Na primeira postagem com o tema dA Lista do ano, mais dois contos importantes dentro desse Multiverso. Como sempre seguindo o tema da opressão e da crítica social, o primeiro evoca um pouco o que vivemos aqui no Brasil até 1994, antes do Plano Real, com a hiperinflação.
Já no segundo, do passado ainda mais recente, já antecipava o tal "preconceito linguístico", quando até livros didáticos de qualidade duvidosa defendiam que o professor não deveria corrigir o português dos alunos. A triste consequência de tais políticas pode ser comprovada nos resultados dos exames internacionais sobre a qualidade de educação no Brasil.
Essas histórias foram depois fundamentais para preparar o caminho tanto para contos dA Lista publicados em antologias, como A Fantástica Literatura Queer da Tarja e Monstros da Buriti (dos quais pretendo falar em breve), como também para o livro dA Lista, o qual estou buscando viabilizar com uma editora.
E, falando em Brasis paralelos, achei esse vídeo deveras interessante...
Espero que gostem e comentem. Na próxima quarta-feira mais um texto da série de artigos sobre Fantomius, o Ladrão de Casaca!
A Lista 6
O segundo plano econômico do mês fora anunciado na noite anterior, e como sempre havia divisão nas ruas. Quebra-quebras e saques eram violentamente reprimidos pela polícia, e os ricos passavam bem longe da confusão em seus helicópteros.
Nelson olhou para o final da avenida, ouvindo os disparos, gritos e explosões. Fumaça subia ao céu, e ele apressou o passo. Felizmente em seu bairro as coisas ainda permaneciam calmas.
Meditou como, depois da volta da democracia, todos os planos econômicos haviam fracassado. Economistas premiados diziam que a receita era simples, controlar gastos e gastar menos do que o arrecadado. Mas no governo todos os economistas chamados para ministério pareciam emburrecer, e preferiam invenções mirabolantes às receitas convencionais.
E o maior problema, além da falta de inúmeros produtos básicos, era que mesmo pessoas que pensavam como Nelson estavam ficando mais e mais raras. Quem ainda tinha algum dinheiro o trocava por dólares e fugia do país, enquanto na mídia algumas vozes sussurravam até sobre guerra civil. Ele com freqüência se perguntava por que ficar.
“- Maldito espírito comunitário!”, pensou.
Parou na padaria da esquina para um café, um dos raros prazeres a que ainda se permitia, e constatou surpreso que o preço da manhã, um e vinte, subira para um e trinta. Inflação de dez por cento ao dia ou as políticas populistas, “fiscais do presidente” e outras bobagens, ele não sabia o que era pior.
Nelson pensou em Claudia. Ela era sua força, seu motivo de ainda insistir.
Chegaram juntos ao prédio um tanto abandonado, em que ficava seu minúsculo apartamento. Ela carregava uma bolsa bem cheia, indicando que o dia no ferro velho fora proveitoso.
Entraram e puseram-se imediatamente a desmontar o grande computador, um servidor que funcionava como provedor clandestino para eles e seus colegas. Mantinham um site clandestino de notícias e literatura, que os hackers pagos a preço de ouro pelo governo não haviam ainda conseguido derrubar. Ajudava terem amigos no Brasil e lá fora, dedicados a mesma causa.
A energia caiu enquanto comiam após o conserto, mas em menos de dez minutos era restabelecida. Com a crise econômica e a carga tributária de setenta por cento do PIB, o consumo de energia caiu de forma absurda, havendo eletricidade em excesso. Mas também havia corrupção em excesso.
Aqueles frequentes cortes de luz aconteciam todas as vezes em que um fiscal descobria a ligação clandestina. Pessoas da comunidade sempre vigiavam, então bastava ir até lá e pagar a propina exigida para o religamento da energia.
Nelson ajudou Claudia com a louça, e depois foi fazer seu serviço. Ele trabalhava em uma gráfica do outro lado da cidade, e já havia publicado artigos em algumas revistas e jornais, mas ainda não era uma ocupação fixa. Nunca terminara a faculdade de jornalismo, e o sonho de uma pós graduação continuava sendo apenas um sonho.
