segunda-feira, 1 de abril de 2019

A Lista 8, o Brasil comunista

Os contos dA Lista, em sua publicação pela saudosa revista Sci-Fi News, teriam sequência originalmente pelas histórias 8, 9, 10 e 11, todos partes da mesma trama. Evidentemente, para fins de clareza, ficou decidido que todos seriam na verdade capítulos do episódio 8 da série, publicados nas edições 91 a 94, de setembro a dezembro de 2005. Esta história depois se revelaria fundamental para o livro dA Lista, que espero lançar em breve. Agora os trago aos ilustres leitores conforme saíram na Sci-Fi News, espero que gostem!

A Lista 8 capítulo 1


São Paulo não parecia muito diferente da cidade cujas lembranças Patrícia trazia na memória.
Ainda a metrópole fervilhante, a capital cultural e financeira do Brasil.
Mas havia outra capital, Brasília, que era a capital que mandava. E havia mandado muito naquela quase década e meia.
Havia, essencialmente, copiado o sistema chinês. Um país, dois sistemas.
O Brasil, desde 1989, era um país comunista, onde existia apenas o partido do governo. Onde quase todas as empresas, incluindo multinacionais, haviam sido estatizadas. Onde o estado cuidava de tudo.
Até do que era mostrado na tv, falado no rádio, escrito em jornais, revistas e internet.
O Brasil onde sobrevivia o sistema que existira na Rússia, China e outros lugares. O sistema que, com a ajuda de Cuba e Venezuela, fora imposto ao restante da América Latina.
A única exceção era a Argentina, mantida um bastião do capitalismo pelos pesados investimentos dos Estados Unidos. Foi por ali que Patrícia conseguira entrar clandestinamente no território brasileiro. Apenas os amigos mais chegados de Nova York, incluindo os da ONG que comandava, e o pessoal da resistência no Brasil, sabiam da viagem. Além do pessoal da CIA e Departamento de Estado.
Para os seus leitores, ela continuava sendo apenas uma autora de sucesso. Ela pensou por um momento na fina ironia. O fato de ser uma perseguida política e feroz inimiga do regime de Brasília a tornara uma celebridade no Ocidente. As vezes, ficava a pensar se seus livros tinham mesmo as qualidades que tantos aplaudiam, e qual o papel desempenhado pelo fato de sua luta servir também aos interesses americanos.
Em todo caso, era grata aquele país por tudo que lhe proporcionara. Mas tinha que fazer aquela viagem suicida, como a chamava seu agente. Marco, seu amado, estava em perigo, e cabia a ela salvá-lo.
Zé, o motorista, um dos membros mais ativos da Resistência, apontou para a fila adiante, que controlava a passagem entre duas zonas da cidade, dizendo:
- Bons tempos quando podíamos andar por aí, sem precisar ficar mostrando documentos, nem comprovando porque tínhamos que ir a determinado lugar... Esses “comunas” de...
- Vai dizer, disse Patrícia, que você não votou no Laércio?
Laércio Inácio, que alguns ainda chamavam de Lula, era o presidente do Brasil, eleito nas primeiras, e últimas, eleições presidenciais após o final da ditadura militar. Zé respondeu:
- Claro que sim! Havia o desejo de mudança, acabar com as oligarquias... Mas o que veio depois...
A fila andou, e ante o sorriso irônico de Patrícia, ele aproveitou para mudar de assunto:
- Soube que andam cogitando, no Congresso Nacional, permitir que os partidos voltem a se organizar?
- Sim, fiquei sabendo por cima. Sabe como é, lá fora eles publicam só o que querem. E, falando nisso, e o tal do Rohter?
- Ainda na prisão. Entra embaixador, sai embaixador, e os americanos protestam, protestam... Para a seguir assinar mais um acordo comercial! Claro, enquanto vão mandando toda ajuda pros argentinos... O pessoal americano acha engraçado ter que falar com os intérpretes oficiais do partido, já que nossos diplomatas estão proibidos de falar inglês!
