Daniel
dirigia o velho Fuscão vermelho, ano 1971, com Tatiana no assento do
passageiro. A jovem vidente disse:
—
Ainda não consigo acreditar que este carro ficou tão próximo do portal do Morro
dos Uivos, esteve diante de uma das crias tentaculares, e mesmo assim não
consigo sentir absolutamente nada nele!
O
neto mais velho de Vó Nena reavivou a memória, relembrando o estranho caso de
George Angelo. Respondeu:
—
Tem muita coisa nesse caso que ainda não entendemos, amor, mesmo anos depois.
—
Foi logo depois que começamos a namorar, lembro de pararmos diante da casa do
Angelo com o Dodge.
—
Vó Nena vive examinando aquela maquete que ele construiu e que guardamos na
sala segura, mas não diz pra ninguém o que descobriu. Nem se descobriu algo.
Tatiana
suspirou. Daniel havia instalado faróis auxiliares no carro que também fora de
Angelo, e não tinham problema em percorrer a estrada escura. Bem adiante deles,
na escuridão da noite, a mancha luminosa que sabiam ser Brasília crescia a cada
metro percorrido.
—
E Vó Nena? – perguntou a garota. – Ficou muito brava por termos decidido
aceitar o convite do João?
Daniel
reduziu uma marcha, ligou o pisca, foi para a pista da esquerda e ultrapassou um
veículo mais lento. Depois de olhar pelo retrovisor deu seta novamente e
retornou para a pista da direita. Foi a vez dele suspirar antes de responder:
—
Ela não gostou nada quando falei que iríamos aproveitar esse evento aircooled,
de Fuscas e derivados, para encontrar o João. Mas saí antes de ouvir mais
broncas.
—
Ela não deixa de ter razão, Daniel! Vó Nena e minha avó procuraram muito por essa
coisa enterrada em Brasília e nunca encontraram! Vocês já me falaram muito do
João, mas será mesmo que ele descobriu um meio?
Daniel
sorriu. Estendeu o braço para o lado e acariciou a face da namorada. Ela
retribuiu beijando a palma de sua mão.
—
Fique tranquila, Tati – respondeu ele. – O João pode ser meio maluco mas é uma
figura, e já enfrentou muita coisa ao lado de Vó Nena. É quase uma lenda entre
os Caçadores!
Percorridos
mais alguns metros, com o motor do Fuscão roncando forte, o rapaz acrescentou:
—
Além do mais, é uma oportunidade de ficar algum tempo sozinho com você!
A
jovem vidente sorriu, disfarçando o sentimento ruim das energias negativas que
já captava, vindas da capital federal. A mão de Daniel segurando a sua era um
conforto muito necessário.
O amanhecer no Planalto Central era realmente magnífico. Tati e Daniel levantaram cedo, pagaram a dona da pensão onde passaram a noite depois do café da manhã caprichado que tomaram, e se dirigiram para a Esplanada dos Ministérios. Era ali a concentração para o evento, ao lado da Catedral de Brasília.
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Era
a primeira edição do Aircooleds no Planalto, e vários Fuscas, Kombis e outros
derivados do Carro do Povo já estavam alinhados ao longo do caminho. Originais
ou customizados, dividiam espaço com uma crescente multidão que ainda podia
visitar barracas de lojas e dos mais variados tipos de comida.
Depois
de se identificarem e ganharem uma placa para colar no para-brisa do impecável
Fuscão vermelho, encontraram uma vaga e estacionaram. Tatiana comentou:
—
Só queria ver o Fusca Azul da Vó aqui.
—
Não sei não, amor. Todas as vezes que viemos a Brasília com ele a assombração
se comportou muito mal.
—
Eu sei. Apesar de aqui estar tudo bem, as pessoas confraternizando e se
divertindo. Já as energias vindas dali estão difíceis de suportar...
Tatiana
havia apontado discretamente com o queixo na direção da Praça dos Três Poderes.
O rapaz não precisou perguntar o que a namorada sentia. Fazia uma boa ideia.
Ficaram
perto do Fuscão, sendo cumprimentados e cumprimentando pessoas que passavam e
elogiavam o carro. Daniel conversou um pouco com conhecidos de outros eventos,
pois havia tomado gosto por essas reuniões já que todos os Caçadores utilizavam
carros antigos, muito mais confiáveis que os modernos contra assombrações e
coisas do outro mundo. Não era incomum esbarrar com colegas que trabalhavam com
o sobrenatural nesses encontros.
Foi
quando viu. Uma inconfundível Kombi pick-up amarela, para-choques vermelhos e
uma surrada lona formando um baú sobre a caçamba. O veículo, com vários pontos
de ferrugem já aparecendo, veio falhando um pouco e estacionou ao lado do Fuscão
deles.
Da
pick-up desceu um sujeito magro, vestindo jeans e camisa xadrez que já viram
melhores dias. Barba por fazer, rosto ossudo, um par de velhos óculos redondos
sobre os olhos castanhos muito vivos, chapéu também surrado e um cigarro de
palha na boca. Foi direto para Daniel, que já sorria, e trocaram um forte
abraço.
—
Mas Daniel, neto da minha amigona Nena, como está? Caramba, como você cresceu,
moleque!
