quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

CÉU DE GUERRA: UMA NOVA AURORA


 

Sudeste da Inglaterra, 1 de janeiro de 1945.

A esquadrilha que invadira o espaço aéreo inglês era composta por seis bombardeiros Junkers Ju-88 de um novo tipo, que sequer havia recebido uma designação ainda. Eram acompanhados por dois dos novos bombardeiros a jato Arado Ar-234 Blitz, e quatro caças Messerschmidt Me-262.

Os versáteis Ju-88 traziam abaixo de cada asa cilindros que eram, na verdade, turbinas Junkers Jumo especialmente adaptadas, seguindo o modelo hibrido que a Inteligência alemã, apesar da crescente e alarmante carência de recursos, conseguira detectar em algumas aeronaves que os Aliados vinham usando. Com o misterioso desaparecimento recente do cientista Viggenstein, restara ao Alto Comando do Reich ordenar aquele tipo de medida desesperada.

O alvo daquela formação era a principal base em solo inglês onde eram realizadas as mais avançadas pesquisas em tecnologia e Inteligência. Antes de sumir, o cientista havia transmitido ao comando nazista as informações a respeito de sua localização, e esperava-se que aquela investida, em meio àquelas semanas em que os combates na Europa haviam arrefecido por conta das festividades de final de ano, pudesse surpreender os inimigos.

Um dos Me-262, biposto e dotado de radar, subitamente deu o alarme. Quatro aeronaves se aproximavam à frente do grupo, em curso de interceptação. Porém, sua velocidade era baixa, o que fez os oficiais mais graduados daquele grupo de ataque sorrir. A utilização de força total nos propulsores foi ordenada, e todas as aeronaves ganharam altitude. Daquela posição vantajosa os Messerschmidt a jato teriam a velocidade a seu lado, e os lentos interceptadores não teriam qualquer chance.



Base Ouro, nordeste de Oxford, Inglaterra.

Desde os incríveis acontecimentos entre julho e agosto passados, a vida de Ricardo Almeida havia mudado.



Suas responsabilidades como líder daquela base especial haviam aumentado com sua promoção a major, especialmente depois que Denise Landron fora transferida para uma unidade equipada com jatos Gloster Meteor, baseada na França. A tenente era agora líder de grupo, e já havia tomado parte em várias escaramuças contra Me-262 alemães e outros aviões avançados que os nazistas, no esforço de reverter a maré da guerra, vinham lançando nos últimos meses.

- Sim, secretário Malfoy, tenho pleno conhecimento da invasão do espaço aéreo por parte do inimigo. Como talvez saiba, os radares da Base Ouro são os mais avançados de que os Aliados dispõem.

Ricardo aguardou o que Malfoy dizia do outro lado da linha, gastando suas últimas reservas de paciência. Aquele sujeito havia sido apontado para o Alto Comando britânico por suas ligações políticas, o que já dizia quase tudo que se precisava saber sobre ele.

- Secretário – respondeu Almeida – seguramente sabe muito bem que até mesmo o Primeiro-Ministro Churchill foi contra a ideia de enviar nossos melhores grupos aéreos para as bases na França. As defesas da Inglaterra em seu próprio território ficaram enfraquecidas, graças à crença de que os nazistas estão nas últimas.

O político continuou vociferando coisas como hierarquia, cumprimento do dever e outros conceitos que ele próprio, seguramente, deixava de lado quando pensava em sua própria carreira. O brasileiro, enfim, interrompeu:

- Malfoy, esta situação surgiu graças à incompetência de tipinhos como você. Mas fique tranquilo, aqui na Base Ouro valorizamos quem tem talento e capacidade, ao contrário do que acontece na arena política onde você tem se dado tão bem. A situação com os invasores está tendo o tratamento adequado, fique tranquilo.

Ricardo desligou sem dar tempo que o outro respondesse. Certamente iria depois tomar algum tipo de reprimenda, mas seu prestígio depois dos eventos entre julho e agosto era quase garantia de que tudo continuaria como sempre esteve desde 1940, ano de sua incorporação à Real Força Aérea e a criação do então Grupo Ouro.

O major saiu de seu escritório e correu até a torre de controle. Pelas últimas informações os alemães estavam a ponto de detectar os interceptadores.