Patrícia riu, e perguntou:
- Mas você dizia dos comentários no Congresso...
- Ah, é! Aquela senadora meio histérica que só veste camiseta e jeans, como é... Helena Hernandez, é isso! Andou falando o diabo na tribuna, que é um absurdo o partido, depois de tanto esforço para acabar com a burguesia e as elites oligárquicas opressoras do povo, sequer cogite de permitir tal patifaria, ou algo assim. Claro que aproveitou para exorcizar São Paulo, gritando que um antro contra-revolucionário como este deveria ser reduzido a cinzas. Como sempre, esquece convenientemente que sai daqui o sustento do Brasil.
Patrícia e Zé pararam de conversar enquanto passavam pela barreira, e tudo afinal se resolveu, depois de os guardas, com os uniformes repletos de emblemas com a estrela vermelha, examinarem o porta-malas e todo o carro por baixo.
Chegaram finalmente a Pinheiros, onde havia um aparelho da Resistência. O nome que usavam para designar o lugar era, claro, resquício do período militar. Patrícia só esperava que tivessem melhor sorte que os tresloucados guerrilheiros que, afinal, haviam tomado o poder.
- E sabe o que mais, perguntou Zé enquanto entravam, o Luis Goshiro, chefe da Comunicação Democrática, mais o Dilmário Dill, Ministro da Cultura Democrática, baixaram uma portaria determinando a proibição de todo e qualquer material sobre Raul Seixas.
- Deixe-me adivinhar, por ser contra-revolucionário, disse Patrícia.
- A música Sociedade Alternativa foi a única obra de Rauzito citada na portaria, por que será?
Zé abriu a porta da sala, e a escritora entrou.
A reunião com os companheiros durou várias horas. Havia um boato correndo entre os dissidentes de que o governo preparava algo grande, uma ação importante, seguramente no intuito de exportar sua amada revolução. Tudo indicava que seria contra a Argentina, mas nada mais sabiam.
Patrícia aproveitava os intervalos para ler os panfletos da Resistência, e ficou assombrada com o que viu. Enquanto proibições tolas como a descrita por Zé aconteciam, outros artistas “subitamente” esqueciam o valor de sua obra e passavam a louvar o governo em letras e livros, programas e shows. Ao mesmo tempo, os que como ela não se dobravam eram censurados, presos ou exilados.
Ela pensou em Marco, e tremeu. Não queria nem imaginar o que poderia estar acontecendo com ele na prisão. Era por isso que estava ali. O combinado pelos representantes americanos era que sua entrada, mesmo clandestina, fosse permitida, e a própria Patrícia negociaria, ao lado do embaixador, a libertação e exílio de Marco.
Ela pensou na Lista. Lembrou de seu amigo Adolfo, num Brasil também ditatorial, onde só quem se adequava as modas passageiras, ditadas pelo estado, conseguia sobreviver no meio cultural.
Ou aqueles outros tantos Brasis, onde pelo contrário, havia liberdade e democracia. Diversidade e um meio artístico fervilhante, onde não era traição criticar aqueles no governo.
Suspirou. Faria de tudo a seu alcance para que seu Brasil voltasse a respirar liberdade!
Finalmente, na noite seguinte, após muitos telefonemas, o encontro foi arranjado, num prédio do governo no Morumbi. Tiveram que passar por duas barreiras para chegar lá, e Zé cismava que as coisas estavam fáceis demais.
- Não gosto disso, disse ajeitando o boné.
Boinas eram sumariamente execradas na Resistência, por serem um dos símbolos daqueles contra os quais lutavam.
Quando o carro parou defronte ao prédio governamental, soldados armados saíram das sombras e, armas em punho, os renderam.