O
jovem deu um murro de mentira no braço dele, respondendo:
—
Qual é, João!? Nem faz tanto tempo assim!
O
velho Caçador ignorou os protestos do neto de Nena e olhou para Tatiana. Perguntou:
—
E quem é essa moça bonita aqui?
Daniel
ia responder, mas Tati se adiantou:
—
Oi, seu João – disse estendendo a mão. – Meu nome é Tatiana, e sou...
—
A neta da Esmeralda? – perguntou ele. – Nossa! Agora lembrei que a Nena me
disse que o neto dela estava te namorando!
Envolveu
Tatiana em um abraço carinhoso, que ela retribuiu. Foi inevitável sentir toda a
dureza da vida de caçador de João, mas também uma incrível energia e desejo de
fazer o bem. A jovem vidente estava sorrindo quando o homem a largou e olhou
para seu rosto:
—
Que saudades dos bons tempos, das caçadas com Nena e sua avó, menina! Você é a
cara dela!
Ele
pareceu se lembrar de alguma coisa, tirou o chapéu com uma mesura e disse:
—
João Ramirez, seu criado!
Outros
participantes do evento passavam, e um e outro mostrou conhecer João pois
vieram cumprimentá-lo. Um deles disse:
—
Você ainda anda com essa trapizonga, João!? E o que andou fazendo que a lona
aqui tá toda rasgada?
—
Caçando, meu velho! – disse João entabulando uma rápida conversa com o sujeito.
Depois que se despediram e ele se afastou o Caçador se virou para os jovens e acrescentou:
—
Um bicho-tutu dos grandes, estava atazanando uma comunidade na periferia de uma
cidadezinha lá na fronteira da Bahia – disse, passando a mão pelos compridos
rasgos. — Mas ele não vai mais incomodar o povo de lá não. E aí, o que é que
tem pra se comer aqui?
Diante
da pergunta de João eles trancaram os carros e saíram andando pelo evento. A
Catedral de Brasília ao fundo compunha um belo panorama, e Daniel cumprimentou outros
conhecidos enquanto passeavam. Em determinado momento João se aproximou de uma
Kombi 1963 saia e blusa, azul com teto creme, e trocou rápidas palavras com o
dono. Depois voltou para o lado dos jovens e disse:
—
Alfredão, amigo de outras paragens. Gente fina, e também metido em coisas
esquisitas.
—
Que coisas? – riu Tatiana.
—
De outro mundo, menina.
—
Nós também – comentou Daniel;
João
soltou um suspiro e completou:
—
É, cada um no seu ramo...
Vários
food trucks e barracas formavam a praça de alimentação do evento, e enquanto
comiam em uma mesa mais afastada João disse:
—
A Caveira de Burro, crianças! A aberração enfeitiçada que foi enterrada aqui em
Brasília enquanto a cidade estava sendo construída!
Tatiana
e Daniel se entreolharam e depois de beber um gole de refrigerante a vidente
disse:
—
Conhecemos a história, seu João...
—
Só João, menina, quê que é isso?
—
Tudo bem – respondeu a vidente. – Vó Nena nos contou essa história. Uma caveira
de burro que foi enterrada em Brasília pelos inimigos do governo. A intenção
era nunca deixar o país prosperar e ir para frente, para que a facção política
dos que enterraram essa coisa pudesse denunciar as dificuldades e vender
facilidades.
João
deu uma dentada em seu sanduíche, mastigou com gosto e disse ainda de boca
cheia:
—
Tá certo, garota. Todo Caçador conhece a história.
—
E um monte de Caçadores, em todos esses anos, tem tentado achar essa coisa para
salvar o Brasil – completou Daniel. – Vó Nena contou tudo pra gente, das vezes
em que veio para cá com Esmeralda para tentar encontrar e dar fim nessa uruca.
—
Algum feiticeiro muito poderoso na magia negra deve ter sido o responsável por
encantar essa coisa, Daniel – disse João e deu mais uma dentada no sanduíche. –
Se nem a Esmeralda conseguiu achar onde enterraram a Caveira é sinal que foi
uruca da brava!
—
Tudo nesta cidade exala uma energia ruim – disse Tatiana esfregando os braços
como se desse um abraço a si mesma. – Vocês não fazem ideia do que eu sinto se
me concentro o suficiente...
—
Eu sei sim, Tati – disse João terminando de comer. Tomou um gole do copo da
cerveja, esperou outros participantes do evento passarem ao lado da mesa deles
e prosseguiu em voz baixa: — O povo reclama da vida, mas continua inventando de
votar nos piores dos piores, e o resultado não podia ser outro!
Depois
de alguns instantes pareceu se lembrar de alguma coisa e se virou para Daniel:
—
Sua avó continua a não querer ter uma Brasília, o carro?
Daniel
riu, olhou para Tati e respondeu:
—
Você não faz ideia! Um tio me deixou uma Brasília branca, ano 1974, que preciso
manter na casa da minha mãe. Vó Nena não quer nem ouvir falar daquele carro!
“Acha que quero na minha casa um carro que tem o nome daquele lugar amaldiçoado!?”
ela sempre diz!
Os
três deram risada, e João perguntou:
—
E da época quando ela ajudou os militares a combater os grupos de comunas que
praticavam magia negra?
