sábado, 2 de março de 2019

A Lista: O País do Carnaval



A Lista é um fórum e rede social da qual participam produtores e divulgadores de conhecimento. Escritores, professores, jornalistas, cientistas e muitos outros. Cada um deles habita um universo paralelo distinto, uma realidade, um mundo, um Brasil que pode ser semelhante ao nosso, mas também muito diferente. Acompanhe agora mais uma história, situada em um distante universo que pode estar muito próximo de nós.

            René e Malena passeavam de mãos dadas pela Avenida Pedroso de Morais. O cenário de caos e destruição já não os impressionava mais, e por vezes o escritor pensava se tudo aquilo valia mesmo a pena.
            Sentir a mão da esposa na sua, pensar nas mais de quatro décadas vividas juntos, entretanto, o fazia considerar que sim, qualquer preço a pagar ainda seria muito pouco.
            Naquele quarteirão muitos dos prédios que existiam no passado foram demolidos, cedendo lugar a casas de estilo clássico acolhedoras onde moravam muitos amigos deles. Gertrudes, acompanhada do filho e do neto, limpava o jardim e tentava replantar algumas das mudas arrancadas desde o último bloco, três dias antes.
            - Fala, vizinhos, como estão? – perguntou ela com seu jeito sempre informal.
            Malena se adiantou, abraçou a amiga e respondeu:
            - Poderíamos estar melhor, mas vamos levando. Ainda arrumando os estragos?
            Em resposta, a vizinha cuspiu em um dos muitos panfletos deixado pelos foliões. Nele se viam os rostos da prefeita Marineuza Fraga e do presidente Karlos Uyllys, louvando a “verdadeira cultura brasileira” representada pelo carnaval.
            - Imagina essa filha da P. dessa Fraga, descendente de índios e analfabeta, se orgulhar de ser a primeira prefeita de São Paulo com essa condição! E vive repetindo que os livros só foram produzidos no Brasil depois de Don João VI, que são “invenção do homem branco opressor” que não tem nada a ver com a “cultura popular” que eles defendem! – disse com raiva.
            René olhou as duas, que devolveram o gesto. Era um autor famoso, primeiro brasileiro a ser bem sucedido no ramo da ficção científica e fantasia, tanto no mercado doméstico quanto no exterior. Os dois rapazes também pararam o que estavam fazendo e aguardaram sua resposta. Logo ele, que nunca se sentiu um líder ou inspirador das massas. Mas afinal respondeu:
            - Sempre tentamos conviver em paz com todos. Vocês sabem, claro, que em minha obra a luta contra a opressão, pelos direitos e responsabilidades iguais e o respeito de todos para com todos sempre foi um dos motes principais. Acho...
            - Corta o papo, René! – interrompeu Gertrudes. – Nosso erro foi não ter derrubado aquele filho da P. do Uyllys quando tivemos chance. Agora que ele conseguiu aprovar o maldito carnaval de 120 dias, estamos é muito lascados!
            Todos ficaram em silêncio, e por fim olharam nos arredores. Um caminhão subia a Pedroso de Morais na contramão, no sentido Pinheiros, parou no quarteirão seguinte e seus ocupantes desceram. Eles recolheram alguns corpos que sobraram do último desfile e os jogaram na caçamba. Na Rua dos Tamanás haviam construído grandes fornos, onde o lixo e os cadáveres resultantes daquelas batalhas eram queimados. Os homens regressaram ao interior do veículo e tornaram a partir.
            Cada um daquele grupo pensou a respeito das assustadoras consequências da decisão de estender cada vez mais o carnaval. A cidade se tornava uma terra sem lei ao longo daqueles quatro meses. O desabastecimento, o lixo e os cadáveres nas ruas se multiplicavam, e quanto mais os foliões eram incentivados pelas autoridades, mais violentos se tornavam.