A Lista 8 capítulo 2


Era um pesadelo.
Patrícia, controle remoto na mão, corria todos os canais.
Havia uma relativa liberdade na tv, embora quadros com mensagens do governo, “corrigindo” o que era mostrado em filmes e seriados estrangeiros, enchessem metade da tela durante a exibição do programa.
A cada cinco minutos, um intervalo. Os comerciais duravam outros 5 minutos, e eram alternados com os intervalos políticos, onde conhecidas figuras falavam durante 10 minutos.
A escritora teve ímpetos de lançar algum objeto pesado na tv, ao ver certas figuras muito conhecidas da política brasileira “docilmente” convertidas a ideologia governamental. Um conhecidíssimo “coronel” nordestino, pequena estrela vermelha na lapela, falava sobre as maravilhas de seu estado natal. Ela finalmente se encheu e desligou.
Fazia quase um dia que haviam sido capturados. Ela não vira mais Zé, mas tinha certeza que estava sendo bem tratado. Sabia muito, e além de tudo era um dos contatos dos americanos, cujo governo já havia entrado em contato extra oficial com Brasília. Os agentes governamentais seriam muito burros se o machucassem.
Nas poucas vezes em que alguma faxineira ou outro serviçal viera ver do que precisava naquela suíte, Patrícia conseguiu ter um vislumbre pela porta entreaberta, descobrindo que eram ao menos três os guardas armados a vigiando.
“Mais essa agora”, pensou, quando ouviu passos de várias pessoas no corredor. Finalmente alguém importante. A porta se abriu, e um homem de meia idade entrou.
- Olá, Paty.
Era Josefo Dirce, ministro da Casa Democrática Civil da Presidência. Patrícia o conhecera nos anos 80 quando, jovem universitária, participou de algumas campanhas.
- Se me chamar assim de novo, juro que mato você.
Ela se esforçou para esquecer o passado. O odiava mais que o próprio Laércio.
- O presidente deve estar embarcando agora no Brazilian Force One. Deve vir vê-la amanhã de manhã o mais tardar.
- Aquele avião luxuosíssimo? Como conseguiram que o povo não os linchasse com mais esse ultraje?
Dirce riu, e respondeu:
- É interessante ver como sua prolongada experiência em uma sociedade capitalista, corrupta e decadente como a americana a faz ter uma visão deturpada das coisas, Patrícia! O presidente é o representante do povo, e logicamente não fica bem utilizar de meio de transporte não apropriado, a altura de um verdadeiro líder!
Patrícia levantou-se e caminhou pelo quarto, dizendo:
- É impressionante, vocês parecem mesmo acreditar na lavagem cerebral que divulgam para as pessoas! Isso é parte do programa para elevar a auto-estima do povo?
Dirce não respondeu, e Patrícia, chegando bem próxima a ele, completou em voz baixa:
- Apenas o fato de permitirem que São Paulo continue um enclave do puro, bom e velho capitalismo em pleno “Brasil Vermelho”, a fim de continuar a financiar sua preciosa revolução, é prova mais que suficiente que seu sistema fracassou! É como um câncer, que muito mais breve do que vocês imaginam, irá acabar com sua megalomania ideológica.
Dirce procurou disfarçar, mas era óbvio que ficou totalmente furioso com aquelas palavras. Disse secamente que mais tarde viria preparar o encontro de Patrícia com o presidente Laércio, e retirou-se. Antes que fechasse a porta, Patrícia ainda disse:
- E vocês não acham realmente que o povo considere suas instituições democráticas, só porque colocam a palavra em cada nome de ministério ou repartição, não é?
A porta foi batida com força, e trancada por fora.
Patrícia passou a tarde assistindo tv, e surpreendeu-se quando viu sua foto no noticiário. A apresentadora oficial disse:
- E em um gesto de boa vontade, com o fim de reforçar a intenção de melhora nas relações com os Estados Unidos, o governo da República Federativa Popular Social Democrática do Brasil acolheu como hóspede a conhecida escritora Patrícia Chede. Para demonstrar a boa vontade de nosso democrático governo, estão sendo conduzidas negociações para a libertação de certas figuras acusadas de subversão.
A imagem corta para o presidente da Câmara de Deputados, Zeverino Camargo:
- Vejo com bons olhos esse gesto de boa vontade, ainda que para isso o governo tenha que tratar com elementos que combatem os nobres ideais igualitários de nossa nação.
Zeverino, antes de 1989, foi um dos deputados mais conhecidos por trocar de partido como quem troca de roupa. Também era campeão em pedidos de aumento de salários e verba parlamentar. A imagem mostrou a seguir a furiosa senadora Helena Hernandez:
- É mais uma patifaria de forças ocultas neste governo, que pretendem com isso retornar aos tempos de trevas, quando a burguesia controlava nosso grande país! É uma infâmia sequer considerar uma negociata dessas com uma desertora, traidora e representante das forças da escuridão capitalista!
Patrícia só conseguiu dar risada.
Dirce voltou mais cedo do que esperava, olhou-a com expressão ainda muito zangada, e disse que tinham cinco minutos.
Marco entrou a seguir na suíte. Mais que depressa, Patrícia o abraçou, sem poder conter as lágrimas. O beijava e abraçava, esquecida por um instante da aflição por tanto tempo sem notícias.
- Preste atenção, Patrícia, disse ele.
Ela reparou mais em suas feições. Estava magro e abatido, com uma cicatriz na testa, e marcas de hematomas no queixo e braços. Mas no geral, parecia bem.
- O que foi, Marco? Nada importa mais agora. Vim tirar você daqui!
- Preste atenção, ele voltou a sussurrar. Não faça nada do que peçam! Quando puder sair daqui, fale com Calmon!
- Armando Calmon? O Ministro da Economia Democrática, como esses patetas o chamam? A pessoa do governo que a tal da Hernandez mais odeia, por sustentar o atual sistema, por manter São Paulo assim! O conheço, mas não sabia que era simpatizante.
Marco olhou para a porta, e voltou a dizer, ainda mais baixo:
- Ele tem sido um contato dos americanos no governo, e veio ver como eu estava, antes que você viesse. Eles estão planejando algo, Patrícia. Algo monstruoso! O que quer que peçam, não faça! Por favor! Não quero te perder. Não quero que...
- Tempo esgotado, disse Josefo entrando na sala. Agora que já viu que seu namorado está bem, vamos tratar dos termos para seu exílio.
Dois guardas voltaram a algemar Marco e o levaram. Outros funcionários entraram, e Patrícia reconheceu Waldomiro Dantas, acusado de corrupção em um caso que o governo fingia não ter ocorrido. Ela suspirou aliviada quando Zé entrou, e num gesto de boa vontade, Josefo pediu que o major Fábio Almeida e dois homens o escoltassem, pois estava livre para ir.
Patrícia ouviu aquele nome e espantou-se, mas nada disse. A seguir, o presidente Laércio Inácio entrou na sala, e as negociações começaram.
Muito longe dali, um destróier brasileiro com tecnologia stealth e um míssil nuclear a bordo, entrava sorrateiramente em águas territoriais argentinas.