—
Claro que contou! – disse Tatiana. – Aliás também explicou como foi em uma
dessas missões que conseguiu o Fusca Azul. Andei nele logo que conheci Vó Nena
e Daniel.
João
ficou espantado e Tatiana contou rapidamente a história, que envolvia um
vampiro invadindo uma festa de formatura e raptando a namorada de um amigo.
Finalmente, Daniel retomou o assunto:
—
Mas você ainda não disse o que viemos fazer aqui, João! E nem explicou como, se
nem Vó Nena e Esmeralda conseguiram encontrar a Caveira de Burro, por que acha
que nós conseguiremos?
João
olhou para os dois, terminou sua cerveja, pousou o copo na mesa e manteve
silêncio por mais algum tempo. Depois respondeu:
—
Porque dessa vez sei onde procurar! – Depois de consultar o relógio
acrescentou: — Vamos pegar minha Kombi que já está quase na hora!
—
Conheci esse advogado, moleque novo que nem vocês, enquanto caçava uns vampiros
lá por Luziânia – contava João. – Ele contou que é elemento de ligação institucional
do governo com o Congresso e o Supremo, além de fazer uns serviços pra um grupo
dentro da Agência Brasileira de Inteligência. Que já foi o SNI, ah, lembro dos
bons tempos!
Começou
a contar histórias da época da ditadura militar, quando setores do governo
queriam investigar os Caçadores e todo tipo de ocorrência estranha. Daniel e
Tatiana se olharam e lembraram dos amigos de São Paulo que tinham a empresa de
informática e secretamente espionavam os políticos.
Estavam
sentados na Kombi, Daniel no meio entre João e Tatiana. O veículo foi
estacionado a pouca distância do Supremo Tribunal Federal e João enfim disse:
—
Então esse informante, que eu salvei de um ataque de vampiro, fiquei na cola
dele e conversa vai, conversa vem, me contou como esse grupo descobriu umas
cerimônias secretas, parecendo de magia negra mesmo, que acontecem nos
subterrâneos aqui de Brasília.
Aquilo
era novidade para os jovens, e Tatiana perguntou:
—
Você quer dizer que nos porões do STF eles praticam magia negra?
—
Isso sim. O rapaz descreveu um tipo de culto, e hoje graças a sua vidência
podemos dar uma espiada!
—
Um culto em pleno sábado, João? – perguntou Daniel incrédulo. – E hoje ainda é
dia 14, na sexta-feira 13 faria muito mais sentido!
João
olhou para Daniel e deu uma risada. Lá fora as pessoas aproveitavam o dia
ensolarado para passear, tirando fotos diante do edifício do Supremo. O velho
Caçador, finalmente, respondeu:
—
E alguma coisa em Brasília faz sentido?
Daniel
se virou para Tati. A vidente trocou um longo olhar com o namorado, sentindo
também a expectativa de João. Soltou um suspiro, olhou para o imponente prédio
lá fora e disse:
—
Bem, já que estamos aqui, não custa tentar...
Tatiana
não sabia se a cena que descrevia para eles estava acontecendo naquele momento
ou minutos ou horas antes. Uma névoa parecia encobrir sua visão, e ela
estremecia cada vez mais diante das intensas energias negativas que permeavam
toda a Praça dos Três Poderes. Também havia demorado bem mais do que o normal
para obter um grau de concentração suficiente para sua vidência funcionar.
—
Estão mesmo no subterrâneo... passaram por uma escada, paredes de concreto sem
revestimento e bem desgastadas... entraram por uma porta de aço...
Daniel,
preocupado, viu que Tatiana estava se esforçando mais do que o normal. Sua
testa estava banhada em suor, e ele apanhou um lenço em sua mochila e a secou.
—
Seis figuras de capa preta, com capuz... – Tatiana continuou. – Dois cobertos
por panos brancos no meio deles... depois de cruzarem a porta estão em uma caverna,
paredes de rocha nua, dois dos de capa preta com lanternas entraram e acenderam
velas espalhadas pelo lugar...
Tatiana
continuou descrevendo o que via. A caverna natural tinha outras duas saídas,
cujas direções ela não soube determinar. Os participantes da estranha cerimônia
se colocaram em semicírculo diante de uma pedra de cerca de um metro de altura
em um dos cantos da caverna, quando Tatiana gritou:
—
A caveira! A caveira! A Caveira de Burro!
Daniel
e João se agitaram, e o velho Caçador perguntou em tom ansioso:
—
Tem certeza menina? Ali mesmo, embaixo do Supremo!?
O
neto de Vó Nena fez sinal para que ele se calasse e Tatiana, suando muito
devido ao esforço, disse:
—
Uma Caveira de Burro... eles estão próximos dela... ajoelhados diante dela e se
abaixando até tocar as mãos no chão, saudando a coisa... ela é pequena...
—
Pequena!? – soltou João. – A lenda diz que era um burro que foi sacrificado em
uma cerimônia de magia negra, e...
—
João, espera! – disse Daniel impaciente.
Tatiana
continuava de olhos fechados, trêmula, descrevendo a visão. Os seis
participantes de preto finalmente se erguem e removem os capuzes.