Mas era elogiado pelo que escrevia, e mantinha a esperança. Duas noites antes, ele e seus amigos viram com satisfação o site clandestino ser citado em uma matéria na tv, com as autoridades prometendo caçar “os terroristas que publicavam inverdades”.
Um dos contos mais elogiados de Nelson contava a história de um Brasil em que um plano econômico baseado nas idéias mais básicas dos economistas havia dado certo e acabado com a inflação, dando origem a uma época de recuperação econômica. Claro, foi ainda mais combatido pelos que defendiam o governo. Um plano similar, proposto havia alguns anos, foi desmontado pelos políticos que apostavam no clássico estelionato eleitoral conhecido como “quanto pior, melhor”. E essa irresponsabilidade ocasionou a queda não apenas do Brasil, mas de todo o ocidente.
Conflitos pipocavam pela América Latina, o crash da bolsa de Nova York do ano anterior foi muito pior que o de 1929. A Europa tentava impedir o naufrágio do Euro, enquanto seus políticos de direita culpavam os imigrantes por todas as mazelas, e os arruaceiros culpavam a globalização. O Oriente Médio fora esquecido, a monarquia caíra na Arábia Saudita devido a falência da indústria do petróleo, e a Rússia mergulhou no caos das disputas étnicas.
Os únicos que prosperavam eram a China, mas com problemas cada vez mais graves devido as contradições entre a liberalização econômica e a ditadura política, os chamados tigres asiáticos, e a Nova Zelândia e a Austrália. O resto do mundo apenas sonhava com o fim da tormenta.
O servidor finalmente estava online, e logo vários amigos conectavam-se. Nelson pensou nos talentos que havia ali, desperdiçados em um país em completa decadência. Escritores, cronistas, jornalistas. Tudo que produziam ia para o site, hospedado em um servidor de Sidney, Austrália. Aquele servidor era apenas para que Nelson e seus amigos pudessem enviar seus trabalhos, conectarem-se a rede e escaparem por pouco tempo da dureza de sua vida cotidiana.
Haviam conseguido elitizar até a internet. Somente amigos de políticos podiam acessar os provedores oficiais. Nos guetos e subúrbios, separados das ilhas dos ricos por cercas e muros interrompidos por passagens de controle, proliferavam outros servidores ilegais.
Nas universidades oficiais, formava-se uma elite arrogante, prepotente e ignorante. Pareciam os donos do país, assistiam as piores atrações na tv, vangloriavam-se das escolas em que estudavam e dos livros que liam. Os mesmos livros que, Nelson e outros esclarecidos sabiam, traziam apenas as informações oficiais. Esse academicismo ajudava a empurrar o Brasil para o desastre completo.
Como tantos outros o Moderador o convidara para a Lista, e logo Nelson conhecia muitos outros Brasis. Seus colegas tinham as mesmas idéias, a difusão da liberdade e do conhecimento. Nelson se mantinha informado em sebos e lojas de contrabando, que proliferavam naquele ambiente sem liberdade. Sempre apreciou ficção científica, incluindo o tema recorrente dos mundos paralelos. Devia ser por isso que fora chamado.
Ficou um tanto alarmado quando leu uma mensagem de Patrícia, a escritora perseguida em um Brasil onde imperava um regime comunista. Ela disse que teria que voltar clandestinamente a seu país, para ajudar amigos em perigo. A mensagem dizia que manteria contato.
Houve uma tentativa de invasão por agentes governamentais, mas havia hackers experientes em seu grupo, e não correram perigo. Terminado cedo o trabalho daquela noite, ele decidiu ir a loja de contrabando procurar livros e revistas.
Não reparou numa figura que o observava, parada na esquina. Logo o escritor chegava a loja, e o deixaram entrar depois de dizer a senha da semana. Em dúzias de outros refúgios como aquele os que buscavam escapar da mediocridade encontravam um porto seguro. Nelson animou-se quando viu o novo número da revista de ficção e fantasia, uma das publicações clandestinas mais combatidas pelo governo.