A Lista 8 capítuilo 3


Já era hora do rush, e o metrô estava lotado.
Duas senhoras conversavam sobre obviedades no assento de trás. A novela, como o galã da vez era lindo, como odiavam a jovem vilã, não distinguindo atriz e personagem.
- Você leu essa indecência que deixaram aqui no assento? Que vergonha!
Era como distribuíam um dos jornais da Resistência. Como sempre, eram expostos os “podres” do governo, mas parecia que as duas senhoras não lhes davam muito crédito:
- Imagine, querer copiar o sistema daqueles americanos imundos!
- Só para termos novamente criancinhas pedindo esmola nos semáforos?
- Ou toda aquela pouca-vergonha na televisão? Deus me livre!
Zé passara horas, desde sua liberação de manhã, tentando despistar os agentes que o seguiam. Tinha muita experiência no assunto, e depois de tomar vários ônibus e fazer 4 viagens de metrô, finalmente teve certeza que ninguém mais o seguia. Até já havia conseguido fazer contatos fundamentais.
No bolso interno de sua jaqueta, o envelope que o major Fábio Almeida, que o havia acompanhado quando foi liberado, lhe dera, e sobre o qual falara um pouco, deixando Zé estarrecido. Felizmente, ninguém dentro do governo jamais suspeitara que Fábio era seu irmão. Até na Resistência essa informação era conhecida por poucos.
Zé olhou com o canto do olho para as duas senhoras noveleiras atrás dele. Agora faziam comentários sobre uma e outra notícia dos telejornais. Havia uma tímida abertura nessa área, apenas para dar a impressão de que havia a tão falada “democracia popular”, devidamente propagandeada por cada ministro e funcionário do governo.
- E essa imprensa, então, já quer colocar as asinhas de fora!
- Ah, nosso querido presidente já vai dar um basta! Imagina, falar mal do salvador do Brasil! Ainda bem que Deus nos deu Laércio, não o chamam de pai dos pobres a toa!
- E esses dissidentes ainda querem eleições, para quê?
- Para voltarem aqueles políticos sem vergonha de antes? Estamos melhor assim!
Zé lembrou-se das vezes em que se metera em confusões por gritar com gente como as duas senhoras. Demorou para compreender que eram vítimas da lavagem cerebral do regime.
No fundo, o Brasil não ia tão mal. Em São Paulo, até dava para fazer de conta que a vida seguia normal. Até produtos importados se podia comprar, tendo dinheiro. Nada que um troco para os funcionários da alfândega não resolvesse. Até nas universidades, desde que as vozes contra o governo não fossem muito exageradas, se podia ter a ilusão de normalidade.
O futebol, as novelas e programas de auditório, e o carnaval continuavam os mesmos. Alguns artistas e esportistas, dotados de consciência, não toleravam os rumos do país e tornaram-se dissidentes no exílio. Alguns membros mais radicais atacavam os que dobraram-se a vontade dos donos do poder para permanecer na tv, ou nas paradas de sucesso. Fazia duas semanas que um famoso apresentador estava em estado grave no hospital, após um atentado a tiros. Claro, a maioria absoluta queria seu ídolo de volta. Zé pensava que aquilo não os havia beneficiado em nada.
Pelo resto do dia, esteve em contato com membros da Resistência e agentes estrangeiros. O chinês, Hu En-lai, que não via há tempos, disse que informaria seu governo. A China antagonizava o Brasil cada vez mais, e era natural que auxiliasse os dissidentes.
Finalmente, quase no final da tarde, o Alto Conselho da Resistência aprovou seus planos, após analisarem o material que Zé se apressara em digitalizar e lhes enviar.