—
Um deles é careca, e está chamando os dois que estão de branco – disse Tatiana
com esforço.
—
Deve ser aquele ordinário do Bruno de Nogueira – comentou João. – E meu
informante disse que ele tem umas preferências bem estranhas...
Isso
foi confirmado quando a vidente descreveu a cena seguinte. Nogueira se
aproximou de um tablado coberto com panos e almofadas e o apontou para as duas
figuras de branco. Estes se aproximaram e deixaram cair os panos que os
cobriam.
—
É um rapaz e uma moça e estão sem roupa nenhuma.
Tatiana
seguiu descrevendo como o ministro Nogueira se livrou de seu manto negro,
revelando também estar nu, e no instante seguinte estava no tablado com o casal
bem mais jovem que ele.
João
estendeu o braço e sacudiu Tatiana. A vidente despertou e os olhou com
expressão exausta.
—
Acho que aconteceu faz poucos minutos. O que foi que eu vi, João?
—
Tem certeza que a Caveira de Burro era pequena?
Tatiana
olhou para o velho Caçador, depois para Daniel, e em seguida pelo para-brisa da
Kombi lá para fora. Respirou fundo algumas vezes, lembrando das cenas absurdas
que testemunhara e finalmente respondeu:
—
Um dos caras de manto negro acendeu velas pretas ao lado dela. Sim, era uma
caveira de burro pequena.
João
observou os dois jovens, pôs as mãos no volante, suspirou e ainda manteve
silêncio por mais alguns instantes. Daniel chegou a abrir a boca para dizer
algo quando ele disse:
—
Vamos voltar pro evento.
O
alto astral do encontro de colecionadores de carros melhorou o ânimo de
Tatiana. Ela aproveitou e foi até o banheiro para trocar a blusa empapada de
suor, voltou e guardou a roupa usada em sua bagagem no porta-malas do Fuscão.
Encontrou os dois e foram novamente para a praça de alimentação. Um doce era
tudo que ela queria agora.
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—
E então? – perguntou a vidente após algum tempo.
João
era magro mas tinha um grande apetite. Depois de comerem e encontrarem mais amigos,
quando souberam que o Fuscão vermelho e a Kombi amarela eram candidatos a prêmios
do evento, o Caçador finalmente disse:
—
Pelo visto meu informante estava certo.
—
Por quê? – quis saber Daniel.
—
Ele teve conversas com algumas pessoas que trabalham no STF e reuniu aqui e ali
partes do que vimos hoje.
—
Mas o ministro Nogueira... – disse Tatiana. – Com aquele casal...
—
Parece que dopam servidores, secretárias ou auxiliares jovens que escolhem e os
usam nesses cultos. Coisa típica de magia negra, sempre acaba envolvendo sexo.
Culto blasfemo de magia negra sempre vale tudo. E depois eles não lembram de
nada.
João
bebeu outro gole de cerveja e acrescentou:
—
E tem gente ingênua que acha que esses urubus só estupram a Constituição, não é
mesmo?
—
E o que mais esse informante disse? – perguntou Daniel.
João
olhou para ele, depois para Tatiana, e em seguida os arredores com expressão de
devaneio. Ficou assim por algum tempo, até que se voltou para os jovens
novamente e respondeu:
—
Que fez o mesmo tipo de investigação no Congresso Nacional, e aí ele conseguiu
chegar ao local do culto. Esteve diante da Caveira de Burro. E, pelo que
descreveu, era pequena. Assim como a que a Tatiana viu.
—
Tem outra no Congresso!? – Tatiana e Daniel fizeram a pergunta em uníssono.
João
virou o restante da cerveja e olhou para eles.
—
Faz algum tempo que alguns Caçadores desconfiam que pudesse existir mais de uma
Caveira de Burro. E faz sentido! Pensem: sempre que algum governo começa a
fazer alguma coisa boa, lá vem o Congresso ou o STF melar tudo. Se o
Legislativo ou o Judiciário começa a trabalhar pelo povo para variar, lá vem um
dos outros colocar dificuldades...
João
descreveu, com essas poucas palavras, a realidade do país desde a
redemocratização, conforme o casal bem sabia. Tati expôs outra dúvida:
—
O Supremo tem ministras mulheres. E elas aprovam tudo isso? Esse culto dos
infernos onde pessoas são abusadas?
—
Isso eu e alguns Caçadores sempre nos perguntamos – comentou João. – Mas
conforme fui reunindo, desse informante e outras fontes, os participantes dessa
missa negra são sempre poucos, justamente para controlar o segredo. Teve época
em que esse culto não envolvia nenhum ministro, claro, e quando tem alguns dos maiorais
são sempre no máximo 3 ou 4. E respondendo a você, Tati, são sempre homens.
Mulher só entra nessas barras pesadas para... bom, você viu.
João
pareceu lembrar de alguma coisa e perguntou:
—
E os outros, você reconheceu?
Tatiana
fez que sim, sacou o celular e fez uma rápida pesquisa. Depois mostrou o
aparelho para eles e apontou:
—
Este e este.
—
Mas claro! – comentou João. – Os mais ligados aos comunas filhos da puta que
enterraram a Caveira, ou Caveiras. O Sérgio Mayerovic, advogado daquele ladrão
imundo desde sempre, e o Tadeu Dorneles, moleque de recados daquele... como sua
avó chama, Daniel?