            Quatro anos antes os primeiros blocos com caminhões de som armados tomaram as ruas, quando o carnaval já acontecia durante dois meses seguidos. Diante da carnificina acontecida no Largo da Batata logo no início da assim chamada “festa popular”, região agora abandonada e onde sequer os blocos desfilavam mais, moradores de outros bairros começaram a tomar providências, para alegria e lucro dos traficantes de armas.
            Dias depois, na Vila Madalena, o primeiro real conflito armado. Entrincheirados em suas casas e apartamentos, os moradores conquistaram uma vitória amarga, com um número de mortos entre os foliões na casa das centenas. Os que sobreviveram vandalizaram tudo que podiam, resultando em saques, incêndios e assassinatos de todos quantos puderam colocar as mãos. O caso mais chocante foi o incêndio em uma creche, vitimando dezenas de crianças.
            Já era padrão entre os blocos ter o carro de som pesadamente armado e blindado na frente, com foliões igualmente portando armas e atirando em todos que se encontrassem no caminho e não estivessem cantando e dançando. O carro de som costumava ser seguido por um ou mais caminhões tanque que abastecia continuamente os foliões com cerveja. Em meio à turba era comum circularem traficantes fornecendo todo tipo de alucinógeno.
            O assassinato das crianças alimentou uma grita geral contra o abuso, mas Karlos Uyllys não somente a atribuiu a “terroristas reacionários e elitistas, contrários ao patrimônio nacional da cultura popular”, como publicou um decreto aumentando o período do carnaval para 120 dias.
            O total de mortes naquele carnaval passou das centenas de milhares. Naturalmente o período pré e pós da chamada “festa popular” foi igualmente ampliado, e no total o período de barbárie chegou a perto de 150 dias no ano seguinte. A economia do país ruiu, e Uyllys colocou tropas federais nas ruas para combater aqueles que chamava de “fascistas”. Impôs ainda um toque de recolher para todos os heterossexuais e brancos que não participassem de alguma maneira das “obras sociais”, entre as quais se incluía o carnaval.
            Para René aquilo foi demais. Primeiro brasileiro a vencer o Prêmio Nobel de Literatura, ele decidiu fazer o que estivesse a seu alcance para mostrar quão absurdas, pequenas e mesquinhas eram aquelas atitudes. E decidiu revelar para todo o mundo seu maior segredo.

            Havia anos vinha recebendo e-mails, mensagens, fotos, filmes e arquivos em seu computador que não haviam sido enviados de qualquer lugar do mundo. De seu mundo, especificamente. Ele era um dos mais conhecidos e respeitados membros da Lista, um fórum transdimensional de discussão que tinha entre seus membros produtores e divulgadores culturais e do conhecimento de inúmeros universos paralelos.
            Ele ficou assombrado ao descobrir tantas diferenças e tantas semelhanças entre aquelas incontáveis dimensões paralelas. Um Brasil ainda imperial, outro que buscava se recuperar da hecatombe socialista. Um universo decadente onde cientistas buscavam acompanhar a última estrela que iria explodir. Inúmeros Brasis onde se lutava por direitos iguais, e muitas alternativas onde o carnaval não havia chegado aquele extremo que eles viviam.
            René expôs tudo. Divulgou cada uma das obras que colegas seus produziam em outros universos, cada descoberta científica séculos adiante do que era conhecido em seu mundo. E notícias de incontáveis Brasis onde festas populares não haviam descambado para o barbarismo e assassinato em massa, ao nível de uma guerra civil.
            Os resultados superaram em muito cada uma de suas expectativas.
            Ele se surpreendeu ao constatar que boa parte da comunidade científica zombava daquelas revelações. Outra parte, contudo, mais curiosa e menos afeita a hierarquias e ao puro status pessoal, se debruçou sobre aquele tesouro de informações.
            Porém, os resultados negativos superaram em muito os positivos. Ao saber que existia uma versão dos Estados Unidos onde a segregação ainda era uma realidade, os preconceituosos daquela nação voltaram a se erguer. Uma Segunda Guerra Mundial na qual a China e a Rússia se aliaram após a derrota nazista, causando um reaquecimento do conflito e englobando mais uma vez o mundo em batalhas sem fim, que nessa versão já duravam sessenta anos, causou severos atritos na comunidade internacional.
            As várias versões onde o Eixo venceu a guerra, ou aquelas onde as missões Apollo lunares descobriram restos de visitas extraterrestres no satélite, descambando por vezes em novas guerras mundiais, ou em outras Idades Médias plenas de fanatismo, igualmente causaram consternação global.

            Diante disso Karlos Uyllys, sem surpresa alguma, chamou René Andersen de “traidor da humanidade” e prometeu julgá-lo por zombar da “cultura mundial”, expondo-a ao que chamou de “invasão das outras dimensões imperialistas”. A maior parte da comunidade internacional, como já vinha ocorrendo, o considerava um palhaço com sonhos ditatoriais, mas infelizmente houve gente que se entusiasmou com o discurso.
            Uyllys certamente deve ter ficado chocado ao descobrir que, em outro Brasil paralelo, um duplo seu não reconheceu o legítimo resultado de uma eleição, que colocou no governo um desafeto seu totalmente contrário a sua ideologia. Aquela versão dele optou por renunciar ao mandato parlamentar e se exilar na Europa, posando de líder perseguido.

