Nesta terça-feira, 15 de janeiro, terá início no maior canal de televisão do país aquele reality show frequentado por certa espécie que poderia ser chamada de Subdesenvolvidus Intelectus, e assistido por outra subespécie chamada Rusticus Analphabetus Extremus.
Como aqui no Escritor com "R" prezamos sempre a cultura e o conhecimento, decidimos "comemorar" essa estréia com um conto bem leve, seguramente protagonizado por espécies mais adiantadas do que as descritas acima! Espero que se divirtam!
A Casa dos Etês
O conhecido apresentador finalmente surge, no palco e nas telas de todo o Brasil:
- Ma... ma... mas vai prá lá, vai prá lá! Olá, minhas colegas de trabalho, ih, ih, ah, ah!
Silvio recebe aplausos entusiásticos, enquanto o locutor oculto anuncia:
- Bem, vindo, Silvio!
- Olá, Lombadi – diz Silvio entusiasmado O apresentador se vira para a platéia do auditório e diz:
- Ma, ma, mas minhas colegas de trabalho, como todos sabem, já é sucesso em todo o Brasil, todos estão ligados no CBT, Canal Bozo de Televisão! Há alguns anos nós fizemos um programa inovador, e tenho certeza que todos se lembram!
O auditório aplaude, e Silvio pergunta:
- Vocês se lembram ou não?
Todos levantam, aplaudem, gritam, e Silvio finalmente confirma:
- Sim, não faz muito tempo, nós fizemos a Casa dos Quase Artistas! E foi um sucesso, o Brasil inteiro acompanhou... quem ganhou mesmo, Lombadi?
Lombadi ia responder, mas Silvio cortou:
- Deixa prá lá, deixa prá lá, ih, ih, ah, ah! Ma, ma, ma, mas veja bem, como sabem, a concorrente já começou a nova edição, como é mesmo o programa deles? Ah sim, o Big Brother! Mas é com muita alegria, minhas colegas de trabalho, e muita satisfação, que vamos entrando em mais uma semana em nossa mais nova atração!
Alguns aplaudiram enquanto a maioria do auditório continuava em tensa expectativa. Silvio, comunicador com décadas de experiência, conhecia obviamente seu público, e não tardou para perguntar:
- E qual é a atração, minhas queridas colegas de trabalho?
Repetiu-se o mesmo roteiro, gritos, palmas, berros, e Silvio com evidente satisfação finalmente diz:
- Sim, a Casa dos Etês! Vamos para lá, Lombadi!
Já era a quarta semana da atração, a maior audiência do canal em anos. Uma seleta gama de convidados, terráqueos e alienígenas, convivia 24 horas por dia na casa. A audiência, e naturalmente os negócios da rede, cresciam.
Silvio chamou finalmente a primeira atração:
- Ih, ih, ah, ah, agora sim, vamos primeiro ao quadro do confessionário. Como vocês sabem, cada participante pode ir a qualquer hora até o quartinho fechado, e fazer seu desabafo em frente as câmeras. Quem é o primeiro, Lombadi?
O locutor oculto, que nunca havia aparecido, sempre fora alvo de boatos e rumores, e as mais novas teorias da conspiração diziam ser uma Inteligência Artificial, que era desenvolvida com propósitos escusos pelo CBT havia muitos anos, nada respondeu. Silvio, que não era bobo nem nada e conhecia cada teoria disse, como se falasse com alguém da produção:
- Ô, produção? Alôôô. Produção, ih, ih, ah, ah, ainda não arrumaram o problema? Como é produção? Bug? Que bug é esse? O Lombadi foi andar de bug? Ah, bug como o Bug do Milênio? Teremos que reformatar o Lombadi? Ah, produção, logo agora? Desse jeito os teóricos da conspiração vão continuar dizendo que o Lombadi é só um programa de computador! Logo o Lombadi, nosso amigo de tantos anos!?
- Ô, Silvio, aqui estou eu! – disse Lombadi. – Meu microfone deu problema, patrão!
- Mesmo, Lombadi? – perguntou Silvio morrendo de rir. – Tem certeza que não deu algum pau em sua programação?