Entrou na sala repleta de equipamentos eletrônicos, telas de radar e do pessoal que os operava. Um e outro ameaçou ficar em pé para bater continência mas com um gesto ele pediu que continuassem o trabalho. Uma sargento lhe fez um sinal e depois apontou para sua tela:

- Major, os alemães subiram para 8.000 m de altitude, e os caças se separaram do grupo, avançando contra os interceptadores.

- Então estão mordendo a isca. Acho que Tony resolverá essa situação bem depressa.


O combate foi mais rápido e brutal do que esperavam.

Os alemães foram apanhados completamente desprevenidos pelas aeronaves híbridas do Esquadrão Ouro. Seus Me-262 mergulharam contra o que acreditavam serem interceptadores bimotores lentos, e foram surpreendidos quando os quatro Dumont D-84, bimotores a pistão construídos pela empresa brasileira fundada por Santos Dumont, acionaram eles próprios seus motores a jato auxiliares e quebraram formação.

Um deles se dirigiu diretamente ao Me-262 mais próximo, disparando com seus quatro canhões de 20 mm. O jato inimigo explodiu no ar.

Outros D-84 da mesma versão de caça pesado estavam aguardando próximo dos 10.000 m de altitude, e mergulharam sobre a formação de bombardeiros. Os Ju-88 não tiveram como escapar, porém dois deles conseguiram realizar pousos forçados, após o que suas tripulações se renderam às forças em terra.

Os Ar-234 mergulharam e passaram a voar rente ao solo, tentando enganar a cobertura dos radares britânicos. Mas nessa posição tinham pouquíssima manobrabilidade, o que os colocou a mercê dos Mustang P-51 comandados pelo tenente Tony Reynolds. O grupo de oito caças se dividiu em quatro duplas, acionaram suas turbinas auxiliares e perseguiram os invasores.



Os Blitz foram atingidos, e também um deles terminou por fazer um pouso forçado, com o piloto igualmente se rendendo às forças em terra.


Tony escrevia seu relatório, como era habitual, na sala de reuniões do prédio de administração da base. Ergueu os olhos quando Ricardo entrou, ficou em pé e bateu continência antes que o major tivesse tempo de lhe dispensar a saudação.

- Fique à vontade tenente – disse Almeida se sentando na ponta do palco.

Reynolds ocupava uma cadeira na fileira da frente, e em poucos minutos terminou de escrever. Entregou a folha ao major, que deu uma rápida passada de olhos e a depositou a seu lado.

- Então?

- Nada demais, senhor – começou a responder Tony. – Nosso pessoal continua muito bem preparado. Tem valido a pena manter o treinamento.

O tenente ficou em silêncio por um momento, e depois acrescentou:

- Os Me-262 deram um pouco de trabalho. Mesmo que nossos Mustang estejam sempre com a manutenção e os aprimoramentos em dia, o jato alemão sempre vai ser mais rápido. E nossa sorte é que o pessoal que os pilota tem mostrado queda de qualidade a cada nova batalha.

Ricardo continuou em silêncio, olhando para baixo. Tony sabia das preocupações que tomavam a maior parte do tempo de seu superior, mas sabia também que esperava que ele fosse o mais honesto possível.

- Se pelo menos eles permitissem que usássemos os novos jatos...

Almeida suspirou, ergueu o rosto e encarou o tenente. Abriu a boca para dizer algo, mas permaneceu em silêncio. Finalmente disse:

- Eu sei, tenente. Tenho brigado todos os dias, sempre com um sujeito diferente. Os Meteor, apesar de todos os problemas, conforme Denise tem comunicado nos raros contatos que consegue ter conosco, têm ido bem. Infelizmente a produção continua em ritmo lento, e eles têm preferido enviar os exemplares para a linha de frente no continente.

Os americanos, por sua vez, haviam começado a experimentar algumas poucas unidades de seu novo jato, o P-80 Shooting Star. Era um tipo totalmente novo, com uma só turbina, cujos testes aparentemente estavam sendo muito satisfatórios. Tony se lembrava do protótipo desse caça, que experimentaram na Base Ouro poucos meses antes.

- É verdade, major, um belo avião – comentou o tenente oriundo do grupo Red Tails, onde tivera destacada participação. – Mas o pessoal têm comentado ainda que há questões políticas que impedem que recebamos essas aeronaves.