            - Vó, Vó, olha só – o chamado do neto de Gertrudes tirou René daquelas reflexões.
            A vizinha apanhou o tablet trazido pelo jovem, e exibiu a tela para todos verem.
            - Aqui na Avenida Paulista a batalha segue intensa – gritava uma jornalista em meio ao caos. – Os foliões estão atacando o Hospital Pamplona e, do outro lado da avenida, o Masp.
            Um estrondo fortíssimo foi ouvido, e a moça se abaixou. As imagens confusas evidenciavam que ela e seu câmera corriam para se abrigar. Depois de alguns instantes, desgrenhada e coberta de poeira, ela voltou a falar:
            - Os foliões conseguiram explodir um dos pilares do Masp, e o museu caiu e desmoronou. Ainda havia pessoas dançando e cantando embaixo dele, mas isso não impediu os sobreviventes de comemorar. Estão invadindo agora, e já vemos quadros e outros objetos sendo jogados pelas janelas.
            As imagens mostraram as obras de arte sendo alvo da fúria da turba bêbada e drogada. Alguns fizeram suas necessidades nelas, mas a maioria simplesmente se concentrou em sambar sobre os quadros, destruindo-os.
            - Meu Deus – disse Malena. – todas aquelas obras.
            - Eles tiveram que escolher, proteger os pacientes do hospital ou o museu – comentou René.
            Outros vizinhos chegaram nesse momento, também acompanhando as notícias, e Gertrudes fez com que todos entrassem em sua casa. As horas seguintes mostraram um acirramento do conflito, sempre com a trilha sonora do tecno-samba e do pós-funk, uma cacofonia sem sentido na qual palavras de baixo calão eram gritadas sem formar qualquer sentido discernível.
            A turba seguiu os dois caminhões de som e os cinco tanques de cerveja. Imagens aéreas mostravam que deveria haver no mínimo um milhão deles. A repórter voltou, desta vez acompanhada do organizador da “folia”.
            - É isso aí, vagaba, me mostra aqui, fica assim pertinho de mim – dizia o sujeito, passando o braço pelos ombros da repórter que não conseguia disfarçar o incômodo. Ele a beijou à força, depois a empurrou para longe após tomar o microfone.
            - Seguinte, galera, eu sou o Dany Brizado, organizador dessa festa linda, popular e democrática. É com muita alegria que vamos comemorar muito que acabamos com aquele espaço elitista, reacionário aqui na nossa Paulista. Ainda tem uns aí que não querem curtir o carnaval, mas a gente vai continuar até o mês que vem com certeza!
            Depois ele se aproximou da câmera e acrescentou:
            - René Andersen, seu velho maldito, sua vez tá chegando! Adivinha pra onde a gente vai agora, hein?
            Todos se entreolharam, e providências começaram a ser tomadas. René e Malena foram para casa, vizinha da grande biblioteca da Praça dos Omaguás, e dali se comunicavam com todos.