- Puxa, patrão, o quê é isso? Já trabalhamos juntos há anos, e o senhor sabe muito bem que eu sou de verdade! Quer ver?
Passos se aproximaram dos bastidores, produto obviamente da sonoplastia, mas Silvio disparou:
- Vai prá lá, vai prá lá, Lombadi! Nada de aparecer, eu sei que você é de verdade, e você também sabe, vamos ficar assim. Então, agora, vamos ao quadro do confessionário!
O primeiro no confessionário foi Dado Frota, conhecido pit-bad-boy, produtor de shows de funk, marombeiro, criador de casos, frequentador assíduo de páginas de fofocas e policiais, e ator e diretor de filmes eróticos que cultivava uma aura de machão, mesmo quando atuava em cenas “calientes” e muito explícitas com outros atores tão másculos quanto ele com os quais era frequentemente visto em casas noturnas. Parecia muito aborrecido:
- Essa semana foi horrível! Malditos ETs! Como puderam nos colocar com um baitôla filho da ppppppiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii (campainha colocada pela equipe de edição de som a fim de abafar palavras de baixíssimo calão pronunciadas dentro da Casa dos Etês) que troca de sexo?
Frota foi destilando suas lamúrias, enquanto a tela dividida mostrava seu tórrido e rápido relacionamento com Reneeh, maravilhosa, gostosona e voluptuosa loira alienígena que era uma das principais atrações da Casa dos Etês.
Os visitantes provinham de várias culturas, e muitos eram de fato altos, loiros, de olhos azuis e corpos deslumbrantes. Como usualmente vestiam roupas inteiriças e justas, sua aparência não chegava a ser uma unanimidade em termos de popularidade.
Alguns, óbvio, adoravam aqueles corpos femininos e masculinos quase perfeitos e emoldurados pelas roupas alienígenas. Uma conhecida e muito veterana apresentadora do canal de Silvio fazia questão de ter os visitantes em seu programa, e dizia que eram “uma gracinha”, e “pedaços de mal caminho”, e até chegava a dar suas apalpadelas quando os aliens, entusiasmados com os ritmos tropicais e funkeiros, se dispunham a dançar com a mulher no meio.
Mas entre estes alienígenas, havia aqueles que não poderiam realmente ser qualificados como simples seres aparentados aos humanos. Havia uma porcentagem que se constituía de transmorfos, seres que alternavam seu gênero a determinado transcorrer de tempo. Normalmente a cada 10 ou 20 dias, quem era mulher passava a ser homem, e vice-versa. Passado o mesmo tempo, ocorria nova troca de gênero.
- Pode parar, pode parar! – pediu Silvio. - Já estamos ao vivo com os participantes na sala? Ótimo, vamos para lá!
Alguns dos participantes já estavam presentes, e sentado ao lado de Arizinho, o participante gay da Casa dos Etês, estava Reneeh, com os mesmos cabelos longos e loiros, mas agora na forma de um belo e másculo rapaz.
- Reneeh, está me ouvindo? – pergunta Silvio.
- Sim, estou, Silvio! É um prazer estar de novo com você e suas colegas de trabalho. Um beijo a todos!
O auditório aplaude, enquanto Reneeh deixava claro que os visitantes haviam se acostumado bem rápido ao calor humano brasileiro. Silvio espera um pouco, e diz:
- Mas então, Reneeh, tem uma coisa que acho que toda a audiência do Brasil quer saber, como funciona isso?
- Isso o quê? – Reneeh, ao longo dos dias de confinamento, havia sido mais uma comprovação, como outras vistas nos noticiários, que muitos dos visitantes não eram assim tão adiantados.
- Essa história de uma hora ser homem, outra hora ser mulher...
Todo mundo que assistia já havia reparado que Reneeh e Arizinho estavam de mãos dadas, e o alienígena finalmente respondeu:
- Bem... é como somos, Silvio. As vezes homem, as vezes mulher... Acontece com todos em meu planeta.