- E como há, tenente! – comentou Ricardo levantando e andando pela sala. – Temos várias nacionalidades de pilotos e pessoal aqui na Base Ouro, que deveria ser um local de treinamento e pesquisa de elite, além de uma escola para os anos futuros, depois que a guerra acabar. E os políticos de todos os lados, o que fazem? Impedem que recebamos equipamentos mais avançados, por medo de sua tecnologia cair nas mãos de outras nações.

Os dois ficaram em silêncio por algum tempo, até que Ricardo se virou para Tony, apanhou o relatório recém-escrito e disse:

- Descanse, tenente. Você tem trabalhado sem parar desde que voltou em setembro. E claro, Feliz Ano Novo.

- Feliz Ano Novo, major.

Tony ficou ainda algum tempo pensando na sala de reuniões depois que Ricardo saiu.


Ricardo arquivou o relatório de Tony junto aos demais do grupo que participara da batalha. O piloto do Mustang que atingira o Me-262 biposto, dotado de radar, havia descrito algo aterrador. O jato alemão tivera uma das turbinas danificada e vinha para um pouso de emergência em campo aberto. O tenente da Base Ouro, voando a seu lado, relatou como o operador de radar, seriamente ferido no assento traseiro, havia empunhado uma pistola e atirado na cabeça do piloto. O avião mergulhou e explodiu no choque contra o solo.

O major brasileiro sempre se sentia terrivelmente mal ao se lembrar do fanatismo de muitos dos soldados e pilotos alemães que enfrentavam. O mesmo fanatismo que produzira a hecatombe da guerra que ainda travavam, e que ainda ameaçava cobrir o mundo com a escuridão do totalitarismo. 

No Brasil, pelo contrário, os surpreendentes eventos de poucos meses antes produziram resultados notáveis. O fim do governo ditatorial causou um impressionante florescimento cultural e social, e impulsionada pela Aeronáutica Dumont, a economia do país havia crescido em ritmo vertiginoso naqueles últimos três meses. O governo provisório restabelecera a liberdade de imprensa e expressão, e os crimes do regime anterior estavam sendo esmiuçados de uma forma impossível pouco tempo antes. Eleições estavam sendo organizadas para o segundo semestre de 1945, e o país respirava a liberdade e a democracia ansiadas havia tanto tempo.

Ricardo suspirou. Quem sabe, dessa forma, quando a guerra terminasse ele poderia finalmente voltar para casa.


O major procurou o engenheiro-chefe da Base Ouro, Matheus Kirk, no grande hangar principal que era o maior edifício da instalação.

Foi encontrar Matheus em um canto, atrás de um P-47 Thunderbolt que havia sido convertido para acomodar a turbina auxiliar Mattarazzo J-3, fabricada em São Paulo pela Mecânica Mattarazzo, comum a todos os tipos híbridos utilizados pela Base Ouro. E ele não estava sozinho.

O engenheiro abraçava e beijava ardentemente uma moça com uniforme de oficial. Ricardo, surpreso, observou a cena por alguns segundos.

As mãos de ambos passeavam pelo corpo um do outro, e pelo cabelo escuro e curto o major reconheceu a tenente Sara Morris, do serviço de Inteligência. O casal tornou a se abraçar, trocando um longo e apaixonado beijo, quando casualmente Matheus abriu os olhos.

Largou Sara no mesmo instante. A tenente ficou olhando para ele surpresa, mas quando percebeu que a atenção de Kirk estava integralmente para um ponto distante, a moça se virou lentamente. Arregalou os olhos ao dar com Almeida, ficou em posição de sentido e bateu continência.

- Major Almeida! – conseguiu dizer com voz decidida.

- Tenente Morris – respondeu Ricardo sorrindo.

A tenente não sabia onde pôr as mãos. Então se apressou em arrumar o cabelo ligeiramente desgrenhado, ajeitou a saia que subira com o entusiasmo dos dois, e por fim disse:

- Está tarde, e meu horário de folga terminou – olhou o relógio de pulso para reforçar. – Com licença, major Almeida!



Sara saiu andando depressa. Kirk se manteve na mesma posição, enquanto Ricardo se aproximou. O olhar do engenheiro se dividia entre a garota que desaparecia na distância e o amigo brasileiro.