            - Pai, você tem mesmo certeza disso? – a pergunta foi feita por Arthur, filho deles e batizado em homenagem a um dos maiores criadores da ficção científica em todas as paralelas.
            René olhou para ele, se levantou da cadeira e segurou seus ombros. Os dois se abraçaram e o velho escritor, com olhos marejados, respondeu:
            - Nunca tive tanta certeza de nada, meu filho. Pois não foi outro grande pensador que disse que os livros são a prova de que os seres humanos podem produzir magia?
            - Viveremos para sempre nessas obras, meu filho – acrescentou Malena. – E, como a existência da Lista e das realidades paralelas comprova, nada está realmente perdido na realidade.
            - Em nenhuma delas, com certeza – disse Arthur.
            O rapaz saiu correndo, e eles ouviram as ordens que ele gritava nos porões do grande prédio. A construção envidraçada abrigava no passado uma das maiores livrarias de São Paulo, mas a rede que a operava deixou o país diante de um dos primeiros caos econômicos do século. Depois de um período de bonança a calamidade regressou com Karlos Uyllys, como as notícias nas telas dos computadores espalhados pela sala mostravam.
            - Na Rebouças a luta está mais violenta do que nunca – comentou Samara, namorada de Arthur.
            As imagens ao vivo mostravam os caminhões de som e tanques de cerveja passando por cima dos corpos empilhados dos foliões do desfile da noite anterior. A tática fora eficiente por vários carnavais, até que os veículos passassem a ter rodas e pneus maiores, grades e limpadores de entulho na frente similares aos limpa-trilhos das velhas locomotivas. Além de tudo os foliões que iam à frente passaram a contar com lança-chamas, incinerando os corpos e facilitando a passagem dos blocos.
            - Que insanidade! – comentou Malena em um intervalo.
            - Tudo, tudo isso é insano, meu amor – respondeu René enquanto a envolvia em um abraço.
            A esposa o olhou nos olhos. René pensou no quanto a amava. Antes dos cabelos brancos que agora acariciava, antes da fama e da fortuna, e muito antes que a mera posse de um livro na rua fosse considerada um crime.
            - Estamos ficando tão insensíveis quanto eles? – ela perguntou.
            René pensou na resposta, meditando pela enésima vez por que, realmente, fazia tudo aquilo.
            - O que nos diferencia de alguém como Uyllys é que nós somos movidos por valores, e ele por sua ideologia, meu amor.
            - Não foi isso que perguntei.
            - Eu sei. Estou respondendo da melhor maneira que posso.
            Depois de um silêncio, e dela lhe dar um longo e apaixonado beijo, o escritor prosseguiu:
            - Tantos já participaram dessa luta, tantos já desistiram. E tantos morreram... Sim, por vezes encaro tudo isso como uma guerra, uma batalha contra a aniquilação, mas não contra a morte. Contra algo muito pior.
            - As trevas. A ignorância.
            - Isso! Isso, meu amor!
            - Mas é nisso que penso, estamos descendo ao nível deles? Atirando e matando, e usando as mesmas armas?
            - Malena, meu único amor, alguém já disse que em uma guerra todas as armas disponíveis têm que ser usadas. Mas não pense que a luta terminará aqui, hoje, ou quando finalmente conseguirmos acabar com esse terror em que transformaram o carnaval. Veja, nós já ganhamos essa guerra, na verdade!
            Malena olhou nos olhos do amado, e ele finalmente respondeu a sua pergunta silenciosa:
            - Eles irão passar mas os livros continuarão, para sempre.
            O casal trocou mais um longo e apaixonado beijo, e Malena disse:
            - Exatamente o que penso, meu amor. Vamos, há muito que fazer!

            As horas seguintes foram de tensa expectativa. Pela grande cobertura televisiva e pela internet eles acompanharam o desfile do bloco. A música ensurdecedora enchia a Avenida Rebouças, enquanto tiros eram disparados dos prédios vizinhos. O armamento pesado do caminhão de som devolvia os disparos, mas os defensores conseguiram uma vitória ao conseguir explodir um dos quatro caminhões tanque de cerveja.
            Eles ficaram alarmados quando um bloco menor, não programado, começou a subir a Rebouças vindo da Faria Lima. Vivian, neta de Gertrudes, e seu namorado Otavio estavam realizando os preparativos finais em outra estratégica de defesa, em um edifício situado na esquina da Predroso de Morais com a Arthur de Azevedo. O casal se apressou, trocando mensagens ininterruptamente com uma equipe armada nas proximidades.
            Após o bloco maior passar pela Rua Potiguar Medeiros, um edifício na Rebouças foi explodido. A intenção dos defensores era que caísse em sentido enviesado sobre a maior parte do bloco, mas infelizmente a queda foi perpendicular à avenida. Mesmo assim boa parte do exército de reserva de foliões foi eliminada. Prédios menores foram dinamitados no trajeto até a Pedroso, e uma enorme quantidade de combustível derramada no asfalto foi incendiada, impedindo a passagem dos foliões.
            O bloco então virou à direita na Prudente e passou a descer a Rua dos Pinheiros, vias estreitas nas quais os defensores poderiam atacar com mais eficiência, sem que o desfile tivesse liberdade de movimentos. A troca de tiros se tornou ainda mais intensa, e mesmo com a vantagem de estarem no alto, nos prédios das imediações, as baixas entre os defensores foram pesadas.
            O bloco menor apressou o passo e chegou à Pedroso primeiro, e os foliões que não estavam caindo de tanto beberem tentavam liberar a via que também havia sido incendiada. Novas explosões de construções menores produziram projéteis de aço, concreto e vidro que dizimou parte deles.

            - É tão triste esses jovens sofrendo e morrendo nessa luta – disse Malena.
            - Todos nós estamos nos sacrificando – comentou René.
            A esposa o abraçou e beijou, respondendo:
            - E nem por um instante me arrependo de estar a seu lado neste e em todos os momentos! Vou ver como está nossa defesa no teto.
            Chegando ao topo do edifício da biblioteca Malena conversou rapidamente com as pessoas que manipulavam a arma. Não era letal como os fuzis e metralhadoras, mas era capaz de dispersar com rapidez as hordas que seguiam os caminhões de som. Satisfeita, ela tornou a descer as escadas.