Cerca de quarenta minutos depois, chegava a um aparelho da Resistência, onde fez mais contatos antes de entrar em uma reunião convocada as pressas. Sempre ouvia seus companheiros com paciência, mas daquela vez era diferente.
Interrompeu sem cerimônia Richard, o líder do aparelho:
- Sinto muito, mas a situação é urgente.
Detalhou seus contatos ao longo do dia, e o que acontecia com Patrícia. Alguns ficaram indignados mas Zé novamente os interrompeu:
- Temos que deixar de lado vaidades, pois esta é uma oportunidade como nunca antes tivemos!
Apontou para o gravador, e logo todos ouviam a fita que ele tirou, junto a algumas folhas de papel, do envelope que lhe havia sido dado.
As vozes de Josefo Dirce, Helena Hernandez e Luis Goshiro eram inconfundíveis. E o que falavam...
Assim que a gravação se encerrou, Zé levantou-se e falou para todos:
- Que fique muito claro, em hipótese alguma o que acabaram de ouvir pode sair desta sala! Uma outra fita, contendo a gravação original, já deve se encontrar em mãos de um colaborador na rede de TV. Cópias destes documentos estão sendo enviadas a simpatizantes por todo o país. Vejam bem, isto é nada menos que a chance de acabar com o reinado de horror de Laércio e sua corja!
Mané, um dos mais radicais, e que apoiava abertamente os atentados, inclusive contra celebridades “vendidas ao regime”, começou a vociferar. Um e outro passou a reclamar, e o jovem radical se entusiasmava mais e mais, dizendo que tinham que resgatar a escritora.
Zé tirou a arma, e a apontou para o colega, dizendo a todos:
- Os membros do Alto Conselho me ouviram, e deram carta branca! Querem mesmo jogar uma oportunidade dessas fora?
Depois de tensos momentos, os ânimos serenaram. Mané sentou-se frustrado, mas aparentando estar conformado. Richard parecia um dos mais abalados, e enfim perguntou:
- Mas... Meu Deus, como eles podem tramar isso? Quantas pessoas irão morrer!? Sabemos qual a potência da arma?
- É uma ogiva tática, deve ser capaz de atingir no máximo alguns quarteirões.
- E qual é o alvo?
Zé puxou um jornal que comprara de manhã e o estendeu sobre a mesa. Um grande anúncio de primeira página noticiava a chegada de milhares de participantes para certo evento, que iria ocorrer dali a dois dias em São Paulo.
- Alguém é capaz de pensar em coisa melhor?
Alguns mencionaram os aliados que viriam para o evento, mas Zé disse:
- Para o tipo de gente que são Dirce e seu bando, muitas vezes é conveniente que um aliado se torne um mártir, para insuflar novo vigor a sua revolução!
Ainda havia dúvidas quanto ao alvo, e de onde viria o ataque. Mas todos afinal entenderam que era preciso agir. Aliados dentro do governo tentavam obter mais detalhes do monstruoso plano, que seriam repassados para os dissidentes. A questão é se isso seria feito a tempo.
Zé lembrou-se do colapso da União Soviética, como mais do que depressa o Brasil ofereceu-se para custodiar parte de seu armamento nuclear, a fim de que não caísse em mãos erradas. Pensou que os EUA e outros países nunca haviam cometido erro tão grave.
Voltou a ler as notícias no jornal, sobre o grande evento. Torcia para que o que Fábio lhe dissera não fosse verdade. Mas sabia que era aquilo mesmo que pediriam a sua amiga.
Patrícia, longe dali, recebeu mais uma visita. Armando Calmon entrou na suíte. Era amigo de sua família, assim não deveria parecer estranho que fosse conversar com ela.
- Está sabendo? Laércio quer que eu defenda seu governo no Fórum Democrático Mundial. Disse que assim libertaria Marco.
Calmon não respondeu. Olhou para Patrícia com expressão de pavor nos olhos.