Finalmente Almeida riu, enquanto Matheus disse:

- Pôxa, Ricardo, agora que conseguimos um tempo só para nós!

- E resolveram aproveitar que nesta hora do dia o hangar fica praticamente deserto, não é?

Kirk desconversou, arrumou a camisa que estava amassada, vestiu a jaqueta que fora jogada em um canto e saiu andando. Ricardo o acompanhou, e o engenheiro parou diante de duas aeronaves que haviam chegado após o Natal.

- Dumont D-115. Deve se lembrar dele depois de nossa recente visita ao Brasil.

Almeida se aproximou, deslizou a mão pela longa e afilada fuselagem, e admirou as linhas revolucionárias do caça a jato brasileiro. Os canards dianteiros, as curtas e largas asas em diedro, e as três turbinas J-3 na parte traseira.

- É, lembro sim – disse o major com tom saudosista na voz.

Suas memórias correram para os extraordinários dias passados no Brasil, o encontro deles com o Professor, e tudo mais que ocorrera. Eles haviam possivelmente vencido a guerra para os Aliados ao derrotarem a colossal ameaça que enfrentaram, e pouquíssimas pessoas sabiam o que de fato aconteceu naqueles dias.

- A cada dia que passa fico mais fulo com os burocratas do Alto Comando, que ainda não nos deram permissão de voar com estas duas belezas! – comentou Kirk. – Nunca precisamos desse tipo de coisa antes. Caramba, a Base Ouro alterou o rumo da guerra, e podemos muito bem ter garantido a vitória para nós! É isso que merecemos?



Os dois caças exibiam somente o cinza da base com que haviam sido pintados. Não tinham insígnia ou números de identificação, isso porque a burocracia, desejando privilegiar máquinas inglesas, alegava que já havia aeronaves importadas demais na Base Ouro. Porém, a indústria britânica continuava sobrecarregada, vindo daí a necessidade de importar equipamentos.

O primeiro-ministro Winston Churchill bem que tentava, pressionando sua equipe a buscar uma solução. Mas a burocracia, acreditando que o final da guerra estava próximo, aproveitava para deixar de lado qualquer escrúpulo e retomar seu comportamento habitual, levando em conta a política e não a realidade. E, atarefado com todos os assuntos que diziam respeito à administração do país e também do esforço de derrotar o nazismo, não se poderia pedir mais a Churchill.

- Um dos rapazes que interceptou os alemães hoje de manhã me perguntou quando poderemos voar com estes – comentou Ricardo. – Afirmou que só com estes dois poderiam ter dado cabo de todo o grupo sem demora.

- A depender dos burocratas não teríamos agido contra o cientista doido – respondeu Kirk. – Claro que enfrentamos oposição, mas conseguimos fazer o que precisava ser feito. Agora, temo que iremos enfrentar cada vez mais obstáculos que nada dizem respeito à solução dos problemas reais que precisamos resolver.

- E falando em problemas – comentou Ricardo – quero perguntar uma coisa.

Chamou o engenheiro para um canto mais discreto do hangar e disse em voz baixa:

- Continuam chegando aqueles relatórios esquisitos, as tais luzes estranhas que os americanos chamam de foo-fighters?

- Quase todo dia, conforme meus contatos no setor de Inteligência – devolveu Kirk. – Sara estava me dizendo que o pessoal está muito preocupado, e boa parte deles acredita ser uma nova arma alemã.

- Se é uma nova arma por que ficam somente voando ao lado de nossos caças e bombardeiros? O máximo que fazem é vir de encontro aos aviões e desviar no último instante, conforme os relatos. E quando os pilotos tentam segui-los logo desaparecem, com velocidades que nem mesmo nossos jatos conseguem igualar.

- Não acredito que sejam armas alemãs. Do jeito que estamos destruindo sua indústria e suas capacidades, não vejo como eles possam fabricar esses objetos. Poderiam ser até fenômenos naturais, caso não exibissem inteligência ao manobrarem para acompanhar e se evadir de nossas aeronaves.

Os dois ficaram em silêncio por algum tempo, e Ricardo por fim comentou:

- Ouvi rumores que os alemães também viram essas coisas. E se for verdade? Se não são nossas e nem deles, de quem são?