            - Vamos logo com isso! – Otavio e Vivian ouviam pelo rádio.
            - Os fios dos detonadores estão com mau contato, estamos trabalhando - gritou ela.
            - Otavio, os bárbaros já entraram na Predroso, você precisa correr!
            O jovem ouviu mais uma vez pelo rádio o insistente pedido. Contudo as luzes do painel do dispositivo não se acendiam, e ele continuava a trabalhar febrilmente.
            Vivian, de fuzil em punho, vigiava os arredores. Estavam nos porões do prédio, e ela frequentemente olhava para os explosivos fixados nas colunas de sustentação.
            - Droga – gritou Otavio. – Desde que essa crise começou a qualidade de tudo que é produzido cai. O contato deve estar com defeito, vou ter que improvisar!
            Eles só conseguiam se comunicar gritando, pois lá fora os dois blocos haviam se unido e aumentado ainda mais sua balbúrdia. Conseguiam ouvir até as vozes de Dany Brizado e da cantora Eleutéria Neves:
            - Porque essa gente reacionária, preconceituosa e retrógrada ainda fica lendo livros em papel. Em papel, gente! Quantas árvores foram mortas por causa disso? Isso é errado, o meio ambiente é importante, e usar papel é errado!
            - Vamos lá, enfrentar os elitistas, e vamos ganhar deles, mostrar a força da cultura popular! – completou Brizado, que sempre fez questão de ocultar seu verdadeiro nome.
            Os dois, no alto do caminhão de som e protegidos por escudos, nem davam atenção aos disparos trocados entre seus foliões armados e os defensores. Subitamente os tiros ficaram ainda mais próximos.
            - Vivian, eles nos viram e estão tentando invadir o prédio! Não sei se vamos conseguir...
            Os membros da equipe no térreo tentaram por todas as formas resistir, mas os foliões armados estavam em maior número.
            - Vamos correr, gente, vamos lá – gritou Neves.
            As imagens ao vivo da televisão, para quem acompanhava, mostraram quando disparos de grosso calibre romperam a blindagem superior do caminhão, atingindo a cantora em cheio. Brizado nem ligou, mandou dois auxiliares removerem seu corpo, e outra cantora assumiu seu lugar.
            - Otávio, estamos morrendo aqui... Vai depressa... Vamos...
            Uma explosão maior aconteceu, e o rádio ficou em silêncio. Vivian e Otavio trocaram um olhar, e ela apoiou o pesado fuzil em um pedaço de outra coluna que haviam derrubado.
            - Estão vindo.
            - Eu te amo.
            Vivian não esperava aquelas palavras, virou-se e Otavio estava a seu lado. Abraçaram-se e se beijaram, e ele retornou ao trabalho.
            - Tem outros aqui! - Gritou um infeliz que surgiu na escada que dava acesso ao porão, antes que Vivian o atingisse.
            Outros começaram a descer, e a menina foi rápida no gatilho para contê-los. Os disparos aumentaram, e as chamadas pelo rádio de Otavio ao resto da equipe não foram respondidas.
            Vivian trocou rapidamente de canal.
            - Vó Gertrudes, eu amo muito a senhora!
            - E eu amo você, minha filha. Deus lhe proteja e ampare, sempre!
            A garota voltou a lutar, mas os foliões eram cada vez mais numerosos.
            - Terminei! – disse Otavio.
            No mesmo momento, um dos invasores lançou uma granada, ao mesmo tempo em que os tiros se intensificavam.
            A explosão esmigalhou os restos da coluna atrás da qual se abrigavam. Otavio, zonzo, verificou o painel e viu as luzes acesas. Uma dor intensa por todo o corpo denunciou onde fora atingido por tiros, estilhaços e destroços, mas ele se virou para Vivian.
            Sua namorada vertia um fio de sangue pela boca, e um grande estilhaço havia entrado em seu ventre. Tremendo muito ela estendeu a mão. Otavio a amparou, pegou sua pistola e atirou em alguns dos bárbaros que se aproximavam.
            - Eu te amo – disse Otavio. Sabia que aquelas seriam as últimas palavras que ouviriam.
            Pelo rádio ele disse:
            - Detonem agora.
            Silêncio. Os disparos e gritos ficavam cada vez mais próximos.
            Finalmente Otavio ouviu um assobio vindo do equipamento. Abraçou Vivian e fechou os olhos.