—
De terrorista imundo e filho da puta, que ela lamenta até hoje não ter matado
quando teve chance.
—
Gentalha da pior espécie – confirmou João. – E mergulhada até o pescoço no pior
do pior do pior que o ser humano é capaz de inventar!
João
se virou para Tatiana e estendeu a mão dizendo:
—
Por isso sei bem o que você tem passado, menina. Desculpe ter trazido você
aqui.
Tatiana
pegou a mão de João e de novo experimentou a mesma sensação. Uma vida inteira
combatendo as trevas para tentar trazer alguma luz, por menor que fosse, e
ajudar as pessoas. Ela sorriu, agradecendo sem palavras o bem que lhe fazia
aquilo.
Terminaram
de comer e ficaram alguns minutos em silêncio olhando o movimento. Resolveram
sair andando pelo evento, olhando os carros e conversando com várias pessoas.
Não só a vidente, mas todos eles sentiram as boas energias que circulavam por
ali, em meio a gente de bem que só queria aproveitar um belo e ensolarado dia e
mostrar o resultado de seu trabalho. Os carros eram os mais variados, desde
originais de fábrica parecendo novos, até ostentando as mais radicais
personalizações.
Eles
retornaram para junto de seus veículos e continuaram apreciando o movimento.
Depois de alguns minutos Tatiana perguntou:
—
Então para onde vamos?
João
olhou para ela, depois para Daniel, e por fim para a direção da Praça dos Três
Poderes.
—
Para a verdadeira Casa do Espanto – comentou.
O
evento terminou às oito da noite. O Fuscão vermelho de Daniel ficou em terceiro
lugar na categoria originalidade para o início dos anos 70. Já a Kombi de João
levou um troféu de segundo lugar na categoria “ratwagen”, para carros com
aparência enferrujada e desgastada. Muitos desta eram produzidos em oficinas,
mas a pick-up de João e o Fusca primeiro colocado tinham as marcas de corrosão
naturais.
—
Esse povo é maluco! – comentou João com eles. – Eu não cuido da Kombi do jeito
que queria porque estou sempre na estrada caçando. Já essa turma vai no esmeril
para enferrujar o carro de propósito!
Tatiana
e Daniel deram risada. Sentiram que aqueles momentos de diversão eram mais que
bem vindos diante do que ainda tinham pela frente.
Já
passava das nove e meia da noite e ainda tinha gente e carros do evento
circulando pelos arredores. O trio deixou a Kombi estacionada nas proximidades
da Catedral e se aproximaram do Congresso Nacional com o Fusca vermelho. João,
no banco traseiro, fez questão de trazer uma mochila velha da qual sobressaía
uma espada estranha em uma bainha.
—
Nunca se sabe – disse ele.
Parados
a pouca distância do Parlamento, aguardaram Tatiana se concentrar. Como da vez
anterior a vidente se preparou com todo cuidado, sabendo que energias escuras e
negativas circulavam em abundância por ali.
Os
dois homens aguardaram pacientemente, e por isso se assustaram quando Tatiana
soltou um grito lancinante.
Ela
chorava e se debatia, e felizmente as poucas pessoas à vista estavam longe o
suficiente para não ouvir o grito. Daniel pôs a mão no braço da namorada, e
como acontecera algumas vezes antes teve um vislumbre do que ela via.
Cenas de horror, a corrupção humana em seu ponto mais baixo e vil, segredos inconfessáveis, complôs durando décadas com o único fim de explorar incessantemente as pessoas, a morte de toda esperança...
O
rapaz soltou Tati um segundo depois, e ela lamentava:
—
É demais... vejo tudo... tudo... é horrível!
—
Tati! – gritou Daniel.
A
mão da vidente pousou em seu peito, e ele se surpreendeu pelas visões não
voltarem. Tatiana disse com voz surpreendentemente segura :
—
Não... eu aguento... tenho que fazer isso.
Quando
pronunciou estas palavras aconteceu algo que eles não esperavam. Um brilho
fantasmagórico e esverdeado surgiu, envolvendo Tati e se espalhando pelo carro.
Daniel, espantado, abriu a porta e saiu, no que foi seguido por João.
—
Mas que porra é essa? – gritou o jovem Caçador.
—
Eu já esperava... – respondeu João.
Daniel
olhou para o amigo incrédulo, aproximou-se dele e perguntou:
—
Como é?
João
apontou para o Fusca, agora coberto pelo leve brilho esverdeado, e disse:
—
Você e sua avó me contaram sobre o que houve com este carro. Esteve perto de
dois portais para dimensões infernais, uma delas a das crias tentaculares, um
dos piores pesadelos de que se tem notícia. Claro, o dos bichos-homens não é
nem um pouco melhor. Acha que não restaria nem um traço de energia dessas
abominações?
Daniel
olhava para João sem acreditar. Subitamente avançou sobre ele vociferando:
—
Seu filho da puta! Você sabia desse mal e não nos disse nada! Deixou Tatiana se
arriscar!
—
E quem disse que ela não sabia, moleque?
Os
dois estavam a ponto de se engalfinharem, quando a vidente disse pela janela
aberta de sua porta:
—
Estou vendo... outra cerimônia... é parecida com a do STF...