Kirk abriu a boca para responder, mas desistiu na mesma hora. Os dois saíram andando pelo hangar, observando o pessoal que retornava para mais um turno de trabalho. Um sargento chegou em meio ao pessoal técnico, olhou ao redor e pareceu satisfeito por ver Almeida. Aproximou-se andando rápido, bateu continência e disse:

- Major Almeida, correspondência que acabou de chegar para o senhor. Como tem um carimbo de urgente preferi vir entregar pessoalmente.

Estendeu o pacote para Ricardo, que agradeceu e o dispensou. O sargento se retirou enquanto Matheus, curioso, esticou o pescoço para olhar.

- Estou lendo o nome de Valentina aí!?

De fato, abaixo do nome da repórter constava seu endereço em Nova York. Ricardo ficou parado, olhando para aquilo, até que o engenheiro disse:

- Como é, não vai abrir?

Ricardo pareceu acordar, olhou para Matheus e sorriu. Enfiou o pacote no bolso da jaqueta e saiu andando.

- Vocês têm trocado muita correspondência nos últimos tempos, não é? Talvez seja algo especial que ela te mandou pelo final do ano.

O major se virou, sorriu de novo, depois retomou seu caminho. Aquele pacote era incomum, e ele queria privacidade quando o abrisse.

Matheus observou seu superior se afastar, e passou os olhos pelo hangar. Entre os vários veículos ali dispostos estavam vários que haviam sido capturados dos alemães. Decidiu voltar a examinar aqueles interessantes carros que haviam sido trazidos da França na semana anterior, e chamados de Kübelwagen e Kommandeurwagen.



Eles haviam sido abandonados intactos com a debandada alemã da França após o Dia D. E Matheus, desde o começo, ficou fascinado por sua construção simples e robusta, pela mecânica refrigerada a ar, e pela carroceria arredondada do último. Sabia que era derivado do tal Volksauto ou KDF-Wagen que deveria ser o Carro do Povo alemão, e ficou pensando se seria um bom carro particular.




Nova York, sede do East Coast Tribune.

- Agentes Smith e Harrison, isso é totalmente irregular e ilegal!

O editor-chefe do Tribune, Maximillian Scott, estava indignado. Os dois agentes do FBI haviam entrado no prédio e se dirigiram diretamente ao escritório de Valentina Sheridan, sua melhor jornalista.

Ambos estavam procedendo a uma rápida mas minuciosa busca no aposento, examinando gavetas, deslocando arquivos e outros móveis e procurando no assoalho por tábuas soltas que poderiam denunciar um esconderijo secreto.

- Senhor Scott, o FBI agradece sua cooperação – disse Harrison.

- Não estou cooperando com nada! – exasperou-se o editor. – Estou protestando contra esta invasão, pois os senhores entraram no meu jornal e estão vasculhando o escritório de minha repórter sem sequer exibir um mandado ou qualquer outro documento.

- São tempos de guerra, senhor Scott – comentou Harrison, cujo rosto era tão duro e inexpressivo quando o de Smith. – O Bureau está preocupado com certos rumores a respeito da recente viagem da senhorita Sheridan para a Europa.

Maximillian ia novamente protestar, quando sons vindos de fora chamaram a atenção dos três. Eles se viraram para a porta, prestando atenção.

Era o som de passos vindo do corredor. E de sapatos de mulher.



A porta se abriu, e Valentina Sheridan ficou parada, encarando os homens em seu escritório. Era bonita, alta e curvilínea, o cabelo loiro despontando por baixo do chapéu e caindo em cachos pelos ombros.

- Bom dia rapazes. E Feliz Ano Novo!

A moça entrou, andando sedutoramente ao som de seus sapatos de salto alto de encontro ao piso. Desviou-se do agente Smith, tirou o trench coat que vestia e o jogou no sofá que ocupava parte da parede dos fundos.

Vestia uma blusa justa e uma saia longa e rodada, e usava um colar que parecia totalmente incompatível com aqueles duros tempos de guerra. Sentou-se em sua cadeira giratória depois de tirar o chapéu e jogá-lo sobre o casaco, observou a mesa com arquivos, pastas e papéis que haviam sido mexidos, mas não desordenados, as gavetas abertas, e parou por alguns instantes na expressão aflita de Maximillian.