            A explosão no prédio foi tremenda. Pedras, aço e vidro voaram, atingindo uma imensa massa de foliões que seguia atrás dos caminhões de som.
            O prédio começou a tombar, mas os veículos já haviam passado. A construção atingiu boa parte do exército inimigo, mas o que restou ainda poderia causar um imenso estrago.
            Porém, nada foi capaz de aliviar a dor de uma mulher. Gertrudes chamou pelo nome da neta por diversas vezes, mas tudo que ouviu foi estática.
            Seu filho, seu neto, e mais alguns parentes e amigos permaneciam em sua casa. O caminhão de som do bloco maior se aproximava, e a balbúrdia se tornava ainda mais ensurdecedora. Todos estavam armados e em suas posições, e os primeiros foliões já eram ouvidos no jardim, destruindo as plantas que restavam e praticando seus habituais gestos de barbarismo, usando o local como banheiro e para outros atos.
            René e Malena a chamavam pelo rádio, mas Gertrudes não quis ouvir. Subiu ao segundo andar, depois ao sótão e apanhou uma espingarda que deixara lá para qualquer eventualidade. Enxergava muito bem apesar da idade, era do que sempre se gabava com os amigos.
            Posicionou-se na janela do sótão que dava para a avenida. Sua visão do comboio do terror que se aproximava era perfeita.
            - Vó, o que tá fazendo? – seu neto veio correndo.
            - Fazendo o que devo. Agora fica quieto.
            O rapaz se conformou e desceu. Ela observou o movimento pela mira telescópica da arma, aguardando o momento. A cabeça de Dany Brizado se aproximava cada vez mais.
            Gertrudes nem ouvia mais a voz dele, nem “aquela M. que chamavam de música”, como costumava dizer, nem o berreiro dos foliões. Tudo que interessava a ela naquele momento era a cabeça do organizador daquela carnificina.
            A cabeça do responsável por matar Vivian.
            A cabeça que foi literalmente explodida pelo tiro que ela disparou, fazendo jorrar sangue e outros restos nos demais bárbaros que estavam perto.
            Aquela confusão não havia sido programada pelos defensores, mas eles trataram de aproveitar. O filho de Gertrudes apanhou uma potente bazuca, e um modelo similar foi disparado em diagonal da outra calçada, quase por trás do caminhão de som.
            O impacto quase simultâneo das duas armas explodiu o veículo. Restos dele e de seus ocupantes voaram pelos ares. Os foliões armados reagiram, e a troca de tiros foi encarniçada.
            O filho de Gertrudes e outros dos defensores da casa morreram na batalha, mas o neto da anciã estava entre os sobreviventes. Eles contam que Gertrudes foi encontrada no sótão sem vida, mas com um sorriso no rosto.

            - Estão no alcance, senhor.
            René recebeu o comunicado pelo rádio. Mesmo com seus líderes mortos e o principal caminhão de som destruído, os foliões ainda tinham muito poder de fogo.
            - Pode ligar – o escritor respondeu.
            No teto da antiga megastore a arma sônica foi acionada. O resultado foi quase imediato. O enorme canhão, adaptado com as maiores caixas de som que puderam encontrar, emitia sons altíssimos em baixa frequência. A maioria dos foliões andava de forma trôpega, efeito da cerveja que era servida ininterruptamente pelo caminhão tanque remanescente, além dos alucinógenos também disponíveis à vontade, e logo caíram pelo efeito da arma.
            Quem ainda estava de pé lutava contra a tontura e desorientação produzidos pela arma, mas tentava continuar. O caminhão de som que havia restado prosseguia com sua cacofonia insuportável e ensurdecedora, quando Arthur veio ter com os pais.
            - Tudo está pronto – disse ele. – O último carregamento já foi despachado. Conseguimos ganhar tempo suficiente.
            - À custa de perdas que sequer podemos suportar, meu filho.
            Malena veio e abraçou os dois.  Estavam no primeiro subsolo, e acima já se faziam ouvir os primeiros disparos dos atiradores que defendiam o prédio contra as armas dos foliões.
            - Temos que sair daqui – insistiu Arthur.
            - Você precisa sair, meu filho – respondeu Malena. – Estamos terminando os preparativos.
            - E ainda preciso enviar minha mensagem final para a Lista.
            Arthur olhou os dois. Seu pai se levantou da cadeira e o abraçou juntamente a sua mãe.
            - Amamos muito você, e nos orgulhamos de quem se tornou – disse René.
            O jovem compreendeu. Devastado por dentro, mesmo assim respeitou a vontade deles. Seus olhares diziam tudo.
            Um abraço final depois, Arthur se reuniu à namorada Samara e saíram por uma porta que conduzia a um nível inferior. René e Malena ficaram sozinhos.
            O ruído da batalha prosseguia lá em cima, mas o tempo parecia ter parado para eles. Olharam-se nos olhos, e uma vida inteira de recordações ocupou suas mentes. Abraçados, beijaram-se como se nada mais houvesse.