- E se você ficar grávida enquanto é mulher? – intrometeu-se Shyang, que se apresentava como cantora, atriz, modelo, escritora e pornógrafa. Estava de mãos dadas com Zé, que balançou a cabeça cinza e piscou os olhos negros.
- Ah, nesse caso, se eu enquanto sou mulher engravido, aí a mudança fica bloqueada até eu dar a luz. Imagine o problema que seria, não é mesmo?
Todos riram, e Silvio resolveu perguntar outra coisa:
- Mas então, Reneeh, estou vendo que está de mãos dadas com Arizinho, e então, o que vocês tem para nos contar?
- Ah, Silvio – começa Arizinho todo contente – Foi uma alegria essa semana! Desde que Reneeh mudou, virando esse bofe escândalo, nós nos aproximamos e ficamos... bem, muito íntimos, não é, meu anjo loiro?
Reneeh confirmou com um sorriso, e os dois se beijaram, o que estava sendo motivo de muita confusão e polêmica desde que a atração havia começado. Duas modelos e atrizes, Soraia e Maria, já haviam sido eliminadas nas semanas anteriores, mas enquanto estiveram na casa seus beijos e pegações em todos os momentos fizeram os eternos monitores e guardiões dos bons costumes na televisão brasileira começar uma verdadeira cruzada, com o fim de tirar a atração do ar.
“Pouca vergonha” e “baixaria” eram os termos menos pesados que essas pessoas usavam, e uma guerra estava para começar entre os grupos moralistas e aqueles que defendiam os gays, mas Silvio, obviamente, adorava, pois a audiência quebrava recordes a cada dia. Para ele, nada poderia ser melhor que o novo relacionamento entre os dois.
Como Reneeh e Arizinho trocassem beijos cada vez mais ardentes, Silvio os interrompeu, chamando:
- Ma, ma, mas, Reneeh... Pára um pouco, esfriem um pouco vocês dois, ih, ih, ah, ah.
Eles se separaram, mas continuaram de mãos dadas, e Silvio perguntou:
- Mas Reneeh, quando você mudou, e Frota não te quis mais, você a princípio quis ficar com Anabela. Falando nela, por onde anda?
Anabela era apresentadora de um telejornal do canal, e fora convocada para a atração, onde reviveu os dias de modelo e dançarina. Havia dado em cima de Frota e de Carlos, este um surfista com pretensões de ator que só queria saber de Shyang. Depois Anabela ainda tentou seduzir o nerd Valmir e os alienígenas Zé e Joel, sem sucesso. As intrigas, futricas, fofocas e traições envolvendo todos esses personagens estavam sendo o tempero que fazia a Casa dos Etês um sucesso.
Quando Reneeh e Anabela começaram a se aproximar, surgiu Arizinho que acabou convencendo o alienígena a ficar com ele. A uma nova pergunta de Silvio, Reneeh disse que sua raça não nutria preconceito, e que gostavam de experimentar de tudo.
- Tudo mesmo, querido? – perguntou Shyang.
- Claro, querida Shyang! – respondeu Reneeh. Quem sabe uma noite dessas podemos fazer algo nós quatro, eu, Arizinho, você e Zé.
“Não contem comigo!” - disse Zé. Todos na Casa e a equipe de produção nas proximidades “ouviram” dentro de suas mentes a fala telepática dele. Zé era um alienígena gray, ou cinza, cujo verdadeiro nome era impronunciável aos humanos, como era o caso de todos os seus compatriotas. Para facilitar, escolhiam nomes terráqueos bem simples, e ele optara por aquele. Era um dos que tinha a maior base de fãs na Casa dos Etês.
Sua mensagem telepática era transmitida para a central técnica do canal e enviada na forma de legendas por meio de um aparelho de sua tecnologia alienígena. Mas para auxiliar, e dar ainda um pouco mais de graça ao programa, Silvio havia contratado Pai Ubu-Lelê, conhecido médium, macumbeiro, contatado e guru espiritual e sexual. O homem naturalmente tinha uma ficha corrida, envolvendo estelionato, curandeirismo, exploração da fé alheia e até assédio sexual. Claro, nada que os bons advogados pagos pelo próprio Silvio não resolvessem, pois se algo havia permanecido o mesmo desde a festiva chegada dos visitantes, era a justiça brasileira.