Em seguida girou a cadeira, ficando frente a frente com os dois homens do FBI. Cruzou as pernas de forma elegante, como uma musa de cinema, e ficou encarando todos.



- Então, alguém vai me explicar por que tive que interromper meu descanso, depois de uma agitada festa de reveillon, ao ser informada que o FBI estava bisbilhotando meu escritório?

Scott, agora, estava apavorado com outra coisa. Valentina era sua melhor jornalista. Mas era também a mais atrevida e indisciplinada, além de não ter o menor pudor em bater de frente com a hierarquia. Já havia se colocado em situações comprometedoras antes, mas sempre utilizara sua inteligência, astúcia e charme para se safar. Quase sempre retornando com uma reportagem incrível, que os leitores comentavam semanas a fio.

Mas havia algo desta vez, na determinação e nas palavras daqueles homens, que faziam o editor considerar que os tempos estavam mudando. E não necessariamente para melhor.

- O FBI está preocupado, senhorita Sheridan.

- Comigo? É muito lisonjeiro, agente Harrison. Mas como pode ver, retornei sã e salva de minha mais recente visita ao front europeu.

- Essa é a questão, senhorita – disse Smith. – Naturalmente o Bureau acompanha tudo que sai na imprensa, especialmente no tocante ao esforço de guerra, e as notícias das batalhas.

- E?

- E foi somente isso que a senhorita tem publicado em seus artigos recentes, desde sua viagem.

- Esse é o trabalho de um jornalista, agente. Ir até onde está a notícia, colher informações, de preferência em primeira mão, e escrever a respeito para o entendimento e deleite de seus leitores.

Os dois agentes se entreolharam, e Smith disse:

- O FBI sabe que esteve na Base Ouro, senhorita Sheridan. A principal unidade de Inteligência e desenvolvimento tecnológico dos Aliados na Europa.

- Esperava que eu revelasse alguns dos segredos com os quais travei contato ali? Sou uma jornalista responsável, agente Smith!

Os dois homens do FBI novamente trocaram olhares, e Valentina, sorrindo de forma atrevida, disse:

- É claro que vi coisas que sei que precisam ser mantidas em segredo, por enquanto! É o que qualquer profissional patriota faria! E sim, o que escrevi em meus artigos é somente uma pequena parte do que testemunhei em minha viagem!

- E o que mais aconteceu? – perguntou Harrison.

Valentina riu, descruzou e voltou a cruzar as pernas. A barra da saia subiu um pouco, revelando seus joelhos bem feitos, mas ela nem se importou. Recostou-se na cadeira, cruzando os dedos atrás da nuca, e tornou a passear com o olhar pelo escritório, demorando-se mais nos três homens. Sempre exibindo a expressão sedutora no rosto.

Maximillian engoliu em seco, aflito por ser deixado de lado daquela forma. E furioso pela garota continuar a fazer questão de provocar seus interlocutores. O editor sentia, por rumores que ouvira nos últimos tempos, que o relacionamento de muitos órgãos do governo com a imprensa vinha se deteriorando rapidamente.

- O que mais aconteceu, agente Harrison – finalmente Valentina começou a responder, depois de aparentemente se frustrar por seu charme não parecer afetar os homens – não vem ao caso.

- O diretor do FBI... – começou a falar Harrison.

Smith se virou para ele com expressão zangada, e Valentina se endireitou na cadeira, bateu palmas e disse, com um sorriso triunfal nos lábios:

- Pronto, Maximillian querido! Está aí a verdade!

Os dois agentes finalmente exibiram alguma alteração em suas expressões antes imutáveis. Valentina considerou que havia um nítido ar de surpresa em seus rostos, e decidiu que valia a pena aumentar sua perplexidade.

- Vocês do governo realmente acham que nós, jornalistas, não fazemos nosso trabalho, não é? Os autênticos entre nós, que sabem seguir pistas até onde está a informação, ao menos!

- Não entendo, senhorita Sheridan – disse Smith tentando se recompor.

- É muito simples, agente Smith! Seu diretor, o senhor Hoover, não gosta de não saber o que está acontecendo. E garanto a vocês, há muita, mas muita coisa mesmo que ele não sabe.