            Lá fora a batalha atingira uma intensidade nunca vista. Até mesmo os jornalistas dos helicópteros que sobrevoavam a região se mostravam impressionados.
            O caminhão de som menor do segundo bloco, o único que sobrara, conseguiu passar depois de os foliões removerem corpos do caminho, resultantes da explosão do veículo principal. Sua intensidade sonora era inferior a do outro, e os defensores espantados logo constataram por que.
            A parte de trás se abriu, expondo lançadores de foguetes e canhões pesados. Até mesmo os foliões recuaram, espantados.
            Em um distante gabinete em Brasília, o presidente Karlos Uyllys a tudo assistia, comemorando.
            Os defensores usaram o restante de sua artilharia pesada. Corpos de foliões se empilhavam nas ruas, e explosões destruíram parte do armamento do caminhão. Mas antes que isso acontecesse as baixas entre o exército que resistia ao carnaval foram tremendas.
            A arma sônica perturbava a tripulação do caminhão, e derrubava boa parte dos foliões, mas o veículo continuava avançando. Ele percorreu metade do quarteirão entre a Cardeal Arcoverde e a Praça dos Omaguás, local da biblioteca organizada por René e Malena com tanto carinho ao longo de anos.
            - Está perto demais da biblioteca, atirem, acabem com ele, vamos! – eram os gritos entre os defensores.
            Um disparo de foguete contra o teto da biblioteca destruiu o canhão sônico e todos que ali estavam. Lá embaixo a luta seguia com uma violência inédita quando os foguetes do caminhão foram apontados para a biblioteca.

            Lá dentro, ouvindo os tiros e explosões e sentindo o calor do fogo que já ardia nos pisos superiores, René e Malena se olharam.
            - Eu te amo – disse ele.
            - Eu te amo – ela respondeu.
            René acionou um comando em um teclado. Uma mensagem foi imediatamente enviada para a Lista:

De: René Andersen
Para: A LISTA
Assunto: A luta está terminando
            Está tudo terminando, meus amigos. Sempre soubemos que chegaria o momento em que as forças da escuridão que nos ameaçam seriam poderosas demais para serem derrotadas.
            Sabemos de muitos amigos que já nos deixaram, tendo realizado o sacrifício final em nome da liberdade, da cultura e do conhecimento. Não podemos nos furtar de fazer menos que eles. Não conseguimos mais viver assim. Cometendo violência contra a violência. Deve haver um meio de acabar de uma vez por todas com esse obscurantismo. E acredito que este é o caminho.
            Por inúmeras das paralelas dos meus queridos colegas da Lista já houve atentados semelhantes, de menor ou maior intensidade, contra os livros e a cultura. Os exemplos são em número maior do que conseguimos contar, e não raro, infelizmente, foram os amigos que partiram por discordar de tal estado de coisas.
            Mas esses desaparecimentos não foram em vão, pois em várias dessas realidades antes obscurecidas pela ignorância esse sacrifício final teve efeitos além do imaginado ou sonhado. A reversão do obscurantismo, um chamado à racionalidade, aconteceu em muitos desses palcos do drama da vida.
            E é nisso que eu, e minha adorada esposa Malena, acreditamos. No conhecimento, na cultura, e nos livros. É por isso que todo o conhecimento desta biblioteca, digitalizado, foi enviado não somente para a Lista, mas também para inúmeros servidores e endereços eletrônicos de meu Brasil. Um volume tão avassalador de informação que nem sequer os agentes governamentais conseguirão impedir que cheguem às pessoas. E ainda preparamos uma surpresinha para aqueles que desejam ditar o que os demais podem ou não fazer.
            É esse o nosso legado.
            Meus amigos, não chorem por nós. Eu e minha amada Malena vivemos uma vida plena e feliz, e ninguém conseguirá tirar de nós nenhum momento sequer dessas tão doces lembranças. Encaramos esta passagem, em meio à violência e ao caos, com a serenidade de quem sabe estar no lado da justiça, da liberdade e do conhecimento. Mergulhamos assim nas chamas e na luz, mas não na escuridão! Adeus!

            A mensagem chegou instantaneamente à Lista, e também foi enviada a jornais e veículos de imprensa de todo o país. As pessoas a replicariam depois inúmeras vezes nos tempos vindouros.
            René e Malena se abraçaram e beijaram pela última vez.