Por cima, associações umbandistas totalmente idôneas e respeitáveis também protestavam contra a presença de Pai Ubu-Lelê, considerada por eles uma afronta. Mas claro, nada daquilo importava a Silvio. Audiência antes de tudo!
E entrou então o folclórico Ubu-Lelê, com suas roupas coloridas, jogando beijos para o auditório que o aplaudia, enquanto dizia:
- Consulta espiritual, aconselhamento energético, encaminhamento e tradução telepática, ligue para o Pai Ubu-Lelê, “ligue djá”!
Aquele era seu refrão, mas Silvio logo cortou, dizendo:
- Vai prá lá, vai prá lá, Ubu! Mas afinal, todos lemos na legenda que Zé parece discordar de você. Ubu, veja bem, isso é muito sério!
Dedo em riste, Silvio fazia o máximo de esforço para tentar esconder que se divertia horrores com aquele quadro. Repetiu:
- Veja bem, Ubu! Você foi chamado para, com suas faculdades telepáticas, ajudar na tradução dos pensamentos de Zé. Como os ETs cinza não falam, só se comunicando por telepatia, eles ofereceram sua máquina tradutora, mas temos por via das dúvidas.. ih, ih, ah, ah – Silvio tentava não rir, mas a situação já era suficientemente ridícula. – Por via das dúvidas, temos que ter um paranormal eficiente para traduzir os pensamentos de Zé.
Pai Ubu-Lelê estendeu as mãos, virou-se para o auditório e disse:
- Pois não, Seu Silvio, vou fazer o meu melhor! Sabe, entrar em contato com uma mente tão evoluída é sempre um grande esforço, mas esse imenso desafio é enriquecedor, pois é uma experiência transformadora, que...
Nesse momento, no telão atrás de Ubu, que focalizava os participantes já reunidos da casa, e nas telas de todo o Brasil, todos puderam ler a seguinte legenda:
- “Experiência transformadora o pppppiiiiiiiiiiii. Esse imbecil, representante de uma facção subdesenvolvida da raça humana... bem, chamar “isso” de “humano” talvez seja uma afronta a todos vocês, nossos anfitriões... o caso é que esse idiota é tão telepata quanto eu sou um modelo para um comercial de roupas de banho!”.
Silvio, sentado atrás de Ubu e de frente para o telão, sacudia o corpo de tanto rir. O auditório ria junto e aplaudia, e Ubu achava que era com ele:
- Neste momento, nosso amigo iluminado Zé, pertencente a um povo superior e muito evoluído, está dizendo que temos que abrir nossas mentes para as energias cósmicas, a fim de podermos passar para a próxima dimensão, e sermos seres de luz e amor como eles...
Zé novamente se manifestou. Os Cinzas normalmente tinham uma tremenda paciência, mas parecia que a de Zé já havia sido toda esgotada, pois sua manifestação telepática, transmitida para as legendas, foi a seguinte: - “Se fizermos isso com você, abrir sua mente, o fedor será realmente nauseabundo... tremo só em pensar!”.
E Silvio e o auditório riam mais ainda. Mas Silvio não gostou quando Zé ainda comentou: - “Deveria ter seguido o exemplo de Axtar, e me recusado a participar”.
Axtar era o líder da delegação de alienígenas da mesma raça que os seres que surgiram em Varginha, alguns anos antes. Aparentavam ser os mais inteligentes de todos os visitantes, e logo Silvio entrou em contato com eles ao surgir a idéia da Casa dos Etês. Mas Axtar recusou-se, preferindo ser o astro de um novo programa justo do canal concorrente, um programa de auditório nas madrugadas de sábado para domingo onde o destaque eram as apresentações sobre a ciência dos alienígenas.