Ninguém comentou nada. Maximillian fazia sinais desesperados para Valentina se conter, mas a jornalista estava em seu elemento, e prosseguiu:

- Esta guerra está mudando a face do mundo, senhores! Novas tecnologias, armas secretas, segredos da natureza até então inimagináveis... As mudanças, como vimos recentemente no Brasil, estão ocorrendo em velocidade cada vez maior! Os nazistas não vão durar muito mais tempo e então, finalmente, o mundo despertará em um novo período de paz, e com desenvolvimentos até então não imaginados!

Valentina pensou que o Professor poderia muito bem ter pronunciado aquelas palavras, ou ao menos gostado delas. Sorriu, um sorriso de alegria e triunfo. Smith, por sua vez, respondeu:

- O diretor Hoover está interessado somente na verdade, senhorita...

- À custa de perseguir jornalistas e invadir redações?

- Como comentei com o senhor Scott, é um período de guerra, e devemos tomar todas as precauções. A verdade...

- Seu chefe, agente, é um político. Gosta de posar de defensor da lei, mas só se interessa por poder e política! E a verdade não depende da vontade política!

Os agentes ficaram calados. Valentina exibiu uma caprichada expressão de triunfo, e continuou:

- A verdade também é, na maior parte das vezes, inconveniente para os políticos! A verdade pode até, eventualmente, ser abafada, censurada, contida e acobertada. Até mesmo distorcida.

Os homens não se atreviam a dizer nada. Valentina havia tomado conta da situação, e concluiu:

- Sim, podem impedir que a verdade seja publicada, mas não por muito tempo. E a verdade, como qualquer jornalista sabe, só será autêntica se vier embasada em fatos. E qualquer fato, senhores, mais cedo ou mais tarde virá para a luz.

A repórter tornou a se sentar, sem olhar para eles. Mexeu em seus papéis, verificou as gavetas da mesa e fechou todas. Depois, ainda sem erguer os olhos, disse:

- Feliz Ano Novo, senhores, e boa tarde. A porta está ali.

Agora exibindo nítida frustração, os agentes tocaram levemente as pontas dos dedos em seus chapéus a título de cumprimento e se retiraram. Maximillian ainda ficou algum tempo no escritório, absolutamente pasmo com o que havia presenciado. Depois se virou para sair, ao que Valentina finalmente ergueu o rosto, olhando para ele.

- Querido Max, claro que o aviso sobre a porta não se refere a você. Fique, vamos conversar!

O editor olhou para a bela repórter, e a tensão ainda era nítida em seu olhar. Depois se descontraiu, e quase ameaçou sorrir. Lembrou-se do que a moça havia relatado a respeito de sua incursão no front de meses antes, mas mesmo ele não sabia de tudo. Ela havia prometido que um dia não só ele, nem os leitores do Tribune, mas o mundo todo saberia.

- Você ainda me mata do coração, garota!

Maximillian olhou para Valentina, e ambos trocaram finalmente o mesmo sorriso cúmplice. O editor saiu, fechando a porta atrás de si, enquanto a jornalista recostou-se novamente na cadeira, olhando para um pequeno quadro sobre a mesa.

Ela e Ricardo em Copacabana, antes da guerra mudar o mundo.

Valentina apanhou a foto e depositou um beijo sobre a imagem de Ricardo. Aquele era seu mundo agora, um mundo de segredos que somente eles e alguns poucos conheciam. Mas o que ela queria saber mesmo era quando veria novamente o homem de sua vida.



“Querido Ricardo”, iniciava a carta de Valentina que viera junto com o caderno, “Feliz Natal e um maravilhoso Ano Novo, meu querido!”.

Ricardo se surpreendeu ao abrir o pacote e reconhecer o mesmo diário que Valentina trouxera novo em sua visita de meses antes. Folheou as páginas e as encontrou totalmente preenchidas com a caligrafia caprichada da repórter, e surpreendeu-se com os desenhos e croquis que ocupavam algumas páginas.

Estava ali um relato completo da grande aventura em que eles mergulharam entre julho e agosto passados. A explicação para aquele caderno estar em suas mãos veio na carta anexa, datada de dez de dezembro.


“Tive que pedir muitos favores para fazer este pacote chegar a suas mãos em segurança. O ambiente aqui nos Estados Unidos está beirando a paranoia, muito provavelmente por causa daquele projeto secreto com energia nuclear. Eu soube até que o nome do Matheus foi comentado como um possível recruta para o projeto.