Os
dois acabaram esquecendo a quase briga e se aproximaram.
—
Uma caveira de burro, um altar escavado na parede de rocha... velas pretas ao
lado dela, é pequena também...
O
culto reunia dez pessoas de preto, e com as energias residuais do Fusca sua
vidência era ampliada. Tatiana desta vez deu nomes:
—
Senador Salin Dorneles... deputado Manuel Rabello... quatro pessoas de
branco... mulheres que se descobrem agora, estão sem roupa... uma delas é a
deputada Tânia Cardoso.
—
Meu informante me disse que do culto sempre participa o presidente do Senado,
ou o da Câmara de Deputados, ou os dois – comentou João. – Assessores poderosos
e influentes também, e funcionários de carreira do Congresso.
—
Esse povo nunca larga o osso – comentou Daniel.
Cada
um dos líderes do culto ficou com duas das mulheres, em um canto com duas camas
de tamanho grande com lençóis e almofadas luxuosas. Os dois prestavam atenção à
descrição de Tatiana, quando Daniel foi agarrado e lançado para trás.
O
jovem Caçador se ergueu depressa e viu um sujeito jovem como ele, engravatado e
de terno. Este abriu a boca e ficaram nítidos dois caninos se prolongando em um
tamanho anormal.
Daniel
puxou do bolso um canivete que abriu, expondo a lâmina afiadíssima de prata.
Uma lâmina menor na outra ponta e um espigão que sobressaía entre os dedos do
Caçador quando empunhou a arma completavam o conjunto.
—
Vampiro, você escolheu a hora errada para aparecer!
Dizendo
isso, Daniel partiu para cima do monstro. Acertou um soco que abriu um profundo
rasgo em sua face e deslocou sua mandíbula. O vampiro deu um golpe, mas o jovem
se desviou e acertou uma punhalada no peito dele. A prata consagrada não
mataria o vampiro mas causava intensa dor, e o monstro o derrubou com outro
golpe.
Enquanto
eles lutavam João correu para o lado do motorista do carro e enfiou o braço em
sua mochila que estava no banco de trás. Puxou da bainha a espada que havia
trazido e avançou contra o vampiro. Daniel ainda lutava com este, e quando viu
João se aproximando procurou distrair o monstro, apunhalando-o diversas vezes e
escapulindo de seus golpes.
João
se aproximou rápido pelas costas do vampiro e desferiu um só golpe com sua
espada. O monstro foi decapitado, a cabeça caiu e rolou pelo chão enquanto se
desfazia em pó, e o corpo estrebuchou antes de tombar e também se desfazer.
Os
dois olharam para onde o monstro estava um momento antes, ofegantes. Daniel
perguntou:
—
Que raios, de onde veio essa coisa?
João
espetou a espada no solo do gramado onde estavam, respirou fundo e acendeu um
cigarro de palha. Respondeu:
—
Esse aí era meu contato... Alguém deve ter desconfiado e tomado providências.
Canalhas.
Soltou
baforadas e pegou a espada. Uma katana que chamou a atenção, pela riqueza e
beleza de detalhes, de Daniel. O velho Caçador completou:
—
Uma Sadayoshi, feita por um dos únicos orientais da comunidade dos Caçadores.
Bom sujeito, grande amigo.
Tatiana
continuava concentrada. E fez outra coisa incomum: falou com Daniel quase de
forma normal, ainda de olhos fechados:
—
Daniel, não se preocupe. Consigo controlar isso. Entrem vocês dois aqui.
Depois
que João se acomodou no banco traseiro e Daniel no assento do motorista, mais
uma coisa surpreendente aconteceu. Imagens surgiram esmaecidas no para-brisas
do Fuscão, e eles puderam contemplar a cena descrita antes pela vidente. Depois
de finalizado o culto as mulheres foram conduzidas até gabinetes, se vestiram e
saíram como se não houvesse acontecido nada. A deputada Cardoso chegou mesmo a
sair conversando com o colega Rabello, que antes a havia violado durante o
culto blasfemo.
A
imagem mudou, mostrando a Praça dos Três Poderes vista do alto. Energias fluíam
entre o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal, entre as duas Caveiras
de Burro mantidas em seus subterrâneos. Rastros dessas energias de trevas e
escuridão fluíam até o Palácio do Planalto, mas eram muito mais tênues.
Correntes desse mesmo fluxo se dirigiam a outros lugares, e João explicou:
—
Ouvimos boatos entre os Caçadores de que fizeram algum feitiço, talvez mesmo
até enterraram outra Caveira de Burro perto da sede da Polícia Federal. Isso
pode ter acontecido depois que aquela turma de Curitiba, o juiz e os
procuradores, começou a desafiar os ladrões e corruptos do país.
Tatiana
abriu os olhos finalmente, esfregou o rosto e tomou água de uma garrafa que
estava a seus pés ao lado de sua bolsa. No momento em que interrompeu a intensa
concentração o brilho esverdeado que permeava o Fuscão desapareceu. Respirou
fundo algumas vezes e disse:
—
Sempre foram três Caveiras de Burro. Durante a construção de Brasília uma burro
fêmea foi sacrificada em uma cerimônia de magia negra, e com ela suas duas
crias de alguns meses de vida. Uma Caveira Mestre e duas satélites, enterradas
e veneradas aqui, no centro de poder do país.