Lá fora, o homem que seguira Nelson observou um pouco. Já havia descoberto que teria que ser convidado para entrar ali. E esse passo só podia ser dado depois que apresentasse seu relatório. Observou os arredores e acionou um comando num objeto semelhante a um relógio em seu pulso. Houve um brevíssimo lampejo de luz, e o homem sumiu no ar.
Publicado na edição 88, de junho de 2005, da Revista Sci-Fi News.
A Lista 7
Amanda conseguiu sair da faculdade pela porta dos fundos. Aquela era a terceira manifestação da semana. Ao som de muito pagode e pop descartável, uma multidão gritava palavras de ordem contra os “CDF” e os “burgueses”.
Correu até seu velho Fusca e se afastou o mais depressa possível. No rádio, ouviu que os arruaceiros começavam a jogar pedras na faculdade, debaixo do olhar da tropa de choque.
Lembrou-se da conversa com seus pais na noite anterior. Dizendo que “no Brasil de hoje, ter cultura é um crime”, rogaram-lhe que abandonasse a faculdade. Amanda era estudante de Letras, e esforçava-se para ser escritora. Talvez tivesse sido por isso que recebera um e-mail muito estranho, convidando-a para a Lista.
Apesar de muita literatura, e de todos serem ligados ao tema, estranhou. Convenceu-se apenas depois de ler a mensagem de uma garota que descrevia outro Brasil, onde para se gravar um disco ou publicar um livro bastava apenas duas coisas, talento e uma mensagem interessante para transmitir. Pensou como seria bom morar nesse Brasil.
Todo aquele inferno vinha de anos antes. A proliferação dos reality shows e outros programas ditos populares, mais a voracidade por audiência, fizera a mídia esquecer todo o resto. Os únicos livros publicados eram os de auto-ajuda, fofocas e gêneros “da moda”. Incontáveis autores tinham seus trabalhos esquecidos nas gavetas ou cestos de lixo de editores que só visavam o lucro imediato.
Aquela tragédia foi incentivada pelos empolgados discursos do presidente, gabando-se de “haver chegado lá sem estudo”. Desde então o fosso, diante da arrogância e do domínio dos ignorantes, apenas se tornava mais escuro. As celebridades, músicos, apresentadores, futebolistas, modelos e outros, que tinham em comum o orgulho de sua completa falta de cultura, eram os exemplos que estavam sendo seguidos.
Restava alguma liberdade na internet. Mas um grupo de congressistas elaborou um projeto para tornar o envio de e-mails pago, destinando a arrecadação a obras sociais, estádios e campos de futebol, cursos de música exclusivamente brasileira como axé e pagode... Um dos autores do projeto dizia que “a burguesia, com sua tecnologia que constitui bens de consumo supérfluos, tem que contribuir para o bem dos desfavorecidos”.
Evidentemente que militantes de grupos sociais e partidos radicais aproveitaram-se disso, e protestos e atos de vandalismo tornaram-se comuns diante de lojas de material de informática e provedores de internet. “Tecnologia burguesa”, gritavam.
Dúzias de cineastas e autores já haviam fugido do Brasil. Na noite anterior, um dos melhores colégios de São Paulo fora atacado, as crianças “burguesas” atingidas por ovos e pedras. Nem a nova bandeira nacional, com a inscrição “Paz, amor, ordem e progresso”, serviu para acalmar a turba ensandecida.
Para tentar conter os ânimos, o conhecido escritor Artur C. Cardoso foi ao mais popular programa de entrevistas. Autor premiado, se recusava a deixar o país, e fez ao vivo para todo o Brasil uma apaixonada defesa da cultura e do conhecimento, nos momentos em que o apresentador, conhecido por atuar como se fosse mais importante que o entrevistado, o deixou falar.
Os protestos contra Cardoso começaram ali mesmo, e seu carro foi atingido, tombado e incendiado. O socorro felizmente chegou rápido, mas desde então ele se recuperava dos ferimentos no hospital. Em declarações, diversas personalidades lamentavam a violência, mas também comprovavam a tragédia nacional:
“- Entende, eu nunca precisei estudar prá fazer meus gol, mano! Mas bater num velho assim, eu sou é da paz, tá ligado, sangue bom?”.