            Os órgãos de imprensa foram os primeiros a entrar nos escombros da biblioteca após a explosão. A tripulação do caminhão tentou fugir, mas os defensores restantes os caçaram e eliminaram. Poucos foliões restaram vivos depois da explosão do prédio.
            Como as autoridades demoraram muito para chegar, os jornalistas entraram na biblioteca e transmitiram ao vivo suas impressões. Quase tudo, até os andares inferiores, estava carbonizado.
            René e Malena foram encontrados ainda abraçados.
            Alguns dos poucos livros que restaram mais ou menos intactos, antes visíveis nas prateleiras pelas amplas janelas do prédio, foram exibidos. Suas páginas estavam em branco, e as capas não passavam de cópias das originais feitas em impressoras.
            O massacre foi transmitido repetidamente por dias, até que o governo decidiu-se pela censura. Mas já não era mais possível disfarçar.
            Mesmo que os agentes oficiais e artistas pagos pelo estado ainda tentassem, poucos compareceram aos blocos nas semanas seguintes. Os fiscais esperaram em vão com suas máquinas de ponto para verificar o cartão carnavalesco dos foliões, que atestava a presença obrigatória destes.
            Não demorou para que o governo colocasse suas forças na rua, mas a resistência contra Karlos Uyllys cresceu, primeiro com as pessoas que tinham armas e se defendiam da violência dos blocos. E depois por meio de forças e governos municipais e estaduais que passaram a se recusar a obedecer as ordens de Brasília.
            Pouco mais de quarenta dias após o sacrifício de René e Malena em sua biblioteca, Karlos Uyllys fugiu do país sem renunciar ao cargo.

De: Arthur Andersen
Para: A Lista
Assunto: Uma vitória se desenha
            ... E é isso que tenho a lhes contar, meus amigos. Foram dias de muita tristeza, preocupação e uma fuga desesperada. Os livros que resgatamos da biblioteca foram espalhados por vários locais do estado, e o número de downloads das obras digitalizadas tem sido maior do que poderíamos imaginar.
            Só uma coisa é maior que a tristeza pela partida de meus pais: o orgulho por suas ações e suas vidas.
            Já se fala em homenagens a eles, mas o clima em meu Brasil é de absoluto caos, pois entre políticos tentando se apropriar da situação, artistas exigindo que o carnaval continue, e inúmeros conflitos que ainda acontecem por todo o país, temos que permanecer ocultos e vigilantes.
            Mas a fé de meus pais é também a minha, de que a luz irá vencer as trevas.

            Arthur enviou a mensagem para a Lista e se recostou na cadeira. Samara chegou e o abraçou.
            Um sinal anunciou a chegada de mais uma mensagem da Lista:

De: René Andersen
Para: A Lista; Artur Andersen
Assunto: Re: Uma vitória se desenha
            Meu caro Arthur, não poderia deixar de me inspirar por sua história. Como pode ver sou um duplo de seu pai, mas bem mais jovem do que ele era.
            Em meu Brasil igualmente lutamos pela cultura. Aqui o processo que resultou em um aumento brutal da mediocridade da sociedade chegou a tal ponto que as pessoas alfabetizadas são literalmente caçadas na rua, quando descobertas.
            Cultura e conhecimento são consideradas “elitistas” e “preconceituosas”. Livros são queimados em praça pública. Isso quando seus portadores não são linchados ou queimados junto.
            Quero dizer que por nada, neste mundo ou qualquer outro, deixe de sentir orgulho por seus pais. Eles inspiraram muitos de nós, e faço votos que continuem inspirando vocês.
            Parabéns e até a próxima.

            Arthur desligou o computador com os olhos marejados. Samara o confortou, e colocou diante dele o resultado do ultrassom que fizera.
            - Gêmeos? - ele perguntou.
            A moça fez que sim, e comentou:
            - Se forem menino e menina, já sei que nomes irá querer.
            Arthur abraçou a namorada, encostando a face contra sua barriga, e sussurrando:
            - René e Malena.


Caros leitores, espero que tenham gostado desta distopia carnavalesca. Os posts literários normais retornam na segunda após os chamados "dias de folia". Esta história foi inspirada em notícias lamentáveis como esta.

É evidente que, se realizado com organização e respeito, podemos até admirar este período. Como esta outra notícia atesta. Admiro sinceramente o trabalho de interpretação e produção artística por trás de um desfile assim.

Os mais atentos perceberão as menções a outras histórias dA Lista. Uma delas é A Lista: A Última Supernova, publicada no Somnium 110, fanzine do Clube de Leitores de Ficção Científica (CLFC).

Também convido a todos para conhecer outras histórias dA Lista, como:



Até a próxima!


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