segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

Vó Nena e os Caçadores: O Landau Assassino

A voz não saía da cabeça de Carlos:

- Temos sido tão felizes, Carlos, por que quer me vender? Fique comigo e vou te dar tudo que você sempre quis!

Ele precisava se esforçar para guiar o carro imenso, passando vagarosamente pelo espaço delimitado pela organização. Finalmente chegou ao ponto designado e estacionou o Landau 1975 cor de vinho ao lado de outros modelos do mesmo tipo.

- Não vá, Carlos, vamos ser felizes juntos!

- O carro está muito bonito – disse Bernardo, colecionador que possuía vários Landau em seu acervo. – Mas não estou interessado.

- Eu baixo o preço! Preciso mesmo vender, por favor!

Carlos insistia, mas o colecionador foi irredutível.

- Boa sorte, rapaz, mas não quero mesmo. Fique mais um pouco, este evento do Anhembi está sempre movimentado, vai aparecer um comprador para você, certo?

Com um sorriso Bernardo se virou para observar os demais carros. Agarrando seu braço Carlos insistiu:

- Por favor, seu Bernardo, eu abaixo ainda mais o preço!

- Sai moleque! – disse o colecionador com impaciência. – Parece doido, eu, hein?

Bernardo se afastou depressa. Carlos ficou desolado, e diante dos olhares de estranheza das pessoas ao redor entrou novamente em seu carro, amaldiçoando o momento em que o tinha comprado.

- Viu, Carlos? Ele não me quis porque não é digno de mim! Só você merece andar comigo, vamos rodar. Temos aquela festa para ir, e você ainda quer a Maitê, hein?

Carlos tentou resistir à voz sedutora em sua mente, e pensou que enlouquecia enquanto perdia suas forças. Bateu a cabeça contra o volante algumas vezes, mas quando voltou a erguer os olhos sua expressão era de devaneio.

- Isso, meu querido, vamos rodar!



O motor V-8 despertou a um giro da chave, e o Landau foi saindo da vaga.

- Sim, assim mesmo. E veja só quem está logo à frente!

Diante do logotipo quadrado na ponta do capô apareceu Bernardo, conversando com amigos enquanto atravessava a via.

O Landau acelerou e as demais pessoas correram. Instantes depois, conforme o carro se afastava aumentando a velocidade, o corpo de Bernardo jazia no chão.

- Fusca Azul! – exclamou um moleque enquanto socava outro menino ao lado.

Os dois irmãos começaram a se engalfinhar enquanto o pai achava graça. A mãe, por outro lado, ameaçou:

- Se não pararem a gente vai embora!

Os garotos pararam, mas continuaram se cutucando mesmo metros adiante. Sentado no para-lama do Fusca de Vó Nena Daniel ria, enquanto observava o movimento daquela noite na capital paulista. O evento estava cheio e todos admiravam os carros expostos.

- Fusca lindo! – disse um sujeito. – Monocromático, que ano?

- É 1962.

- Sobraram poucos desse tipo. Quer vender, garoto?

Daniel olhou para o carro, depois se voltou para o homem:

- Acredite, amigo, você não quer este carro...

O sujeito fez cara de desapontado e saiu andando, no momento em que o celular de Daniel tocou.

- Oi, alguma novidade? – disse Tatiana.

- Recusei a terceira proposta de venda, eu disse que iria fazer sucesso. E vocês?

- Ainda nada da porra do carro assassino, Daniel. – ele ouviu Vó Nena praguejando ao lado de Tatiana. – Tem certeza que a pista que seu irmão descobriu era boa?

- O sujeito anunciou na Internet um Landau a um preço baixo pra caramba, Vó. E muitas coisas esquisitas aconteceram lá na cidade dele, incluindo desaparecimentos e mortes.

- Que merda, esses demônios filhos da puta que infestam carros são umas pragas pra encontrar – praguejou a anciã.

Pelo celular Daniel ouviu vozes mais altas, e perguntou:

- O que está havendo aí?

- Alguma bagunça lá adiante, meu amor – disse Tatiana. – Vamos ver o que é.

- E é quase meia noite, temos que nos apressar – comentou ele antes de desligar.

Tatiana percebeu com seus dons de vidência que algo ruim havia acontecido. Sentiu energias maléficas, e ela e Vó Nena abriam caminho entre a multidão com dificuldade. Finalmente viram uma ambulância e paramédicos cuidando de um homem no chão. Depois de alguns minutos tentando reanimar o sujeito um deles checou seu pulso e fez um sinal negativo com a cabeça para o colega. Eles finalmente estenderam um lençol sobre o corpo, o colocaram em uma maca e o carregaram para longe.

Os poucos policiais presentes tentavam isolar a área e impedir a saída das pessoas, sem sucesso. Um pequeno grupo, que observava se afastou e Tatiana teve um pressentimento.