A Lista 8 capítulo 4


Patrícia experimentava as roupas que haviam lhe fornecido. Laércio, e especialmente Josefo Dirce, não se cansaram de mencionar o quanto sua aparência seria fundamental. A espera de dois dias havia sido angustiante. O que Calmon lhe disse era tão monstruoso, que Patrícia duvidava que de fato o levariam adiante.
Em águas territoriais argentinas, o destróier ainda aguardava.
O movimento do serviço secreto da ditadura havia crescido com a aproximação da data do Fórum, e os dissidentes tinham que ser ainda mais cuidadosos.
A informação chegara a eles. Equipes haviam sido formadas, e o plano finalmente posto em prática.
Zé preferiria ter ido ao antigo Anhembi, transformado sob Laércio no Espaço Democrático Fidel Castro. A absurda incoerência de colocar tal adjetivo em tudo nem passou pela sua cabeça. Verificou as armas que carregava, enquanto sua equipe preparava a invasão. Iriam tomar o principal estúdio da maior rede de Tv do país, precisamente onde eram produzidos todos os telejornais da casa.
O Fórum Democrático Mundial movimentava a cidade havia semanas, e uma multidão imensa compareceu ao antigo Anhembi. O trânsito na zona norte estava bloqueado, e apenas os veículos de autoridades podiam passar.
Os dissidentes dominaram os vigias do estúdio. A segurança, graças a seu pessoal lá dentro, estava menos rígida. Usaram suas armas com silenciador apenas contra os agentes da inteligência a postos.
Precisamente a uma da tarde, a organização iniciou o evento com uma grande queima de fogos. Calculou-se que um milhão de pessoas de vários países compareceram, além de enviados de vários governos.
O míssil foi finalmente disparado do navio brasileiro.
Afinal, Laércio iniciou seu discurso. Falou como sempre direto ao povo, em seu jeito simples. A seguir, apresentou como amiga e companheira a escritora Patrícia Chede.
Ela levantou-se e ficou defronte aos microfones:
- Meus amigos, cheguei a meu país há alguns dias, para negociar o exílio do conhecido dissidente Marco Henriques. O presidente me pediu para falar a vocês, hoje. E o que digo, é que está mais do que na hora de dar um basta ao totalitarismo deste governo!
Ela olhou sorrindo para Laércio e Dirce, que a encaravam perplexos. Voltou-se para o microfone, e gritou:
- Chega de ditadura, basta de arbitrariedade, acabem com a censura! Chega de Laércio, viva a liberdade!
Muitos foram os que aplaudiram entre a multidão, e um tumulto se iniciou. Um segurança de Dirce apontou sua arma para Patrícia, mas Fábio atirou-se em frente a ela, recebendo o disparo.
Telões exibiam tudo em rede nacional. Mas aqueles sintonizados no maior canal do país subitamente tremeram e saíram do ar, e logo surgiu o cenário do maior telejornal do canal. Dissidentes encapuzados ocupavam as cadeiras, e um deles leu:
- A tirania do regime comunista de Laércio Inácio começa a terminar hoje, quando estamos finalmente prontos a revelar, para todo o oprimido povo brasileiro, a infâmia de um plano tecido na calada da noite por colaboradores deste governo.
A gravação foi tocada. Patrícia amparava Fábio, enquanto a primeira voz ouvida era de Josefo Dirce:
- Com esse golpe, poderemos finalmente acabar com a ameaça argentina. Se todos pensarem que sua marinha lançou o míssil de suas águas, uma reação armada de nossa parte encontrará pouca resistência internacional.
- O alvo tem que ser o Fórum Democrático Mundial, era a vez de Luis Goshiro falar. Qualquer capitalista adoraria atacá-lo, ainda mais com as presenças de Chavez e Fidel.