Os
dois a ouviam atentamente. Tatiana bebeu novamente, olhou para eles e completou:
—
A Caveira Mestre foi tirada daqui em algum ponto da metade dos anos 80. Foi
mantida nas proximidades, mas não consegui encontrá-la. As energias presentes
aqui no Fuscão me permitiram ver tudo isso e muita coisa mais, mas há um limite
para o alcance de minha visão, mesmo assim. Além dos feitiços que sempre
acompanham cada passo que essa gente dá.
Tatiana
se virou para João e disse:
—
Obrigada, João. Você fez o que era certo. Nós, os Caçadores, precisávamos saber
disso!
—
Mas ninguém sabe onde a Caveira Mestre está – objetou Daniel.
Tatiana
se virou para ele, tomou seu rosto nas mãos e o beijou com ardor. O rapaz não
sentiu mais qualquer indício de que energias da escuridão estivessem presentes
ali. Compreendeu que aquilo havia representado um crescimento e tanto para sua
amada, e que finalmente disse:
—
Os Caçadores estão espalhados por todo o país, meu amor. Um dia vamos achá-la!
Pararam
em um grande posto de gasolina com restaurante na beira da estrada para comerem
alguma coisa, e na hora das despedidas João disse:
—
Desculpem, crianças. Deveria ter avisado vocês.
—
Tudo bem, João – disse Tatiana dando-lhe um abraço. – Terminou por valer a
pena.
—
Sim, agora sabemos bem mais sobre tudo isso – completou Daniel. – Mas da
próxima vez vê se avisa, hein?
—
Vou fazer isso, Daniel, pode deixar. Dá um abraço na sua avó por mim.
—
Depois da bronca que vamos tomar? Claro!
—
Ah, ela vai é ficar feliz! Descobrimos algo que nem ela nem Esmeralda
conseguiram!
—
Não sei se eu ficaria tão confiante assim – comentou Tatiana.
—
E vocês cuidado com esse portal das trevas ambulante.
—
Cruz de pau-brasil pendurada no retrovisor interno – respondeu Daniel. – Vó
Nena certamente dará uma solução definitiva.
João
fez que sim e embarcou na Kombi depois de trocar um aperto de mão com o rapaz.
O motor falhou algumas vezes mas terminou pegando.
—
Vai pra onde agora? – quis saber Daniel.
—
Pensei em dar uma passada no Mato Grosso, tem uns amigos Caçadores com
problemas com bichos-homens, e vamos ver se damos um jeito nos desgramados.
—
Se cuida, João.
—
Vocês também, crianças. Até mais!
A
Kombi amarela foi se afastando, tomou uma saída lateral e por fim desapareceu
na noite.
—
É sério o que disse? – perguntou Daniel entrando no Fusca vermelho. – Vó Nena
já sabe o que descobrimos?
—
Você ainda não aprendeu a nunca subestimar sua avó, querido?
Tatiana
sorria para ele. Daniel, encucado, ligou o Fuscão e eles mergulharam na noite
da estrada.
Vó
Nena rezou um terço, recitou cantigas que eram na verdade antigos feitiços, e
depois colocou duas medalhas no painel do Fuscão vermelho. Presas por ímãs as
peças traziam as imagens de São Jorge e Nossa Senhora. A anciã saiu do carro e
Daniel fechou a porta. Depois o jovem segurou a mão de Tatiana e seguiram
silenciosamente atrás da Caçadora.
Nesse
momento Vó Nena se virou e disse:
—
Mas que porra vocês estavam pensando!? Ir assim praquele lugar de trevas e
escuridão como se fosse um passeio?
Os
dois continuaram de mãos dadas e em silêncio. Ela continuou:
—
Até você, Tatiana? Sempre te achei mais madura e sensata que esses moleques
desses meus netos!
—
Mas Vó Nena, – começou Tatiana – o que descobrimos...
—
Acha mesmo, menina, que eu não sabia?
Depois
de finalmente se instalarem na sala da casa, Vó Nena prosseguiu:
—
O João é muito mais esperto do que parece! Sim senhor, eu desconfiava que o
Fuscão pudesse ter retido alguma energia, seja do Casarão da Rua das Dores,
seja do Morro dos Uivos, até mesmo das crias tentaculares daquela noite. Nem
faz tanto tempo assim... O João foi esperto mesmo!
E,
brandindo sua bengala de pau-brasil a apontou para os dois:
—
O que não é desculpa para terem passado por tamanho risco, moleques!
—
Vó... – disse Daniel, inseguro. – Como descobriu?
—
Como? Com Esmeralda, é claro! Aquela lá era mesmo especial, vocês nem fazem
ideia! A última vez que fomos juntas a Brasília foi numa abertura de ano
legislativo, quando todos os putos estão reunidos, e claro que as energias das
trevas aumentam e muito. E Esmeralda viu as mesmas coisas. Os cultos profanos
na porra do Supremo e também debaixo daquele antro de escuridão do Congresso. E
na época havia sinais fortes também no pardieiro do Planalto!