- Vó, vem comigo.

Depois de se aproximarem a jovem vidente chamou um dos rapazes:

- Oi, com licença, posso fazer umas perguntas?

Algumas das pessoas do grupo choravam, e um moço disse.

- Oi.

- Sinto muito, parece que aquela pessoa era próxima de vocês, mas gostaríamos de saber o que houve.

O rapaz olhou para os demais e contou a história. Era amigo comum do morto e do rapaz que o atropelara.

- Carlos insistia em vender o Landau, mas Bernardo não aceitou. Era estranho, uns meses atrás ele estava feliz por ter comprado o carro, ia a festas e tudo mais.

- E aí tudo começou a dar errado, né? – perguntou Vó Nena.

- É, ele perdeu o emprego, aconteceram coisas estranhas – confirmou o moço. – Mas não largava o carro.

- E para onde ele foi? – perguntou Tatiana.

O rapaz pegou o celular, entrou em uma rede social e mostrou o convite para uma festa na Vila Madalena. Tatiana fechou os olhos tentando captar algo, e finalmente sentiu que poderia valer a pena seguir aquela pista. Apanhou o celular e descobriu o endereço da tal festa, e depois de agradecer ao rapaz ligou para Daniel. Minutos depois eles saíam do Anhembi por um portão lateral.

- O trânsito aliviou um pouco – comentou Daniel ao volante. – Espero que o sujeito esteja mesmo lá.

- Odeio essas porras de carros possuídos! – disse Vó Nena. – Já tive trabalho demais pra achar essa praga!

- E ainda mais Landau, com aquele emblema no capô que parece um alvo – comentou Daniel.

Tatiana não respondeu. Sem o barulho da multidão conseguia se concentrar melhor para tentar seguir o rastro psíquico do demônio. Mas nada captou, então teriam que confiar naquelas poucas informações.

Foi só estacionar o Landau diante do bar de esquina na Rua Fidalga que Carlos logo se viu rodeado por uma multidão. Cumprimentou vários conhecidos enquanto ouvia:

- É disso que falo para você, Carlos. Você é popular quando está comigo, para que mudar? E lá está Maitê, não falei que você ficaria com ela?

A ruiva chegou e se debruçou na janela do carrão.

- Oi, Carlos, achei que não vinha mais! Que linda essa caranga!

O rapaz escorregou pelo banco e ficou do lado direito, perto dela. Se beijaram e depois ela cochichou em seu ouvido:

- Vamos entrar, estão esperando. Quero beber e dançar a noite toda! E depois...

- O quê? – perguntou ele.

Maitê sussurrou mais baixo ainda em seu ouvido:

- Poderíamos parar em outro lugar e aproveitar todo esse espaço, que tal?

- Não falei que você ia se dar bem, Carlos? - disse a voz na cabeça dele. – Se divirta, mas não demore! Temos tantos planos!

- Duas e meia da matina, caralho! – praguejou Vó Nena.

- E o que tem isso? – quis saber Tatiana.

O trânsito na Vila Madalena estava um inferno, e Daniel dirigia com cuidado. A anciã então respondeu:

- Todas as mortes por causa da desgraça desse carro aconteceram às 3 da madrugada. Essa é uma hora maldita, filha, 12 horas depois das três da tarde, a hora em que Cristo morreu na cruz.

- O bar fica na próxima esquina – confirmou Daniel.

Faltava pouco para as três quando Carlos e Maitê saíram da balada. Entraram no Landau, e ele tentou ignorar a voz:

- Alguém vai morrer as três, Carlos, adivinha quem é?

Maitê o agarrava e ele dirigia com dificuldade em meio ao trânsito intenso, mas finalmente entrou em uma rua calma e estacionou em uma pequena viela sem saída. O casal começou a se beijar e se agarrar ali mesmo, e a voz não saía da cabeça de Carlos:

- A hora está próxima. A morte chega.

- Ali, ali! – apontou Tatiana.

Viram o Landau saindo pelo trânsito e o seguiram. Depois ele entrou em outra rua e parou na viela.

- Pare, Daniel. Vamos descer e ver o que acontece – disse Vó Nena. – Avance um pouco, mas cuidado!

As duas mulheres avançaram pela rua, e cautelosamente olharam para dentro da viela. O Landau balançava um pouco com a movimentação do casal. Daniel se aproximou devagar e estacionou do outro lado da rua.

Nisso, o motor do Landau roncou, e ele disparou de ré com violência, quase atropelando Tatiana e Vó Nena.


- Matar, matar, vamos matar, Carlos! – ele ouvia em sua cabeça.