O programa estava indo bem de audiência, e Silvio já havia contratado o astrofísico Marcus Gleidir, cujo lugar foi ocupado por Axtar na grade do outro canal. O cientista era profundo desafeto dos ufólogos, que há anos diziam que os alienígenas chegavam a Terra, e agora que haviam de fato chegado, tornara-se desafeto dos próprios visitantes.
O ponto positivo desses programas científicos era melhorar a qualidade do que era mostrado na TV, apresentando novos conhecimento, e sua audiência crescia. Nem tanto, claro quanto a da Casa dos Etês.
Silvio obviamente não gostou nada da menção a Axtar, e precisou disfarçar para não externar seu desejo de se livrar de Zé. Mas o problema é que sua interação com os outros habitantes da casa, e especialmente com Joel, era segundo as pesquisas de opinião o que mais garantia a audiência do programa.
- Então, Zé – disse Silvio – Como anda seu relacionamento com Shyang? E você, Shyang, como tem sido os dias na Casa dos Etês?
A legenda começou a aparecer, mas os pensamentos de Zé foram interrompidos quando a pornógrafa o abraçou, beijou a grande cabeça cinzenta, e disse:
- Ai, Silvio, tenho tido momentos tão maravilhosos com meu Zezinho... Não é, querido?
- “Ah, claro” – surgiu na legenda. - “Tem sido uma experiência fascinante... se isso significa ter uma maluca ninfomaníaca no seu pé o dia inteiro!”.
Todos riram, e enquanto o pobre gray tentava sem sucesso se desvencilhar, todos notaram um curativo enrolado em torno de seu dedo indicador, que era o maior dos quatro que tinha na mão. Silvio perguntou:
- Ma, ma, mas, mas Zé, o que foi esse machucado em seu dedo?
- “Silvio, como já ficou claro” – nesse momento, o alienígena ergueu o dedo, cuja ponta se acendeu. O detalhe fez ressurgirem na Internet as famosas teorias conspiracionistas que descreviam Steven Spielberg como um contatado ou “escolhido”, e dessa forma pôde acrescentar o detalhe ao adorável alienígena de ET, o Extraterrestre. – “Nós grays possuímos capacidades muito além dos humanos, com nossos cérebros muito evoluídos. Dessa forma, posso satisfazer a todas as necessidades sexuais desta fêmea sem qualquer contato físico”.
- É verdade, Silvio! – intrometeu-se Shyang.. – Meu Zé tem me dado orgasmos maravilhosos aqui na casa! É tão gostoso ficar do seu ladinho, meu etê gostoso!
- “Ninguém merece!” – surgiu na legenda. – “Como eu estava dizendo, o problema é que esta estranha criatura a meu lado faz questão do primitivo contato físico, e como resultado, muito aprecia introduzir meu dedo em... vejam como é difícil tratar desse assunto até para nós, grays altamente evoluídos! Ela insiste em introduzir meu dedo em um certo local de sua anatomia reprodutiva, onde infelizmente há um estranho objeto metálico sem qualquer função”.
O pessoal o auditório ria e gritava, e Silvio, satisfeito, percebeu que aquilo com certeza daria margem a novas polêmicas, ou seja, mais audiência para a Casa dos Etês, e muito mais lucro para ele. Zé concluiu:
- “Então, enquanto durar minha participação neste experimento, lamentavelmente terei que conviver com essas estranhas peculiaridades da raça humana. Especialmente dos brasileiros, que são realmente desconcertantes”.
- Só, véio! Zé, cê se deu bem com essa gostosa, hein, brou?
Nesse momento, chega Joel. Era com certeza o mais pavoroso e pitoresco habitante da Casa dos Etês. Mas era também o mais popular, já com uma enorme base de fãs que não saíam dos fóruns da Internet falando sobre qualquer assunto ligado a ele.
Joel era da raça chamada de chupacabras. Tinha mais ou menos a mesma altura de Zé, ao redor de 1,20 m, olhos vermelhos, uma boca da qual sobressaíam dentes afiadíssimos, uma crista composta de elementos córneos que começava no alto da cabeça e percorria sua espinha dorsal, e mãos de três dedos com garras também afiadas. Mas apesar da aparência de fera, eram criaturas incrivelmente amáveis e sociáveis, que gostavam de aprender os costumes de outras raças, e apreciavam especialmente tomar contato com suas manifestações artísticas.