Sei também que muitos colegas têm sido seguidos e mesmo convocados para depor. Querido, nem parece que em agosto conseguimos uma vitória essencial para os Aliados e a liberdade! Claro, são muito poucas as pessoas que sabem a respeito. Informantes meus me disseram que J. Edgar Hoover está ficando maluco, pois seu acesso a essas informações confidenciais tem sido vetado. Logo ele, que tem dossiês sobre todo mundo.

E claro, eu tenho outro caderno cheio dos segredinhos íntimos e sujos dele...

Ainda estou organizando meus pensamentos a respeito do que vivemos, Ricardo. Foi tão incrível essa aventura, o cientista maluco, o Professor...  Mas o principal de tudo foi outra coisa.

Você.

E foi esse o segundo motivo de enviar o caderno a você. O primeiro, claro, para mantê-lo em segurança com alguém em quem eu sempre confiei. O segundo e principal, uma garantia.

A garantia que, não importa o que aconteça, iremos nos ver de novo.

Os acontecimentos que testemunhamos, e de que participamos, são grandes demais, querido! Muito grandes para um mero artigo de jornal, até mesmo uma série de artigos.

E claro, não são para esta época.

Mas algum dia, que eu espero que seja em breve, essa guerra vai terminar. E aí então o mundo poderá saber o que fizemos.

Já estou planejando um livro, o meu primeiro, sobre nossa grande aventura! E claro, se as lembranças estão ainda bem frescas em minha mente, de qualquer forma eu vou precisar do diário que está agora em suas mãos como apoio e fonte de informação.

E vou precisar ainda mais de você, meu querido.

Espero que fique bem, e que em 1945 finalmente essa guerra termine. Quero você, quero que fiquemos juntos, e vou lutar muito por isso.

Saudades.

Beijos.

Eu te amo, Ricardo Almeida.

Eternamente sua,

Valentina”.


Ricardo ficou olhando por um bom tempo para a carta, a letra dela, a marca do beijo depositado logo abaixo da assinatura.

Depois se demorou ainda mais na foto que, desde agosto, ocupava um canto de sua mesa, emoldurada em um pequeno quadro.

Ele e ela, juntos na praia em Copacabana.

O major foi até a janela. Uma esquadrilha de caças noturnos Mosquito estava decolando contra o céu multicolorido produzido pelo pôr do Sol. Foram seguidos por outro grupo com os D-84 também na versão de caça noturno, que patrulhariam os céus contra possíveis incursões do inimigo.

Aquele céu sempre evocava muito saudosismo em Ricardo. Sentia falta dos tempos mais simples, sem tantos segredos e responsabilidades.



Mas, naquele mundo que mudava tão rapidamente, ele se sentia seguro por existir ao menos uma constante em sua vida.

- Eu te amo, Valentina Sheridan – ele disse enquanto o Sol desaparecia além do horizonte.


As histórias de Céu de Guerra retornarão!

Lauren Bacall como Valentina Sheridan.

John Ridgely como Ricardo Almeida.

Para encerrar este ano de 2021 que para mim teve uma excelente notícia, o lançamento de meu terceiro livro, nada melhor que uma história inédita ambientada no mesmo universo deste. Espero que tenham gostado!

Quero novamente manifestar os maiores agradecimentos à Underline Publishing, que acreditou no projeto e publicou Céu de Guerra, um livro que já está sendo muito bem comentado pelos leitores!




Lembrando mais uma vez que Céu de Guerra está disponível, em e-book e como livro físico, na Amazon Internacional e na Amazon Brasileira.

E também na distribuidora Um Livro.

Aproveitando, deixo aqui também o vídeo completo do painel A estrutura do texto em prosa e verso, que aconteceu como parte do evento Conexões Atlânticas.


Finalmente, desejo a todos os amigos e colegas escritores muita imaginação, muita liberdade criativa, e muito sucesso. E para os leitores e todos que têm me honrado com sua companhia ao longo dessa história que todos escrevemos, chamada vida, um feliz 2022 com tudo de bom e do melhor!

Até a próxima!

Um comentário:

  1. Ótima história no universo do livro. Sugiro que faça um e-book gratuito a tornando uma degustação para o livro principal!

    Parabéns pela competência e pelo ótimo universo desenvolvido.

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