- E ainda teríamos todo o direito de vingar nossos companheiros, disse Helena Hernandez. Sem falar da tremenda oportunidade de expurgar esse lixo capitalista, esse cancro burguês que São Paulo continua sendo!
Os três concordaram que o presidente Laércio não deveria saber do plano.
Fábio agonizou, e morreu nos braços de Patrícia após agradecer por seu esforço e suas lágrimas.
Quando a gravação terminou, a imagem voltou para os dissidentes, sendo exibida até por outros canais. Um deles disse:
- Exatamente ao final da queima de fogos, o destróier brasileiro Che disparou um míssil de cruzeiro com uma ogiva nuclear tática, apontado precisamente para o antigo Anhembi. O tempo de impacto estimado é de vinte minutos. Gostaríamos de pedir que deixem a região o mais depressa possível. Agora todos sabem do que esse governo é capaz.
A imagem saiu do ar. E o pandemônio começou.
Laércio estava fugindo com sua equipe assim que a gravação terminou. O serviço secreto praticamente o arrastou para o heliponto.
Em meio ao tumulto, dissidentes trocaram tiros com homens do governo, mas conseguiram resgatar Patrícia. Os dissidentes correram entre a multidão e conseguiram escapar, quando o míssil caiu no estacionamento.
A única explosão foi de seu combustível. Entre as vítimas, toda a comitiva de Fidel Castro, incluindo o próprio.
Dois dias depois, na embaixada norte-americana em Buenos Aires, Patrícia e Zé ainda experimentavam as emoções conflitantes dos eventos.
- Nossos amigos conseguiram salvar Marco em Cumbica, disse Zé. Agora, está a salvo em Londres. Quem sabe, possamos nos ver em breve.
Patrícia nada disse. O amigo também sofria pelo irmão e demais companheiros que tombaram, e falou baixinho:
- Fábio foi um herói. Ontem ouvi de um general que a vontade do Exército é que seja enterrado como tal. É o mínimo que merece, e farei de tudo para que aconteça!
Goshiro fora encontrado morto em seu gabinete. Suicídio. Josefo e Helena foram presos, e ainda se discutia a respeito do quê seriam acusados.
A marinha argentina afundara o destróier. Entre os sobreviventes, um técnico disse antes de morrer que havia desligado a ogiva. O governo argentino, junto ao americano, oficialmente ainda analisava a situação. Chavez, da Venezuela, declarara guerra ao Brasil pela traição, e os embates na fronteira seguiam, mas suas forças eram inferiores.
Os partidos políticos foram liberados, e Zeverino Camargo um dos primeiros a sair do partido do governo. Não havia mais a mínima condição de controle ou censura a imprensa, e se especulava que, com os caos no país, Laércio renunciaria em breve.
- Vai demorar para curarmos as feridas, disse Patrícia sorvendo uma xícara de chá. Felizmente, conseguimos dar o primeiro passo.
Ela comentou um email de Ayrton Senna que havia recebido. O veterano heptacampeão, também vencedor de Indianápolis e Le Mans, era o mais famoso dissidente, e a parabenizava pelo que iniciara, fazendo também votos de que em breve pudessem finalmente retornar a seu querido país.
- Como eu gostei da última vez que ele derrotou aquele alemãozinho, disse Zé.
Patrícia riu, pela primeira vez em dias. Demandaria tempo, claro, mas a liberdade voltaria. Acesa aquela chama, era impossível apagá-la. Enquanto isso, pensava em como relatar todos aqueles eventos para a Lista.

Hoje, Primeiro de Abril, considerei que valia a pena publicar esta história aqui, pois o Dia da Mentira é um bom dia para debater um sistema integralmente baseado na mentira, não? Felizmente nossa realidade teve a imensa sorte de não permitir que tal totalitarismo fosse aqui instalado.

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Até a próxima!

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