A razão de sua má fama vinha de incidentes de antes do contato com os visitantes. Em suas viagens a Terra vinham como a maioria, com objetivo de pesquisar. Eram uma raça curiosa e um tanto deslumbrada com as novidades, e também muito distraída. Frequentemente esqueciam companheiros aqui (outra característica que alimentava as teorias conspiratórias envolvendo Spielberg), e um traço biológico desses seres é que sua base alimentar era muito específica. Sem os alimentos que traziam de seu planeta, o único composto que lhes servia na Terra era sangue de aves e mamíferos, com o agravante que um chupacabra com fome acaba regredindo em poucos dias ao estágio de fera faminta.
Os chupacabras tinham uma veia artística muito pronunciada, e o próprio Zé havia composto o próximo samba-enredo de uma famosa escola do carnaval paulistano, e após o final do programa já tinha convites similares de agremiações do Rio. Na Casa dos Etês, logo fez amizade com todos, menos com Frota, e assimilou o vocabulário de surfista de Carlos, que havia sido eliminado na semana anterior.
Joel chegou roendo um grande osso e usando uma bermuda bem florida, sentou-se em uma poltrona e soltou:
- E aí, galera!?
Naturalmente as colegas de trabalho de Silvio aplaudiram de pé, e o apresentador ficou ainda mais satisfeito. Já havia passado ordens expressas ao departamento jurídico para que fosse preparando um detalhado contrato para poder criar novas atrações com o chupacabra. Joel fora literalmente um achado para ele!
- Joel, e então, o que estava dizendo, concordando com o que o Zé comentou de nós, brasileiros?
Joel não parava de roer o grande osso, e Silvio ouvia pelo ponto eletrônico a conversa dos responsáveis pela produção, que se perguntavam onde havia um osso daqueles na casa. Tentando não se distrair, o apresentador se concentrou na resposta do chupacabra:
- Olha, tio Silvio, o Zé aqui disse que os brazucas são peculiares, e são mesmo!
- “Sempre comento” – disse Zé – que o Brasil, com suas belezas naturais, sua veia artística, mas com suas contraditórias idiossincrasias, poderia tanto redimir quanto condenar a humanidade”.
- Isso, brou! – concordou Joel. – As grandes músicas, no meu caso os sambas, os esportes...
- “Mas os espertos de todas as áreas...”.
- E os políticos, então? – perguntou Joel sem deixar de roer o osso. – E essas novelas? O que é aquilo?
- “Lembro-me de algumas das transmissões que captamos da Terra. Jornada nas Estrelas foi divertido, meio cômico, mas perfeita no que tange ao melhor da raça humana, a superação de desafios”.
- Eu gostava dos klingons, brou!
- E eu do Dr. Spock – quis colaborar Arizinho na conversa.
Valmir fez menção de protestar contra essa afronta, mas foi Joel que teve um acesso, ergueu-se e quase pulou no pescoço do rapaz, berrando:
- DOUTOR O SEU pppppppiiiiiiiiiiiiiiiiii, seu boiola!
- “Acredito, Joel” – disse Zé por telepatia – “Que não seja correto aos olhares dos humanos, e talvez também por qualquer ser sensiente, insultar alguém por sua opção sexual, ou qualquer outra opção. Mesmo diante dessas estranhas e primitivas práticas de intercurso físico dos terrestres”.
- E eu acredito que se não ficar com essa sua cabeçona em silêncio, você vai logo, logo levar a sua, Zé! Não acredito que ainda exista algum terráqueo que, diante de uma das melhores manifestações culturais de sua civilização, não saiba que é SENHOR Spock!
Valmir e os demais ainda iam comentar alguma coisa, mas Joel, pelo visto muito animado, acrescentou:
- E olha que alguns entre nós chegaram a sugerir uma votação, prá decidirmos o que fazer com os terráqueos. Não rolou, mas se rolasse, eu votaria por preservar os humanos, pois ao menos tiveram a capacidade de fazer algo tão da hora como Jornada nas Estrelas, falou, brou?