Daniel foi pego desprevenido e não teve tempo de nada. O Landau atingiu o Fusca e o lançou contra um poste, praticamente dobrando-o ao meio. Depois, arrastando os pneus, avançou contra Vó Nena.

A anciã se abrigou atrás de outro poste, que o carro atingiu de raspão. Em seguida o Landau seguiu Tatiana, que corria pela rua com boa dianteira.

- Carlos, que é isso, você é louco? – berrava histericamente Maitê.

A porta do lado direito se abriu e com uma guinada ela foi lançada do carro. O Landau acelerou contra Tatiana, Carlos dirigindo como um maníaco sempre com a voz na cabeça:

- Matar, a hora está próxima, matar!

Nisso, Vó Nena acudia Daniel:

- Meu neto, você tá bem?

Incrivelmente, apesar do estrago no Fusca o moço só tinha alguns hematomas e cortes.

- Aquele desgraçado – disse ele. – Cadê a Tati?

O ronco de um motor foi ouvido atrás deles, e o Fusca começou a retomar o formato inicial.

Tatiana corria se sentindo culpada por acatar o plano de Vó Nena. Ela ainda estava apavorada com o ataque que o Fusca e Daniel sofreram, e rezava para que o namorado estivesse bem.

Dobrou mais uma esquina repentinamente, e o Landau em alta velocidade passou reto. Novo guinchar de pneus e um batida mostravam que Carlos fazia a volta, e sempre com a voz em sua cabeça:

- Mate, mate agora!

Tatiana se aproximava de um bar, e um caminhão pequeno fazia uma entrega de botijões de gás. Luzes e ronco de motor cresciam atrás dela, que cruzou mais uma travessa e agitava os braços.

- Saiam daqui, saiam!

As pessoas que descarregavam os botijões olharam para ela e a ignoraram. Tatiana gritou novamente, e viu além do bar que Vó Nena e Daniel haviam dado a volta vindo a seu encontro.

O ronco do motor cresceu, e as pessoas ao redor do caminhão se agitaram. Haviam percebido a aproximação do Landau.

Tatiana virou-se para trás e viu o carro muito próximo. Pensou que dificilmente conseguiria se abrigar. Uma torrente de pensamentos e visões passou pela mente da vidente.

- Agora, mate ela, mate! É a hora!

Carlos ouviu a voz e acelerou ainda mais. Porém o ronco de outro motor se fez ouvir, e um terrível impacto atingiu o Landau de lado.

O Fusca, ainda torto, veio sozinho e atingiu o outro carro, que rodopiou, ergueu-se em duas rodas e foi direto para o caminhão.

As pessoas correram bem a tempo. Uma terrível explosão foi ouvida a alguns quarteirões de distância, e uma bola de fogo rompeu os cabos de energia dos postes, deixando a região às escuras.

A última coisa que Carlos ouviu foi:

- É a hora.

Vó Nena consultou seu velho relógio de bolso.

- São 3 da madrugada.

Os bombeiros demoraram a chegar devido ao trânsito, piorado pelas pessoas que saíam dos bares sem energia. O Fusca já havia se restaurado totalmente, e Daniel e Tatiana se abraçavam. Vó Nena olhou para os jovens e suspirou aliviada. Uma ambulância levou Maitê para o hospital, com escoriações e uma batida na cabeça.

- Vamos embora antes que venham fazer perguntas.

- Será que acabou, Vó? – perguntou Tatiana ao entrar no Fusca.

A anciã deu uma última olhada e finalmente disse:

- Fogo costuma resolver com a maioria dos demônios, meu amor, então espero que sim.

Dias depois a carcaça queimada do Landau aguardava em um depósito da Polícia. Um policial em final de turno se aproximou pelos corredores com vários outros veículos e parou diante do carro. O cromado do emblema brilhava como novo. Uma chave de fenda e o adorno foi removido.

No dia seguinte o emblema já estava de posse do dono de um desmanche, e o cliente chegou.

- Arrumou?

O homem empurrou a peça cromada. O cliente, satisfeito, estendeu um maço de notas. Na mesma tarde o homem chegava à sua empresa de eventos, onde na garagem dos fundos uma reluzente limusine Landau recebia os últimos retoques.


- Pronto, tá aqui – disse o homem.

- Que beleza – exclamou o mecânico.

- Rápido com isso que esse carro ainda hoje vai levar uns moleques grã-finos em um baile de formatura que vai até as três.

Havia uma barra de ferro ao lado, e a muito custo o homem controlou o impulso de bater com ela na cabeça do mecânico. Esqueceu-se disso e voltou para o escritório.

Vó Nena e os Caçadores retornarão.

Se estiverem interessados em saber como o Fusca de Vó Nena se tornou a origem da brincadeira do Fusca Azul, cliquem aqui para conferirem Vó Nena e os Caçadores: O Fusca Azul.


Até a próxima!

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