“- Ah, o Cardoso é tão bonitinho, um amorzinho, não é gente? Não se trata os mais velhos assim, gente, tenham dó! Ele pode ter falado umas besteiras, mas não precisava bater tanto, né, gente?”.
“- Acho, sim, que o Cardoso exagerou. Puxa, temos que ver que nem todo mundo tem condições de entender esses livros difíceis dele e de outros escritores! E essa tecnologia também, se a maioria não tem acesso a modernidade, para quê investir nela? O povo não precisa de luxo, fica feliz com seu sambinha, seu futebolzinho, é disso que o povo gosta.”.
Amanda chegou esbaforida depois do incidente, havia muito a fazer. Ela e seus amigos tinham um total de seis computadores mais o servidor, uma central para os refugiados da mediocridade. Sentada diante de um deles, pôs-se a digitar avidamente. Trabalhava naquele romance de ficção científica havia meses, e estava no último capítulo.
Já era noite quando terminou. Havia se esquecido de tudo, tanto que os amigos saíram, outros chegaram, e Amanda nem percebeu. Subitamente ouviram uma gritaria vinda da rua, e depressa ligaram a tv.
Era um morador denunciando a existência de “uma célula de intelectuais imperialistas” no prédio. Um repórter de um programa sensacionalista perguntou como tinha tanta certeza, e o homem disse que o movimento de jovens, sempre carregando livros e usando computadores, não podia ser boa coisa.
Logo os gritos aumentavam, “fora burguês”, “abaixo os CDF” e outras barbaridades, e eles se apressaram para fugir. Dois dos computadores eram laptops, cujo porte era quase uma sentença de morte naqueles dias, e dois rapazes já se apressavam para desmontar o servidor, quando Amanda gritou que esperassem.
Digitou uma mensagem para a Lista o mais depressa que pôde, mandando também seu romance, deixando vários erros de ortografia para trás. Aquele era outro pecado. Dia desses, em um dos raros cyber cafés ainda existentes, uma senhora que a viu corrigir uma palavra errada a xingou, perguntando quem Amanda pensava que era para se achar melhor que ela.
Finalmente desmontaram o precioso servidor, e saíram do apartamento atropelando-se pelas escadas. Lá debaixo já ouviam os gritos dos que subiam nos elevadores super lotados.
Enfiaram tudo no carro de um deles, e o rapaz disse que já desconfiava daquele sujeito que os denunciara. Acrescentou que já tinha outro lugar, e na semana seguinte tudo estaria pronto. Arrancou cantando pneus e desapareceu na noite.
Ninguém reparou numa moça os observando nas sombras, e tampouco no lampejo de luz ocorrido após ela entrar num beco próximo.
O assalto ao prédio, com vários apartamentos de gente que não tinha nada a ver com a história destruídos, terminou quando um dos elevadores, com peso muito além do permitido, despencou. Vinte pessoas morreram, e a culpa só poderia ser dos “intelectuais imperialistas”.
O governo anunciou no dia seguinte uma política de tolerância zero para com os arruaceiros. E também medidas para facilitar o acesso a cultura. Logo sua própria base aliada denunciava aquele atentado contra a livre manifestação, que ao mesmo tempo feria as garantias constitucionais individuais.
“- Afinal não se pode obrigar as pessoas a aprender o que não desejam!”.
O deputado que disse isso era do próprio partido do presidente, e foi apoiado por uma nota oficial da agremiação.
Amanda suspirou e desligou a tv. Contava os dias para que a central clandestina fosse reativada. O provedor que pagava estava fora do ar após um atentado, e o cyber café onde ia fora depredado naquele dia.
Ela conseguiu dormir depois de muito esforço, e sonhou com um Brasil mais aberto e culto, conforme descrito por outros na Lista.
Publicado na edição 89, de julho de 2005, da Revista Sci-Fi News.
Até a próxima!
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