A seguir, os alienígenas engataram um animadíssimo papo, falando agora de livros. Tanto Zé quanto Joel gostavam muito de 2001 de Arthur Clarke, A Fundação de Isaac Asimov, Contato de Carl Sagan... Joel lamentava andar meio sem tempo de ler mais, por causa das tais provas e desafios que havia na casa.
- Pô, brou, agora descobri Julio Verne, meu... Mó da hora!
- “Acho incrível que sua raça tenha tanta facilidade com linguagem. Você pegou até mesmo as irritantes gírias de alguns grupos sociais brasileiros”.
- Cê tem problema com isso, meu? Tá me estranhando?
Zé ergueu o dedo com a ponta acesa, e Joel se levantou de novo, apontou-lhe o osso que ainda roia, e gritou:
- Cê não vem com esse dedo aí, bródi, que eu enfio ele onde não bate sol, falô?
Toda a platéia ria. A cada reunião no sofá da Casa dos Etês, Zé e Joel discutiam por algum assunto. O público adorava, e no final os alienígenas sempre faziam as pazes.
Silvio, voltando a rir, resolveu mudar o rumo da conversa:
- Ih, ih, ah, ah, ma, ma, mas veja bem, vocês dois! Eu não aguento, ih, ih, ah, ah, só usando a Força, mesmo!
- Esses filmes são mó da hora, tio Silvio!
- “Prefiro a Trilogia Clássica, os novos para mim deixam a desejar” – comentou Zé.
- Ô, meu, cê põe defeito em tudo, é?
- Mas parem vocês, seus malucos! – disse Silvio. – Como eu estava dizendo, Zé, você andou meio de mau humor nos últimos dias.
- Meu rango tinha acabado, Silvio.
- Mas a produção não trouxe mais?
- E eu sei lá onde você arruma esses lerdos, tio Silvio!? Tenho certeza que nosso embaixador mandou todas as instruções de como lidar com pessoas como nós. Eles sabem que poderia rolar treta, e ficaram enrolando, enrolando...
Nesse momento, um grito lancinante e aterrorizante veio dos fundos da casa. Surge finalmente Anabela, encharcada de sangue:
- Eu... eu... tropecei e caí... quando fui ver, estava coberta de vermelho... e quando vi o que tinha no chão...
Nesse momento, todos ouvem um enorme e grotesco arroto, e as câmeras se viram para Joel. Da boca aberta do chupacabra, onde se via a temível dentadura do ser, saiu um pequeno objeto cintilante que caiu sobre a mesa de centro, rodopiou um pouco, e finalmente parou.
As câmeras focalizaram, e quando foi dado um close no objeto, todos viram um brinco dourado em forma de aro, igual ao que Dado Frota costumava usar.
Nesse momento, quase todos que estavam na ampla sala olharam pálidos para Joel, que continuava a roer o que algumas pessoas já identificavam como um fêmur.
- Quê qui é, galera? Cês não falaram nos últimos dias que estavam pensando em votar para eliminar o Frota? Ou Fruta, como Zé o chamava, e quem disse que os grays não têm senso de humor!? Eu estava doido de fome, não queria atacar nenhum de vocês, e como ninguém gostava mesmo dele...
Pandemônio total. Todos se levantaram, até mesmo Reneeh, e saíram correndo em direção a saída da Casa dos Etês, que só seria aberta mais tarde naquela noite. Silvio, ainda sem entender muito bem, saiu-se de primeira com mais um bordão:
- Ele morreu, ele morreu, ele morreu... ahn!? O que foi produção? Ah... mas morreu mesmo?
Como, logo após a chegada dos visitantes, foram assinados acordos que garantiam total e completa imunidade a seus representantes, nada aconteceu a Joel.
Por cima, ninguém mesmo sentiu falta de Dado Frota. O pit-bad-boy conseguiu arrumar briga com todos os habitantes da casa, partindo o coração de Reneeh e Arizinho, saindo arranhado de uma briga que custaram a separar dele com Joel, e quase sendo partido ao meio pelos poderes telecinéticos de Zé.
