamer
Who dreams of better days.
Os dois apertaram o abraço, e continuaram a dançar lentamente.
— E a festa? — perguntou Daniel.
— Daqui a pouco vamos lá. Te amo.
— Eu te amo.
O casal continuou dançando enquanto a noite seguia, sentindo-se gratos pela aventura e pelo carinho da lenda. E afinal, sempre teriam suas músicas.
Para Ozzy, obrigado por tudo!
Vó Nena e os Caçadores retornarão.
Até a próxima!