—
E não tentaram fazer nada, Vó? – perguntou Tatiana.
Nena,
sentada em sua poltrona vermelha preferida, apoiou as duas mãos na bengala que
um dia foi da amiga vidente. Ficou em silêncio por algum tempo e depois
respondeu:
—
Sua avó Esmeralda, minha filha, se esforçou muito nesse dia e teve um colapso.
Desmaiou e tive que pedir ajuda, e passamos dois dias no hospital até ela se
recuperar.
Os
dois jovens ficaram assombrados. Tatiana levou as mãos à boca e seus olhos se
encheram de lágrimas. Nena, pela primeira vez, olhou para os dois com ternura e
carinho, depois seu olhar se perdeu na distância, relembrando aqueles tempos.
—
Nunca contamos para o restante dos Caçadores. Não acreditariam em nós, pois a
lenda fala de uma Caveira de Burro. Não de uma fêmea e seus dois filhotes
jovens. É por isso, inclusive, que os filhos da puta que participam do culto
são homens, para equilibrar as energias e garantir que as trevas continuem mais
fortes.
Nena
ficou em silêncio mais algum tempo. Tatiana, enfim, disse ainda chorando:
—
Vó, desculpa, eu não sabia...
—
Tudo bem, filha – disse a anciã saindo da poltrona e vindo sentar com eles no
sofá. – Vou contar uma coisa a vocês: a Caveira de Burro é um troço horrível,
onde derramaram toda a maldade e malícia possíveis. Coisa de gente ruim que nem
deveria ser chamada de gente em primeiro lugar!
Depois
de mais uma pausa continuou:
—
Mas nem precisaríamos nos preocupar com ela, essa abominação não teria o poder
que tem, se esse povinho de merda votasse direito! Puta que pariu, entra
eleição sai eleição, um merda como o Salim Dornelles está sempre lá! Esse aí e
todos os outros cretinos que continuam usufruindo de suas mamatas!
—
Se houvesse ao menos uma maioria de políticos, de juízes, de funcionários
públicos que quisessem mesmo o bem do povo, essa porra dessa Caveira de Burro
já teria perdido seu poder faz tempo! É como o Grande Inimigo, meninos! Ele, o
coisa-ruim que aproveita a mania do brasileiro de levar vantagem em tudo, já
teria voltado pros quintos dos infernos de onde saiu se esse povo tivesse
vergonha na cara e parasse de votar nos mesmos filhos da puta de sempre. Não
admira as energias das trevas que essa cidade amaldiçoada exala!
—
Claro que já ouviram dizer que esses bostas providenciam dificuldades para
depois vender facilidades. E é assim mesmo! Oposição, situação, acha que estão
ligando pro povo? Estão se lixando pra ele! Um dia estão de um jeito, outro dia
invertem, tudo que interessa é continuar enganando e explorando o país, e ainda
tem idiotas que brigam por políticos!
Nena
se levantou e andou até a grande janela. O pôr do Sol já tingia o céu com
belíssimas cores. Ela suspirou e concluiu:
—
Meninos, a verdade é que existe gente que é muito pior, muito pior mesmo que
qualquer monstro ou assombração que caçamos...
Ouviram
barulho de motor lá fora, e em seguida Samuel, irmão mais novo de Daniel,
entrou. Olhou para todos e disse:
—
Oi! Todos em casa finalmente! Tudo bem?
Lá
fora estavam estacionados lado a lado o Fusca Azul e o Fuscão vermelho. Os
faróis do primeiro brilharam levemente em um tom vermelho. Já os do outro carro
foram tomados por um tênue brilho esverdeado.
Em
um gabinete em um dos Ministérios, dois homens de terno examinavam fotografias.
Nelas aparecia um Fusca vermelho com uma jovem dentro, enquanto fora do carro,
no gramado, três homens se enfrentavam. Um deles chegou com uma espada por trás
do que estava de terno e cortou sua cabeça. Na sequência seguinte o corpo
simplesmente sumiu.
—
Mas o relatório não falava que o tal Fusca era azul? E por que não temos um
filme disto?
—
Até parece que você não conhece nossa situação no tocante a verbas.
—
O que sabemos dessa gente?
O
outro acendeu um cigarro, colocou os pés sobre a mesa e se refestelou em sua
cadeira. Respondeu:
—
Conhecemos alguns que parecem se envolver na caçada a essas criaturas no
sudeste e aqui no centro-oeste. Depois de terem saído daqui não sabemos para
onde esses três foram.
—
Ele já sabe?
O
outro soltou baforadas e terminou por apagar o cigarro em um cinzeiro já cheio
de bitucas. Respondeu:
—
Como se você também não fizesse questão de falar com ele o mínimo necessário.
Aquela voz rouca dele sempre incomodou todo mundo com quem trabalhou. O homem é
quase uma lenda aqui em Brasília, dizem que conhece mais segredos do que
qualquer um.
—
O que fazemos, então?
Os
dois se entreolharam e por fim o outro disse:
— Mande essas fotos pela secretária. É para isso que ela é paga.
Esta é uma obra de ficção. Toda e qualquer semelhança suposta e alegadamente maliciosa com pessoas vivas ou mortas não passará de coincidência.
Vó Nena e os Caçadores retornarão.
Até a próxima!