A audiência daquela noite foi recorde histórico para o Canal Bozo de Televisão. E permaneceu altíssima para o canal e para todos os programas de fofocas dos demais canais, que exploraram o caso por semanas a fio. Discutiu-se o direito a imunidade dos etês, em canais de certas seitas eles continuaram a ser genericamente chamados de coisa do demônio, e para quem gostava de sensacionalismo era o paraíso.
A reprise da Casa dos Etês, que durou até que a segunda edição estreasse, continuava com grande audiência, superando o Big Brother da concorrente.
O número de inscrições para a segunda edição de A Casa dos Etês já era recorde apenas dois dias após o incidente que encerrou prematuramente a primeira edição. Joel finalmente assinou contrato com o CBT para ser apresentador de um programa de auditório nos domingos a tarde. Zé foi contratado por uma editora para escrever o livro “A Casa dos Etês, a Astrofísica e a Filosofia, como melhorar sua vida com os conhecimentos dos visitantes”. E continuava negando sofrer qualquer influência da civilização humana.
Mas antes de tudo isso, depois que todos haviam fugido, as câmeras continuaram a mostrar Zé e Joel, ainda sentados no sofá. O chupacabra não largava seu osso.
- E aí, brou, quer um teco?
- “Definitivamente não. Não sei como consegue comer isso”.
- E eu não sei como você consegue comer aquela pirada que estava com você.
- “Eu fui praticamente sequestrado aqui dentro desta casa”.
- Para isso seu dedo não serve? Por que diacho não deu um jeito nela?
- “E quem disse que não tentei? Nunca falhou antes”.
Joel deu risada, dizendo:
- Então deve ser o amor, mesmo, brou!
- “Algo tão indefinível quanto primitivo é para mim simplesmente incompreensível”.
- Se vocês grays são mesmo tão evoluídos quanto gostam de alardear, então deveriam ser capazes de aprender. É o amor, brou, tudo que importa! Amor por uma boa comida... por uma boa música...
- “Este mundo definitivamente está nos contaminando. Quero dizer, contaminando você. Um chupacabra falando de amor”.
- É o único jeito de te ensinar, brou, eu explicando prá você, sacou?
- “Sua forma de falar me irrita. Conheço uma maneira melhor de você me transmitir essa informação”.
Zé já ia erguendo o dedo com a ponta luminosa, mas Joel, ressabiado, levantou-se e pulou para longe, assumindo posição de ataque e gritando:
- Vai com essa pppppppiiiiiiiiiiiiii de dedo prá lá, Zé!
FIM
Gostaram? Comentários abaixo, por favor!
O sujeito simpático da primeira foto, claro, é Paul, o alienígena mais engraçado e desbocado do cinema, astro do filme de mesmo nome de 2011. Justificadamente odiado por dez entre dez criacionistas, adeptos do design inteligente e mistificadores, o que ao lado das inúmeras referências nerds, o torna obrigatório! Confiram o trailer!
Aproveitando o tema alienígena, sugiro a todos o site da revista Ovni Pesquisa, onde podem conferir a edição 3, para a qual dei uma pequena contribuição com um artigo a respeito dos 25 anos de Arquivo-X. Como sabem me afastei da ufologia em 2018, mas aceitei o convite para comentar uma das produções de Ficção Científica mais importantes e influentes de todos os tempos. E ainda mencionei alguns grupos de amigos que fazem o bom trabalho de divulgação desse nosso mundinho nerd, como Sindicato do Fã, Arquivo-X Brasil, Calendário Geek e Aumanack!
Continuando no tema, na Amazon está disponível minha coletânea de contos Filhas das Estrelas, e-book pela Editora Estronho. Porque, afinal...
Não deixem de conferir meu roteiro fanfiction Ducktales: O Implacável Vingador. E na próxima quarta, mais um texto da série de artigos sobre Fantomius, o Ladrão de Casaca!
Até a próxima!
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